nsiosos, entre quatro paredes e com a geladeira a dois passos do ambiente de trabalho, transformamos completamente nossa relação com a comida. A pandemia de 2020 trouxe à tona aquele amigo que virou beliscador profissional, o casal que passou a cozinhar tudo do zero e a workaholic que começou a sobreviver de delivery dos restaurantes preferidos. Em um momento delicado como o atual, a comida se tornou uma fonte ainda maior de prazer e, às vezes, a nossa única novidade do dia.
Mas os comportamentos alimentares têm um efeito importante na saúde física e mental. A rotina dentro de casa teve influência positiva para alguns nesse sentido, mas também provocou e agravou sintomas de transtornos alimentares. Essas doenças psiquiátricas, caracterizadas por perturbações do indivíduo em relação a comida e ao próprio corpo, não escolhem gênero, idade, classe social e raça.
No início da crise do novo coronavírus, houve um aumento da procura por atendimento psiquiátrico de forma geral, independente da patologia. Segundo uma pesquisa da Associação Brasileira de Psiquiatria de maio deste ano, feita com médicos psiquiatras de 23 estados e do Distrito Federal, 47,9% dos entrevistados perceberam um aumento em seus atendimentos. Ainda, 67,8% responderam que receberam pacientes novos e 69,3% informaram que atenderam os que já tinham recebido alta médica e tiveram um agravamento de seus sintomas.
“É claro que houve uma piora nos quadros de ansiedade e depressão. Foram mudanças abruptas no mundo. Consequentemente, com os transtornos alimentares não foi diferente”, confirma Roberta Catanzaro Perosa, psiquiatra e supervisora voluntária no AMBULIM, o Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP.
Nicoli Brek, nutricionista comportamental e também voluntária do AMBULIM, também percebeu um aumento de pacientes buscando ajuda. “Com toda a incerteza de quanto tempo a pandemia ia durar, a preocupação de pegar o vírus, a questão financeira… algumas pessoas acabaram descontando na alimentação. Elas estão mais tempo em casa, não conseguem fazer exercício, têm acesso fácil à comida e tudo isso junta com o emocional”, explica.
No próprio AMBULIM, centro de referência em transtornos alimentares na América Latina, notou-se uma recidiva nos sintomas dos pacientes com bulimia nervosa, anorexia nervosa e transtorno de compulsão alimentar.
“Com toda a incerteza de quanto tempo a pandemia ia durar, a preocupação de pegar o vírus, a questão financeira… algumas pessoas acabaram descontando na alimentação. Elas estão mais tempo em casa, não conseguem fazer exercício, têm acesso fácil à comida e tudo isso junta com o emocional”
Nicoli Brek, nutricionista comportamental
Aqueles com bulimia nervosa ou transtorno de compulsão alimentar passaram a comer de forma mais descontrolada em curtos períodos de tempo. Por consequência, o primeiro grupo também aumentou o uso de práticas compensatórias inapropriadas (laxantes, vômitos, diuréticos, atividades físicas exageradas etc.). Já aqueles com anorexia nervosa, que têm um medo intenso de comida e de engordar, tiveram mais dificuldade para se alimentar normalmente – estavam sozinhos em casa sem ninguém para ajudá-los ou em constante vigilância por terem de realizar todas as refeições com a família.
“Fizemos um esquema de rodízio para acolher os pacientes mais graves, pois os residentes que realizam os atendimentos estavam deslocados para cuidar da Covid-19 em outros setores do hospital”, conta Roberta. Devido à pandemia, o trabalho presencial que as equipes do AMBULIM faziam todas as sextas-feiras foi suspenso e apenas os atendimentos psiquiátricos foram retomados em julho. Os psicólogos e nutricionistas continuam atendendo online.
Essa interrupção mandatória também contribuiu para a piora importante dos sintomas de transtornos alimentares. “Vimos pessoas com anorexia que, por não terem o atendimento presencial todas as semanas, emagreceram muito. Uma paciente bulímica, que estava super controlada, regrediu e voltou para a estaca zero”, relata a psiquiatra. “Tivemos de internar com urgência pacientes que estavam com IMC menores que 14. Isso é extrema desnutrição.”
Nesses casos, esse peso classificado como abaixo do normal pode aparecer em pessoas com anorexia nervosa, que restringem quantidade e qualidade de alimentos. “Existe uma perturbação muito grande de como esses pacientes se enxergam. Eles têm um medo gigantesco de recuperar peso e não percebem a gravidade da doença”, diz Nicoli. Sem tratamento, esse distúrbio psiquiátrico apresenta elevado risco de suicídio.
Mas, para a nutricionista, não são só os transtornos alimentares que surgirão com a crise do novo coronavírus. “Acredito que tem um paciente que vai aparecer muito que é aquele com o comer transtornado, que não preenche critério diagnóstico para transtorno alimentar, mas está preocupado com emagrecimento, imagem corporal e alimentação perfeita”, exemplifica.
A partir dos memes, tweets e comentários entre amigos, é possível perceber que essa preocupação com o corpo ficou mais latente com a quarentena. Em uma situação de estresse, muitas pessoas ganham peso, pois usam a comida como escape, principalmente os alimentos ricos em energia, com alto teor de açúcar e gordura. De acordo com um estudo da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, identificou-se que, sob ameaça, até os gafanhotos passam a comer mais plantas açucaradas.
Por outro lado, Nicoli também notou que, durante a pandemia, as pessoas adotaram hábitos positivos, como o de cozinhar. “Eu super incentivo meus pacientes a fazerem a comida em casa. É diferente o gosto, a forma com que você se relaciona com aquilo que você preparou. Você começa a perceber outras questões em relação ao alimento”, constata.
É isso que o Guia Alimentar para a População Brasileira, concebido pelo Ministério da Saúde em 2014 e referência mundial segundo a FAO, OMS e Unicef, promove. O modelo recomenda o consumo de alimentos in natura (em estado natural) e evitar aqueles que envolvem diversas etapas de processamento e muitos ingredientes, chamados de ultraprocessados, como biscoitos recheados, salgadinhos, refrigerantes, entre outros. Em setembro deste ano, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento solicitou uma revisão desse documento e o considerou como “o pior do mundo”, mesmo com comprovações científicas de que suas orientações melhoram as condições de saúde e nutrição da população.
“Vimos pessoas com anorexia que, por não terem o atendimento presencial todas as semanas, emagreceram muito. Uma paciente bulímica, que estava super controlada, regrediu e voltou para a estaca zero. Tivemos de internar com urgência pacientes que estavam com IMC menores que 14. Isso é extrema desnutrição”
Roberta Catanzaro Perosa
Além de estimular que seus pacientes cozinhem em casa, como sugere o Guia, a nutricionista comportamental Nicoli pede para eles se afastarem das redes sociais, onde há grande espaço para comparação com corpos perfeitos e com as pessoas que conseguem se exercitar e cuidar da alimentação mesmo durante a pandemia. “Está todo mundo sofrendo, cada um de uma forma. Mas tem como passar por isso sem odiar nosso corpo”, conclui.
A Elástica conversou com quatro pessoas que têm ou já tiveram uma relação difícil com a comida e perceberam seus comportamentos alimentares se transformarem com a crise do novo coronavírus. Veja os relatos a seguir: