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Como você come?

As relações com comida e corpo durante uma crise de saúde global em que a principal orientação é ficar em casa

por Lara Santos Atualizado em 14 dez 2020, 16h22 - Publicado em 9 dez 2020 00h25
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(Clube Lambada/Ilustração)

nsiosos, entre quatro paredes e com a geladeira a dois passos do ambiente de trabalho, transformamos completamente nossa relação com a comida. A pandemia de 2020 trouxe à tona aquele amigo que virou beliscador profissional, o casal que passou a cozinhar tudo do zero e a workaholic que começou a sobreviver de delivery dos restaurantes preferidos. Em um momento delicado como o atual, a comida se tornou uma fonte ainda maior de prazer e, às vezes, a nossa única novidade do dia.

Mas os comportamentos alimentares têm um efeito importante na saúde física e mental. A rotina dentro de casa teve influência positiva para alguns nesse sentido, mas também provocou e agravou sintomas de transtornos alimentares. Essas doenças psiquiátricas, caracterizadas por perturbações do indivíduo em relação a comida e ao próprio corpo, não escolhem gênero, idade, classe social e raça.

No início da crise do novo coronavírus, houve um aumento da procura por atendimento psiquiátrico de forma geral, independente da patologia. Segundo uma pesquisa da Associação Brasileira de Psiquiatria de maio deste ano, feita com médicos psiquiatras de 23 estados e do Distrito Federal, 47,9% dos entrevistados perceberam um aumento em seus atendimentos. Ainda, 67,8% responderam que receberam pacientes novos e 69,3% informaram que atenderam os que já tinham recebido alta médica e tiveram um agravamento de seus sintomas.

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(Arte/Redação)

“É claro que houve uma piora nos quadros de ansiedade e depressão. Foram mudanças abruptas no mundo. Consequentemente, com os transtornos alimentares não foi diferente”, confirma Roberta Catanzaro Perosa, psiquiatra e supervisora voluntária no AMBULIM, o Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP.

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Nicoli Brek, nutricionista comportamental e também voluntária do AMBULIM, também percebeu um aumento de pacientes buscando ajuda. “Com toda a incerteza de quanto tempo a pandemia ia durar, a preocupação de pegar o vírus, a questão financeira… algumas pessoas acabaram descontando na alimentação. Elas estão mais tempo em casa, não conseguem fazer exercício, têm acesso fácil à comida e tudo isso junta com o emocional”, explica.

No próprio AMBULIM, centro de referência em transtornos alimentares na América Latina, notou-se uma recidiva nos sintomas dos pacientes com bulimia nervosa, anorexia nervosa e transtorno de compulsão alimentar.

“Com toda a incerteza de quanto tempo a pandemia ia durar, a preocupação de pegar o vírus, a questão financeira… algumas pessoas acabaram descontando na alimentação. Elas estão mais tempo em casa, não conseguem fazer exercício, têm acesso fácil à comida e tudo isso junta com o emocional”

Nicoli Brek, nutricionista comportamental

Aqueles com bulimia nervosa ou transtorno de compulsão alimentar passaram a comer de forma mais descontrolada em curtos períodos de tempo. Por consequência, o primeiro grupo também aumentou o uso de práticas compensatórias inapropriadas (laxantes, vômitos, diuréticos, atividades físicas exageradas etc.). Já aqueles com anorexia nervosa, que têm um medo intenso de comida e de engordar, tiveram mais dificuldade para se alimentar normalmente – estavam sozinhos em casa sem ninguém para ajudá-los ou em constante vigilância por terem de realizar todas as refeições com a família.

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“Fizemos um esquema de rodízio para acolher os pacientes mais graves, pois os residentes que realizam os atendimentos estavam deslocados para cuidar da Covid-19 em outros setores do hospital”, conta Roberta. Devido à pandemia, o trabalho presencial que as equipes do AMBULIM faziam todas as sextas-feiras foi suspenso e apenas os atendimentos psiquiátricos foram retomados em julho. Os psicólogos e nutricionistas continuam atendendo online.

Essa interrupção mandatória também contribuiu para a piora importante dos sintomas de transtornos alimentares. “Vimos pessoas com anorexia que, por não terem o atendimento presencial todas as semanas, emagreceram muito. Uma paciente bulímica, que estava super controlada, regrediu e voltou para a estaca zero”, relata a psiquiatra. “Tivemos de internar com urgência pacientes que estavam com IMC menores que 14. Isso é extrema desnutrição.”

Nesses casos, esse peso classificado como abaixo do normal pode aparecer em pessoas com anorexia nervosa, que restringem quantidade e qualidade de alimentos. “Existe uma perturbação muito grande de como esses pacientes se enxergam. Eles têm um medo gigantesco de recuperar peso e não percebem a gravidade da doença”, diz Nicoli. Sem tratamento, esse distúrbio psiquiátrico apresenta elevado risco de suicídio.

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(Arte/Redação)
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Mas, para a nutricionista, não são só os transtornos alimentares que surgirão com a crise do novo coronavírus. “Acredito que tem um paciente que vai aparecer muito que é aquele com o comer transtornado, que não preenche critério diagnóstico para transtorno alimentar, mas está preocupado com emagrecimento, imagem corporal e alimentação perfeita”, exemplifica.

A partir dos memes, tweets e comentários entre amigos, é possível perceber que essa preocupação com o corpo ficou mais latente com a quarentena. Em uma situação de estresse, muitas pessoas ganham peso, pois usam a comida como escape, principalmente os alimentos ricos em energia, com alto teor de açúcar e gordura. De acordo com um estudo da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, identificou-se que, sob ameaça, até os gafanhotos passam a comer mais plantas açucaradas.

Por outro lado, Nicoli também notou que, durante a pandemia, as pessoas adotaram hábitos positivos, como o de cozinhar. “Eu super incentivo meus pacientes a fazerem a comida em casa. É diferente o gosto, a forma com que você se relaciona com aquilo que você preparou. Você começa a perceber outras questões em relação ao alimento”, constata.

É isso que o Guia Alimentar para a População Brasileira, concebido pelo Ministério da Saúde em 2014 e referência mundial segundo a FAO, OMS e Unicef, promove. O modelo recomenda o consumo de alimentos in natura (em estado natural) e evitar aqueles que envolvem diversas etapas de processamento e muitos ingredientes, chamados de ultraprocessados, como biscoitos recheados, salgadinhos, refrigerantes, entre outros. Em setembro deste ano, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento solicitou uma revisão desse documento e o considerou como “o pior do mundo”, mesmo com comprovações científicas de que suas orientações melhoram as condições de saúde e nutrição da população.

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“Vimos pessoas com anorexia que, por não terem o atendimento presencial todas as semanas, emagreceram muito. Uma paciente bulímica, que estava super controlada, regrediu e voltou para a estaca zero. Tivemos de internar com urgência pacientes que estavam com IMC menores que 14. Isso é extrema desnutrição”

Roberta Catanzaro Perosa

Além de estimular que seus pacientes cozinhem em casa, como sugere o Guia, a nutricionista comportamental Nicoli pede para eles se afastarem das redes sociais, onde há grande espaço para comparação com corpos perfeitos e com as pessoas que conseguem se exercitar e cuidar da alimentação mesmo durante a pandemia. “Está todo mundo sofrendo, cada um de uma forma. Mas tem como passar por isso sem odiar nosso corpo”, conclui.

A Elástica conversou com quatro pessoas que têm ou já tiveram uma relação difícil com a comida e perceberam seus comportamentos alimentares se transformarem com a crise do novo coronavírus. Veja os relatos a seguir:

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(Arte/Redação)

Gabriela*
22 anos, estudante de Medicina

“A minha relação com a comida é bem complicada desde os meus 16 anos. Eu tinha muita insegurança com meu corpo e meu peso no geral. Sempre que eu sentia muita ansiedade, tinha vontade de vomitar. Com isso, vomitava muito fácil e percebia que emagrecia. Então, comecei a vomitar o que eu comia. Enquanto estava no cursinho, tive a chance de fazer academia e, por um problema de saúde, precisei mudar minha alimentação. Por eu sentir mudanças no meu corpo, comecei a focar mais ainda na academia e passei a ter medo de comida. Eu estava num ponto em que gostava do meu corpo, nunca 100%, mas comer qualquer coisa que não estivesse dentro do que eu tinha combinado com a nutricionista da época me fazia passar mal. Quando entrei na faculdade, a relação com a comida piorou. Eu ficava em dois extremos: evitava comer ou comia demais e vomitava. Tinham vários momentos que eu gastava todo dinheiro que eu tinha no bolso e no cartão para comprar comida. Eu comia até o estômago doer e depois vomitava. Chegava a sair sangue da minha garganta, ficava vários dias rouca. Eu comia coisas que nem gosto, porque elas eram mais fáceis de vomitar.

Em 2017, comecei a melhorar sozinha quando passei a pensar sobre veganismo. Por pensar na comida como algo maior do que algo que me fazia emagrecer ou que fosse puramente biológico para o meu corpo, tornei dela algo voltado para a ética. Mas, em 2018, meu avô faleceu e tudo voltou de novo. Eu parei de me importar com a questão da ética e deixei de ser vegana. Tinha vezes que, se eu ficasse o dia em casa, eu ia passar o tempo todo cozinhando, comendo e vomitando. Não era por vontade, mas, sim, por ansiedade, por não saber lidar com o que eu estava sentindo. Eu parei de sair com as pessoas. Não conseguia, porque tudo envolve comer. E, se eu comesse, precisaria dar um jeito de ir embora para vomitar. No final do ano, comecei um tratamento com um psiquiatra em quem eu confiava e ele me indicou a nutrição comportamental. Entrei em processo terapêutico e fui percebendo que eu tinha muitas críticas a alguns alimentos por causa do controle com que eu comia. Eu tinha aversão a arroz e feijão. Fui voltando a comer alguns alimentos aos poucos e aprendi a dizer não para a comida, porque, antes, ou eu evitava comer ou comia tudo que aguentava. Hoje, estou reaprendendo o que é saciedade e não me considero mais vegana, porque não posso restringir alimentos específicos nesse meu momento de vida.

“Percebi que eu tinha muitas críticas a alguns alimentos por causa do controle com que eu comia. Eu tinha aversão a arroz e feijão. Fui voltando a comer alguns alimentos aos poucos e aprendi a dizer não para a comida, porque, antes, ou eu evitava comer ou comia tudo que aguentava”

Gabriela*
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Com a pandemia, foi outro processo. Em uma rotina normal, eu mantinha essa guerra com a comida só quando eu estava em casa e quando eu precisava comer. Se eu estava fora, podia me entreter e manter um ritmo de pessoas que não tem tanta ansiedade com comida quanto eu. A quarentena me colocou muito em xeque em relação a isso. Eu moro sozinha, mas fiquei na casa dos meus pais até o dia 10 de agosto. A convivência acabou sendo uma faca de dois gumes: muitas vezes eu copiava a maneira que eles comiam e me segurava ou me desesperava. Como as distrações ficaram todas para um EAD ou simplesmente não existiram, percebi que minha atenção tinha voltado completamente para a comida. No começo, eu achava que estava bem, mas, na verdade, estava evitando muito comer ou comendo demais em momentos que não faziam sentido. Mas, quando voltei pra minha casa, não fiquei naquela cobrança de querer seguir um padrão que não necessariamente é o meu. Eu relaxei mais. Depois que minha rotina voltou com a faculdade, comecei a comer de forma mais equilibrada, mas estou com medo de vestir várias roupas que tenho. Eu, como várias pessoas na quarentena, acabei engordando um pouco e foi um choque gigantesco. Como eu só estava usando pijama e moletom, eu fugi bastante de olhar pro meu corpo. Agora comecei a olhar para ele e, não vou mentir, está sendo complicado aceitar as mudanças que aconteceram. Apesar de eu ter vários sentimentos ruins em relação ao meu corpo, aprendi a deixar isso de lado em vários momentos. Não vou ficar pensando o dia todo nisso, nem deixar de comer por conta disso. Não vou machucar meu estômago, minha garganta ou ficar ansiosa. Eu aprendi a não tornar da comida um monstro e, sim, uma parte da minha vida.”

*O nome da entrevistada foi alterado para preservar sua identidade

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(Arte/Redação)

Victor Medeiros
29 anos, terapeuta ocupacional e funcionário do SUS

“Creio que a relação com comida é de muito prazer e, às vezes, de um prazer imediato. Tenho estado numa transição para um melhor planejamento e uma reconciliação com os sinais do meu corpo depois que iniciei o acompanhamento nutricional durante o período de pandemia. Minha relação com a comida é muito pessoal, é esse comer associado às emoções, ao estresse, à correria do dia a dia. Como trabalho com saúde, eu acabei não parando de trabalhar – acho até que estou trabalhando um pouco mais. Além disso, a gente está vivendo um sentimento de medo. No meu trabalho, tive mais contato com pessoas e notícias do dia a dia dos hospitais. Muitas adoecendo, falecendo. Também existe uma indignação de como o governo tem lidado com a pandemia de uma forma irresponsável, negligente, que expõe e deixa seus cidadãos à mercê do que for. Se não for da doença, à mercê da fome, violência e abandono. Isso traz aspectos negativos pra minha relação com o corpo; às vezes eu sinto uma desconexão com ele. Esse comer relacionado às emoções passa a ser automático e a gente vai se desvencilhando dos sinais, das vontades, da fome.

“A diferença que eu senti foi chegar na frente da nutricionista comportamental, falar sobre minha rotina e não receber uma dieta, um número e nem uma meta. Mas como construir ferramentas para repensar essa relação com a fome e a saciedade”

Victor Medeiros
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Faço terapia há 5 anos e me ajuda muito a conseguir pensar um pouco mais perto dos meus sentimentos. Começar o acompanhamento nutricional durante esse período, também, foi de grande importância. Excedeu bastante as expectativas. Trouxe um ponto de reflexão, de aproximação com os sinais que são do nosso corpo, da nossa história, da nossa cultura e de uma valorização muito grande das nossas vontades. A diferença que eu senti foi chegar na frente da nutricionista comportamental, falar sobre minha rotina e não receber uma dieta, um número e nem uma meta. Mas como construir ferramentas para repensar essa relação com a fome e a saciedade, consequentemente com os alimentos, com o lugar social e emocional que a comida tem nas relações humanas, nas dinâmicas familiares e culturais.

Com a pandemia, existirão problemas de transtornos alimentares, mas acho que, antes, haverá um problema na disponibilidade alimentar, no acesso que as pessoas vão ter ao alimento. A gente vai falar de fome nos próximos anos no Brasil. Depois disso, acho que sim, aparecerão mais transtornos alimentares. Muito ligados a questão emocional, que vêm de um grande trauma, mas já são um reflexo de um mal estar que existe na nossa sociedade sobre as relações de trabalho e a opressão. Essa pandemia só traz à tona muitos dos problemas que a nossa sociedade enfrenta com a nossa estrutura cheia de contradições.”

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(Arte/Redação)

Marina Pecucci
30 anos, servidora pública

“Eu associo muito minha relação com comida à minha relação com meu corpo. Isso eu digo hoje, depois de um início de processo com uma nutricionista comportamental, em que tenho me enxergado de uma outra forma. Antes de procurar esse tratamento, sempre busquei um corpo magro que não condiz com a minha realidade corporal, de vida e nem com a minha relação com a comida. Eu sou uma pessoa que gosta muito de comer, de cozinhar, preparar as coisas, ir ao mercado, escolher restaurantes, pratos… então, acho que, hoje em dia, posso dizer que minha relação com a comida é muito bacana. Antigamente, não era assim. Eu sempre quis emagrecer, ser magra, seguir o padrão de um corpo magro, e isso era muito difícil pra mim, apesar de eu ter conseguido algumas vezes, mas às custas de coisas que deixei de viver. Me restringi, sofri e me maltratei.

Meu último processo de emagrecimento, dentre vários que tive ao longo da minha vida, começou em 2018, em um momento que eu estava mais gorda, com quase 90 kg. Fui procurar uma nutróloga e comecei um tratamento com ela, com medicação e acompanhamento. Emagreci 18 kg em dois anos. Até que, no começo da pandemia, o remédio que eu tomava parou de ser distribuído. Tentamos um outro remédio e não me adaptei muito bem. Junto a isso, nos primeiros dois meses da quarentena, engordei 7 kg. Então, comecei a ficar muito desesperada e preocupada em engordar tudo que tinha emagrecido ao longo de dois anos. Eu percebi que o remédio tinha uma influência muito grande, porque, a partir do momento que parei de tomá-lo, veio essa avalanche de quilos. Isso aconteceu não só por ter retirado o remédio, mas, também, porque começou a pandemia. Fiquei muito ansiosa, passei a comer muito, a tratar a comida como uma válvula de escape. Além disso, eu nunca tinha tratado das minhas questões alimentares.

“Não tenho um corpo magro, não sei mais se quero ter e vejo que fazer minha própria comida do zero, saber tudo que eu estou comendo e comer com o maior prazer do mundo me traz muito mais alegria do que ser igual a maioria das mulheres”

Marina Pecucci
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Associados a esse processo de tratamento com a nutricionista, meu marido e eu passamos a cozinhar muito mais. A gente sempre gostou de cozinhar, comemos pouco fora de casa, pedimos pouco delivery. Mas, durante a pandemia, isso se intensificou. E aí começou um festival gastronômico, de pão à sorvete e todos os tipos de massa. Eu faço macarrão do zero, a gente faz os molhos e a pizza. Ao mesmo tempo, isso começou a me despertar um pouco de desespero, porque tinha pão e doce todo dia em casa, e eram coisas que eu não comia. Isso me gerou um pouco de ansiedade e fiquei com medo de que essas comidas fossem me dominar. Ao mesmo tempo, fui trabalhando isso com a nutricionista. Não era isso que me faria ter o corpo que tenho, é uma série de fatores.

Dentro desse desespero, peguei covid-19 e perdi meu paladar e olfato. Eu passei a sentir pouca fome e pouca vontade de comer. Veio minha angústia, porque uma das únicas coisas que vinham me distraindo na quarentena e me trazendo muita alegria era poder cozinhar na minha casa tudo que eu queria, comer as coisas que eu tinha feito. Agora está começando a normalizar, mas, logo que aconteceu, eu também fiquei com muito receio de que, quando voltasse, eu quisesse comer muito. Esse era outro medo que eu trabalhei com a nutricionista e minha psicóloga. Hoje, estou comendo de um jeito equilibrado e estou mais feliz. Priorizo mais o meu bem-estar do que a minha imagem externa, que não está como a sociedade entende como correta. Não tenho um corpo magro, não sei mais se quero ter e vejo que fazer minha própria comida do zero, saber tudo que eu estou comendo e comer com o maior prazer do mundo me traz muito mais alegria do que ser igual a maioria das mulheres.”

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(Arte/Redação)

Vera Vozzo
66 anos, publicitária

“Eu sempre gostei muito de comer, cozinhar, sempre tive um paladar muito apurado e gostei de aprender coisas novas. A alquimia da cozinha pra mim é fantástica. Só que, com o passar dos anos, eu comecei a extrapolar em relação à quantidade. Uni alguns fatores emocionais com a compensação pela comida. Meu trabalho era muito intenso, sempre fui uma pessoa ativa, jogo vôlei, faço pilates e musculação… quando veio a pandemia, tudo parou. Fiquei cinco meses sem trabalhar. Eu estava num processo de uma dieta restritiva por quase um ano e emagreci 33 kg. Quando tudo parou, fiquei muito perdida e já não estava dando conta dessa dieta meio maluca. Tive um processo bem desanimador, quase depressivo e acabei compensando na comida. Toda a minha frustração era voltada a comer algo gostoso para ficar bem.

Nada me alegrava. Eu fazia pilates e me propuseram aulas online, mas eu me sentia muito só, não tinha com quem conversar mesmo com as pessoas lá. Não era a mesma coisa. Pra mim, reunir pessoas é muito importante. Eu fiz uma ou duas aulas e não quis mais. Eu acabei me abandonando. Além de estar exagerando na comida, eu não tinha mais vontade de nada. As pessoas falavam que ia passar, mas não passou. Eu tenho dois netos e fiquei quatro meses sem vê-los. Foi muito difícil. Tive um apoio do tratamento que eu fazia, com reuniões uma vez por semana, mas eu não estava conseguindo lidar bem com a comida e me sentia culpada de estar fazendo tudo errado. Além disso, eu tive uma suspeita de covid-19 e fui ao hospital fazer uma tomografia. Vi que estava com pneumonia e iniciei o tratamento com cloroquina. Fiquei muito preocupada. Mas, ao mesmo tempo, tive sintomas bem suaves. Cuidei por 20 dias, tomando remédio, ficando apreensiva. O grupo de terapia me ajudava, mas, mesmo assim, nada me motivava a não ser uma comida gostosa.

“Nessa pandemia, aprendi que, apesar de eu estar com problemas emocionais, posso comer coisas que são supostamente perigosas, proibidas e engordam. Isso me deu um alívio tão grande e uma consciência de que tudo pode, desde que você coma mesmo porque está com fome e vontade”

Vera Vozzo
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A minha vida sempre foi assim: emagrece 10 kg, ganha 15, emagrece 15, ganha 20. Eu fiz dieta praticamente minha vida inteira, as mais modernas que você pode imaginar: injeções de thiomucase, anfetaminas, a dieta da lua, da água, da fruta… eu lembro uma época que tinha um médico muito famoso, eu fui nele e emagreci por volta de 20 kg. Mas quando ele falou que eu estava de alta, parece que bateu um sininho que disse “você não merece essa autoestima, se sentir bonita e desejada”. Eu abandonava a manutenção de qualquer dieta que fazia. E, lógico, a longo prazo, engordava tudo aquilo e um pouco mais. Mas nessa abstinência, nessa dieta super restrita, eu não podia sair com amigos porque tinha que levar marmita, não podia sentar com a família porque só podia comer uma coisa e eles queriam outra. Eu me afastava do mundo pra emagrecer. Tudo bem, eu consegui, mas e daí? Vou passar o resto da minha vida assim? Deixando de viver e conviver com as pessoas que eu gosto? Comendo coisas que eu gosto?

Nessa pandemia, aprendi que, apesar de eu estar com problemas emocionais, posso comer coisas que são supostamente perigosas, proibidas e engordam. Vou contar um exemplo: quando eu voltei pro pilates presencial e estava indo para casa a pé, tinha uma padaria maravilhosa e eu fiquei com muita vontade de entrar lá. Eu vi que estava aberta e, mesmo já tendo tomado café naquele dia, pedi um café com leite delicioso. Aí vi um cara na padaria comendo um pão na chapa, que eu não comia porque era proibido ou, quando comia, era escondido e com medo da balança acusar o que tinha comido. Nesse dia, pensei que aquele pão maravilhoso que o moço estava mordendo, eu poderia comer a qualquer momento. Isso me deu um alívio tão grande e uma consciência de que tudo pode, desde que você coma mesmo porque está com fome e vontade. Ainda existem momentos em que estou com raiva ou triste e quero comer. Mas hoje olho pra essa sensação e tento ver se é fome, desejo, angústia ou compulsão. Hoje, muitas nutricionistas acreditam que dietas restritivas geram descontrole e transtornos alimentares. Eu percebi isso em mim. Eu aprendi com as dietas a compensar todas as dificuldades. É como se meu corpo precisasse se proteger para aguentar o tranco da vida. Hoje, eu estou feliz com meu peso e em paz.”

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