A maior travesti do mundo
Nos últimos três anos, Brunna fazia parte da coordenação do Grupo de Trabalho (GT) de Travestis, Transexuais, Intersexuais e pessoas Não Binárias da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Ela ficava na linha de frente do trio elétrico que representava o orgulho travesti em uma das maiores paradas LGBTs do mundo. “As atividades duravam junho inteiro. No dia do desfile, a Brunna ficava no chão, coordenando quem entrava e saía do trio, cuidando de quem passava mal, segurava a corda, sambava, dava entrevista, depois voltava e fazia tudo de novo”, lembra a amiga Maite Schneider, que também coordena o GT e é cofundadora do Transempregos, programa de empregabilidade para pessoas trans.
“Quando terminava o desfile, a gente saía descalça, com o sapatinho na mão, e ia comer um podrão. Cansadas, com os pés pra cima, comentávamos: ‘Nossa, a gente é mais louca do que tem juízo”, diverte-se.
Maite lembra ainda das vezes em que Brunna saía para distribuir camisinhas de madrugada para as mulheres que trabalhavam na prostituição e voltava sem blusa, já que a cedia para quem estivesse passando frio. “Ela fazia isso mesmo com a saúde frágil. Mas acho que esse desprendimento e essa coragem fizeram bem a ela. Foi o trabalho que a manteve viva.”
Ariadne Ribeiro se recorda do esforço que Brunna fazia para que o mercado do sexo não fosse a única opção para suas companheiras de sigla. Talvez, porque ela própria tenha conhecido de perto as questões da prostituição, como sempre falou abertamente. “Ela fazia um trabalho incrível com a população trans mais marginalizada do centro de São Paulo, essas pessoas que chegam, expulsas de casa, acreditando que vão ter uma chance e acabam se deparando com assassinatos, torturas e uma série de violações causadas pelo próprio Estado. Diante de uma vida tão difícil, o abraço da Brunna era o bálsamo que essas pessoas precisavam”, Ariadne.
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Através das oficinas que ministrava no CRD, Brunna tentava resolver um dos maiores entraves para a entrada das mulheres trans e travestis no mercado de trabalho: a qualificação. “A maioria das pessoas trans é expulsa de casa, são evadidas dos colégios por não terem apoio pedagógico, consequentemente, muitas não têm capacitação, o que dificulta a entrada nas empresas. Sem contar que ainda temos um número muito maior de brancas sendo empregadas”, explica Maite Schneider, lembrando que, mesmo com as dificuldades, já conseguiu empregar mais de 3 mil pessoas trans no Brasil inteiro.
“A maioria das pessoas trans é expulsa de casa, são evadidas dos colégios por não terem apoio pedagógico, consequentemente, muitas não têm capacitação, o que dificulta a entrada nas empresas”
Maite Schneider
A força para romper o ciclo de desigualdades era grande dentro de Brunna. E se manteve potente até seus últimos momentos. “Lembro de uma festa de aniversário, em que ela me chamou para avisar que iria tomar um remédio forte. Ela falou: ‘Não deixa ninguém entrar, depois que eu passar mal, vou tomar banho, me arrumar e fico lá com vocês.’ Tudo sempre estava bem para ela”, diz a bisneta Marianne Clemente. “Ela não perdeu a luta para o câncer, porque ela nunca parou de lutar.”
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Essa força foi importante para o movimento trans lidar com as perdas dos últimos meses. Duas semanas antes de partir, Brunna lamentou a morte de outra ativista que a chamava de mãe, Agatha Lima, criadora da ONG ASGATTAS, vítima de uma infecção por silicone industrial. Três semanas após a partida de Brunna, a militância perdeu outra de suas amadrinhadas, Amanda Marfree, que se infectou com o novo coronavírus, ao continuar levando assistência às pessoas trans durante a pandemia. Amanda era orientadora socioeducacional e assumiu o lugar de Brunna no CRD. “No momento que eu mais precisei, a Brunna me puxou”, registrou ela, em um vídeo nas redes sociais.
Nos últimos anos, além da família de movimento, Brunna também estava próxima da família biológica. A todos eles, ela deixa um legado de força e potência. Sentimentos que Aline precisou resgatar ao se despedir da tetravó no hospital. “Ela já estava mal, quando se foi na minha frente. Lembro de olhar para ela e falar: ‘Não vai, não, vó, tem tanta coisa ainda para lutar”, lembra, emocionada. “Foi triste, mas me sinto muito honrada, porque foi uma travesti a se despedir da maior travesti do mundo.”
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As imagens que abre essa reportagem foram feitas por Ara Teles. Confira mais de seu trabalho aqui