s sementes crioulas fazem parte de uma agricultura que já não existe. O agricultor planta sua semente, cultiva, colhe a produção, vende ou consome uma parte e guarda outra para o plantio da próxima safra. Essas sementes, muitas vezes, são passadas entre gerações de famílias e trocadas com os vizinhos. Mas, hoje, o campo não funciona mais assim. O agricultor não pode guardar a semente e muito menos trocar, sob pena de pagar multa por isso. Ela é propriedade de uma grande corporação que trabalha com tecnologia genética na produção de variedades resistentes a pesticidas (que a mesma corporação vende) e que respondem melhor a certos insumos – sim, que a mesma corporação vende.
Quando adquire uma semente transgênica, o agricultor não adquire só a semente. Para extrair o máximo de sua produtividade, é preciso adquirir o que o mercado chama de “pacote tecnológico”, insumos e defensivos que vão maximizar o resultado prometido pela semente. Esse esquema, denunciado como venda casada por algumas organizações, prende o pequeno agricultor a financiamentos cada vez maiores e favorece o monopólio. Não apenas isso: a maioria das sementes comerciais é fruto de hibridação, então também não se pode plantar o que se colhe, é preciso comprar mais a cada nova safra.
O mercado mundial de biotecnologia no campo é bastante concentrado e dominado hoje por quatro grandes empresas: Bayer, Monsanto (adquirida pela Bayer, em 2019), Sygenta (adquirida pela ChemChina, que era líder na Ásia em 2016) e DowDupont, que é resultado da fusão das gigantes Dow e Dupont, também em 2016.
Todas essas restrições fazem com que as sementes crioulas sejam vistas como um foco de resistência no campo, pois permitem que o pequeno produtor, em especial o que pratica agricultura de subsistência, não fique refém dessa cadeia. “Um agricultor uma vez me disse ‘no semi-árido, quem tem semente e água, tem poder’. As sementes crioulas são uma forma de autonomia política, possibilitam ao produtor dizer não às políticas clientelistas”, diz Emanoel Dias, assessor técnico da Aspta Agricultura Familiar e Agroecologia, organização que assessora famílias de agricultores no semi-árido paraibano.
Para não depender da entrega de sementes pelos governos locais ou da compra de grandes empresas, a Aspta organizou uma rede de bancos de sementes crioulas mantido pelos agricultores de 14 municípios na região de Borborema, no interior da Paraíba. Na ponta da rede estão os bancos familiares, estoques pequenos de primeira necessidade, para serem plantados assim que o ambiente favorecer. É hábito sertanejo plantar “no rastro da chuva”, logo após o curto período de chuvas na região. As sementes ficam estocadas em pequenos silos ou garrafas PET em casa.
Acima deles, os bancos comunitários estocam maiores quantidades e variedades. São 60 postos, administrados por grupos de gestão, que fornecem sementes às famílias. E ainda há os bancos regionais, que realizam empréstimos aos bancos comunitários. A gestão é feita pelos próprios agricultores, na base de trocas.
“Um agricultor uma vez me disse ‘no semi-árido, quem tem semente e água, tem poder’. As sementes crioulas são uma forma de autonomia política, possibilitam ao produtor dizer não às políticas clientelistas”
Emanoel Dias
O funcionamento destes bancos é parecido com os estabelecidos em Juti, no Mato Grosso do Sul. Lá, em um espaço cedido pela prefeitura, e financiado com um edital do CNPq, o banco comunitário mantém mais de 150 variedades crioulas e atende 80 associados. Ainda há dois bancos em aldeias guarani-kaiowá na região.
A moeda é a semente. Cada associado que empresta, devolve após a colheita com 50% de “juros”, reabastecendo o banco.“É tudo negociado entre a comunidade. Se plantou e não conseguiu colher, tudo bem, devolve outra semente. Assim, conseguimos manter uma variedade e o banco funcionando”, conta a professora e bióloga Zefa Valdivina Pereira, da Universidade Federal da Grande Dourados, uma das idealizadoras do banco.
Criado em 2015, o banco leva o nome da irmã Lucinda Moretti, da Comissão Pastoral da Terra, morta em 2013, que foi uma grande entusiasta da agroecologia e das sementes crioulas na região. “Esse trabalho começou com ela, há mais de 15 anos, que ia de comunidade em comunidade com uma garrafinha embaixo do braço levando e trazendo sementes, foi ali que nasceu o banco”, conta Zefa.
Sementes do apocalipse
Não são só os pequenos agricultores que se preocupam com a guarda das sementes crioulas. O Brasil mantém guardadas algumas variedades tradicionais no Svalbard Global Seed Vault, um bunker que armazena sementes do mundo todo em uma ilha no Ártico, a meio caminho entre a Noruega e a Groenlândia.
Encravada na montanha, uma estrutura de concreto que mais parece um armazém nuclear guarda “cópias de segurança” de sementes tradicionais e variedades nativas, que os países podem depositar e retirar quando quiserem, e é visto como uma espécie de backup contra os efeitos do aquecimento global.
“É tudo negociado entre a comunidade. Se plantou e não conseguiu colher, tudo bem, devolve outra semente. Assim, conseguimos manter uma variedade e o banco funcionando”
Zefa Valdivina Pereira
“A Embrapa mantém um sistema de banco de germoplasma no Brasil, com as sementes conservadas sob refrigeração, mas uma segunda cópia podemos manter nesse banco, no Ártico”, conta Rosa Lia Barbieri, pesquisadora da Embrapa para recursos Genéticos e Biotecnologia, que esteve em Svalbard em fevereiro para fazer um depósito.
Foram mais de 3 mil sementes de arroz e milho crioulo, além de algumas variedades crioulas de pimenta, cebola e abóbora, vindas do Planalto Central, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Embaladas em caixas lacradas, elas só podem ser retiradas de lá pela própria Embrapa.
Sementes da agroecologia
“Há uma grande variação entre frutos nas espécies crioulas. As maçãs, por exemplo, têm um sabor muito mais intenso em comparação com as que compramos no mercado, mas são menores. As crioulas não prezam por uniformidade e tamanho, mas por uma resistência a doenças, adaptação ao clima, fungos e bactérias”, conta Rosa Lia.
Essa adaptação é fruto de uma seleção artificial, mas não envolve laboratórios de alta complexidade. Ao passar por gerações de famílias de agricultores, as sementes que têm melhor adaptação às intempéries e resistência às doenças acabam sendo reproduzidas e multiplicadas. Isso significa frutas e vegetais de tamanhos irregulares, mais “feias” do que o mercado exige, o que dá menos chances às sementes crioulas de chegarem às prateleiras das grandes cidades.
Na Paraíba, a Aspta começou a produzir, em pequena escala, milho crioulo no formato flocão, que é muito utilizado e para fazer o cuscuz, prato obrigatório no café da manhã do Norte e do Nordeste. “Há muito tempo, temos trabalhado na perspectiva da autonomia: primeiro para se alimentar, a agricultura de subsistência, mas, depois que produzimos esses derivados do milho, notamos uma procura muito grande das cidades grandes da região, como Campina Grande, João Pessoa e até Recife”, conta Emanoel Dias, da Aspta.
Parte dessa procura aquecida se explica justamente pela maior ameaça do milho crioulo: os transgênicos dominaram o mercado e é cada vez mais difícil encontrar produtos à base de milho não-transgênico. No Brasil, as safras de milho deste ano devem somar 16,3 milhões de hectares cultivados, sendo 93% com sementes transgênicas, segundo dados da Embrapa. Em 2008, o primeiro ano a ser autorizado o plantio de milho geneticamente modificado no país, esse percentual era de menos de 7%. Também somos um dos países em que o cultivo de transgênicos cresce mais rápido no mundo.
A proximidade traz risco: com o pólen levado pelo vento durante a floração, o milho tradicional se contamina pelas lavouras transgênicas vizinhas. No Paraná, uma variedade de milho crioula repassada entre gerações por 50 anos se contaminou e desapareceu, uma situação que tem se tornado, infelizmente, mais comum. “Cada variedade crioula que se contamina é uma história que se apaga, a história de uma família”, comenta Dias.
“Cada variedade crioula que se contamina é uma história que se apaga, a história de uma família”
Emanoel Dias
Outro desafio comum aos produtos crioulos e da agroecologia é a dificuldade de financiamento. O excesso de burocracia das linhas de crédito faz com que pequenos agricultores não tenham como recorrer a empréstimos para plantar. “Produzir agroecologicamente é mais caro, porque o Estado não subsidia”, diz Débora Nunes, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, que acredita que, para se tornar competitivo, é preciso massificar a produção agroecológica, com linha de crédito e incentivo ao pequeno agricultor.
Filha de retirantes do sertão de Pernambuco que fugiram para a periferia de São Paulo tentar uma vida melhor nos anos 1970, Débora fez o caminho inverso. Na infância, após a mãe ver uma criança da mesma idade ser morta pelo tráfico, foi mandada de volta para o sertão viver com os avós. Formou-se em sociologia e, ainda na faculdade, se apaixonou pela agroecologia. Há 22 anos, voltou para o campo. Há oito, vive no assentamento Chico do Sindicato, em Atalaia, na Zona da Mata de Alagoas.
“O consumidor, quem vive na cidade, precisa entender que há uma relação direta entre o que acontece no campo e na cidade, que conflito agrário e violência na periferia estão diretamente ligados. É preciso romper a lógica de que o envenenamento do solo, da água e a centralização da agricultura na mão de grande empresas são um problema só do agricultor”, conclui Débora.