Ativista ambiental, produtora-executiva de "O Território" e uma das vozes da nossa geração reforça que a luta indígena pela preservação é uma luta de todos
por Alexandre MakhloufAtualizado em 9 set 2022, 17h02 - Publicado em
8 set 2022
10h22
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esde 2018, o dia 5 de setembro ganhou mais importância. É quando celebramos o Dia da Amazônia – data instituída para conscientizar a população sobre a preservação da floresta mais importante do mundo. Mas para Txai Suruí, ativista indígena de 25 anos, todos os dias são importantes na preservação da Amazônia.
Talvez você já tenha ouvido falar no trabalho de Txai por conta de seu discurso histórico na COP 26, em novembro do ano passado. Ela foi a única brasileira a subir ao palco do evento, com uma fala potente sobre a importância dos povos indígenas para o Brasil e para o mundo na manutenção da nossa biodiversidade – e do impacto que o desmatamento tem nas mudanças climáticas.
Filha do cacique Almir Suruí, uma das vozes indígenas mais proeminentes do país e ferrenho defensor dos direitos indígenas em Rondônia, Txai ganhou mais um título nos últimos tempos além de “ativista ambiental” e “voz da nossa geração”. Ela assina a produção executiva de O Território, um documentário da National Geographic Films realizado em coprodução com o povo Uru-Eu-Wau-Wau e com estreia nos cinemas de todo Brasil nesta quinta-feira, 8.
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“Falar sobre indígenas no cinema é algo que já foi feito, mas contarmos a nossa história através do nosso olhar é praticamente inédito. Quando você filma, você mostra o que você vê, como você vê. Além de trazer nosso olhar, o filme é uma denúncia para o mundo inteiro”
Duas vezes premiado em Sundance e selecionado para mais de 100 festivais ao redor do globo, o longa mostra como os povos indígenas estão usando a cultura como ferramenta para chamar a atenção para a realidade e violência que vivem em suas terras.
Nele, é possível ver um retrato fiel dos grileiros de terra – humanizados, até, ainda que sejam figuras que ocupam um papel importante no desmatamento –, as ameaças que os ativistas que defendem a Amazônia sofre e como o descaso do governo, combinado com a ganância das grandes empresas, pode ser a receita letal para que a Amazônia atinja seu ponto de não retorno. Ou seja, quando a floresta está tão destruída que não conseguirá se recuperar.
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“Falar sobre indígenas no cinema é algo que já foi feito, mas contarmos a nossa história através do nosso olhar é praticamente inédito. Quando você filma, você mostra o que você vê, como você vê. Além de trazer nosso olhar, o filme é uma denúncia para o mundo inteiro”, Txai fala à Elástica, em um papo por vídeochamada diretamente de Nova York, onde, na data, tinha participado de uma exibição do filme no Central Park para mais de mil pessoas, com presença de muitos brasileiros.
Durante quase uma hora, conversamos com Txai Suruí e, mesmo que tenha sido pouco tempo, é fácil perceber porque tanta gente considera ela uma voz da nossa geração. O título é justo, merecido e necessário. Com clareza na fala, bom humor e uma vontade de transformar o mundo que não encontramos tão facilmente por aí, nós conversamos com ela sobre o documentário, a descoberta de seu propósito ativista, política, meio ambiente e as eleições que vêm aí.
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“A gente nunca passou um momento como agora, de ataque ao meio ambiente. Temos um presidente que é genocida, que desde a campanha falou que não ia demarcar um centímetro de terra pra indígena ou quilombola – isso está no filme e não pode ser ignorado. Isso sem dúvida incentivou estarmos com os maiores índices de desmatamento, mulheres sendo estupradas, assassinato de crianças Yanomami. Vivemos uma luta diária pelas nossas vidas.”
Vale lembrar também que, nesta quinta-feira, 8, rola uma exibição de O Território no Cine Marquise do Conjunto Nacional com bate-papo com Txai e outros integrantes da equipe do filme. O documentário é forte e necessário para os tempos atuais e, se você considera a preservação da Amazônia urgente, não deixe de conferir – especialmente nas primeiras semanas de estreia.
O Território é muito impactante e o documentário foi premiado em Sundance e selecionado para mais de 100 festivais. Qual a sensação de ver o filme pronto? É sensacional ver o filme indo para o mundo inteiro. Além do lançamento nos Estados Unidos e no Brasil, teremos estreias em diversos outros países, como Austrália e Canadá, em que a distribuição será feita por produtoras indígenas e aborígenes. Isso era muito importante para nós porque é o cinema é um espaço pouco ocupado por indígenas. Um dos principais diferenciais de Território, inclusive, é ser filmado por indígenas, pelo povo Uru-eu-wau-wau, e isso tem uma força e um impacto grande.
Falar sobre indígenas no cinema é algo que já foi feito, mas nós contarmos a nossa história, através do nosso olhar, é praticamente inédito. Quando você filma, você mostra o que você vê, como você vê. Além de trazer nosso olhar, o filme é uma denúncia para o mundo inteiro. Tem muita gente no brasil que não sabe o que tá acontecendo, que acha que o desmatamento é só cortar árvores, mas ele tem efeitos nas populações e impacto no mundo inteiro. O que acontece nas terras indígenas, quem comete os crimes não têm medo, por causa da impunidade – com raras exceções, como o caso de Bruno [Pereira] e Dom [Philips]. Fora o incentivo que vem do governo, né? Ele é mais do que omisso, o governo incentiva a destruição da floresta.
Como foi a experiência de atuar como produtora-executiva de um filme desse porte? Acho que é mais importante mencionar que a gente trabalha principalmente na campanha de impacto. É muito mais do que um filme para nós: estamos fazendo eventos e propondo outras coisas para além do longa. Estamos construindo um centro multimídia no território Uru-eu-wau-wau, com dinheiro do filme e dinheiro da campanha de impacto. Vai ter ilha de edição e tudo, para que eles continuem com o trabalho não só de monitoramento do território, mas também de arte cinematográfica, de guardar a nossa cultura, que é pra isso também que a gente usa as câmeras. Também estamos conversando com a Domestika para oferecer cursos para os Uru-eu-wau-wau.
Outra coisa é que, quando estávamos nos festivais, eu via que as pessoas ficavam mais impressionadas quando entendiam que eu era a produtora-executiva e não uma personagem. Os povos indígenas estão em todos os cantos. No cinema, nas artes, tudo. Talvez a gente só tenha conseguido essa visibilidade, esse tamanho que nem a gente esperava agora no filme, mas nós sempre estivemos presentes.
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“O problema não é só o Bolsonaro. Tem grandes empresas minerando terras indígenas, destruindo floresta para produzir mais. Quando a gente fala de desmatamento, mudanças climáticas e cadeia de produção, estamos falando de direitos humanos também. e quem sofre somos nós”
Qual é a principal mensagem do filme, na sua opinião? O Território abre discussões sobre o que está acontecendo na Amazônia e mudanças climáticas, mas também escancara o problema da cadeia de produção. Existem 6 mil cabeças de gado no território Uru, e esse couro é usado para fazer banco de carro. O problema não é só o Bolsonaro. Tem grandes empresas minerando terras indígenas, destruindo floresta para produzir mais. Quando a gente fala de desmatamento e mudanças climáticas, cadeia de produção, estamos falando de direitos humanos também. e quem sofre somos nós.
Falamos de Dom e Bruno há pouco, e esse é um caso muito simbólico de como o Brasil lida com a questão indígena: morte e descaso. Como foi a questão da segurança durante as gravações? O caso deles escancarou para o mundo nossa realidade, é o que a gente vive, e é isso que a gente quer mostrar para as pessoas. Estamos construindo um plano de proteção. Tem cidades em que Gabriel, meu marido e produtor do filme, não pode passar, porque eles que filmaram os invasores, então sabem quem ele é, viram seu rosto. A nossa vida é ser ameaçado.
Ia emendar essa pergunta: como é a questão da segurança no dia a dia de uma ativista? Quando eu tinha 14 anos, minha família toda foi ameaçada de morte e nós andávamos acompanhados pela Força Nacional. Você já convive com medo normal diariamente, mas essa foi a fase mais aterrorizante. Ainda que a gente não fosse ativista, não defendesse o mundo para mulheres e para indígenas, você não se sente seguro. E aí quando você é ativista, quando fala o que ninguém quer ouvir e denuncia o que as pessoas têm muito poder estão fazendo de errado, você coloca sua cabeça a prêmio. Durante o filme, tivemos diversos cuidados. Gabriel trocou de chip diversas vezes, praticamente toda semana, porque descobriam o número e enviavam ameaças. O instagram dele foi hackeado ontem [um dia antes da entrevista], até a mãe dele foi ameaçada de morte.
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Mas existem dois lados. A visibilidade traz proteção também. Depois do lançamento em todos os cinemas, espero que isso aumente nossa segurança. Estamos nos cuidando, mas não é fácil, são muitas pessoas poderosas contra a gente.
O ativismo corre nas suas veias, já que seu pai é uma das principais vozes contra o desmatamento em Rondônia, e você coleciona primeiras vezes: a primeira da família a cursar direito, primeira a falar num evento do tamanho da COP. Em que momento entendeu que esse era o seu propósito? Acho que ainda estou entendendo e aprendendo. De vez em quando, sinto a dificuldade de ser a primeira, porque é solitário. Mas lembro de quem vem comigo, depois de mim, e isso faz eu me sentir melhor. Também é muito legal se sentir desse jeito, que você está abrindo aquele caminho e que não é só pra você. Não só como inspiração, mas de ocupar novos espaços.
Seu discurso na COP 26 é memorável, e é incrível ver mais pessoas indígenas participando desses eventos, que são uma vitrine. Mas, no dia a dia e nas esferas locais, as autoridades estão ouvindo mais também? Qual o desafio de, além de ocupar esses espaços de destaque mundial, ter pessoas indígenas ouvidas no cotidiano das nossas cidades? Essa visibilidade faz muita diferença, sim. Uma vez, alguns indígenas organizaram um protesto contra um sub sistema do SUS que cuida da saúde indígena, pedindo melhorias, e me chamaram para participar, para dar força para a reivindicação de saúde melhor do indígena em Rondônia.
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Saiu na mídia que eu fui e eu senti que o coordenador da entidade me tratou diferente, me mandou mensagem depois para falar o que seria decidido – eu tive que sair mais cedo –, então é importante, sim. Principalmente para fortalecer as vozes indígenas para que elas tenham essa força de poder falar na esfera local. Visibilidade é poder denunciar o que está acontecendo e as pessoas não sabem. É importante que a gente possa falar, mas também que as pessoas ouçam.
“Visibilidade é poder denunciar o que está acontecendo e as pessoas não sabem. É importante que a gente possa falar, mas também que as pessoas ouçam”
O Chile, que historicamente antagonizava os povos originários, assim como o Brasil, agora está construindo uma nova política incluindo vozes indígenas. O que falta para que aqui aconteça algo semelhante? Falta preocupação da esquerda de incluir mais os povos indígenas nas discussões e nos espaços de decisão? Essa é uma óóótima pergunta [risos]. Não sei a resposta exata, vou falar o que penso: acho que tem a ver com o processo histórico. A gente não pode achar que as pessoas de esquerda tiveram uma educação diferente da direita. Nas escolas, a história dos povos indígenas não é contada, o que as crianças aprendem ainda é o que eu aprendia quando estava na escola, que era sobre o descobrimento do Brasil, somado a esse estereótipo do que é o indígena, que não pode ter telefone. A gente tem que ser sincero aqui: todo mundo tem preconceitos. Todos. E as pessoas da esquerda também. Talvez falte a gente recontar a nossa própria história, ouvir dos povos indígenas o que é ser indígena. Quanta sabedoria que os povos originários tem e a gente não está escutando!
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Minha mãe fala uma frase perfeita: estão queimando a Amazônia sem saber. Quantos remédios naturais, quantas curas para doenças que os povos indígenas conhecem? Quanta sabedoria a gente não tá deixando de ouvir? O que as pessoas da cidade, da esquerda mesmo, sabem sobre os povos indígenas? Qual é o conhecimento que as pessoas têm sobre o que é ser indígena? No brasil, são 305 povos indígenas, mais de 200 línguas diferentes, imagina o tanto de sabedoria e cultura existe aí. Por que a gente valoriza a cultura de outros países, a língua, e não faz isso em um país tão rico como o nosso? A gente, enquanto esquerda, tem que escutar mais. O nosso país não foi descoberto, ele foi invadido. Eu não deixo de ser indígena ao carregar um celular ou quando moro na cidade.
“A gente, enquanto esquerda, tem que escutar mais, recontar a história. O nosso país não foi descoberto, ele foi invadido. Eu não deixo de ser indígena ao carregar um celular ou quando moro na cidade”
Que sabedorias são essas? Os povos indígenas têm um olhar diferente sobre o mundo, sobre coletividade, vida e respeito. Hoje mais cedo estava conversando com o João Moreira Salles e disse: a Amazônia não é uma luta minha, é de todo mundo. É uma das maiores riquezas do nosso planeta e as pessoas que vivem na cidade tem uma desconexão com isso. Ele concordou e respondeu: “não tem como a gente lutar por uma coisa se a gente não ama ela – e como a gente vai amar algo que não conhece? É isso que acontece com a Amazônia e com os povos indígenas”. Fundamentalmente, quando a gente fala em preservação, a gente fala sobre amor pelos outros e pela floresta.
As eleições estão chegando e temos vários candidatos indígenas no país todo. Por que é importante que mesmo pessoas não indígenas se abram para essas pautas e coloquem esses candidatos em seus radares? Sem o voto do não indígena, os povos indígenas não vão se eleger nunca. Vocês têm que entender a importância do voto de vocês. Estamos falando de um dos piores momentos que a Amazônia viveu, a maior crise climática que já vimos. O mundo está acabando – os cientistas que tão falando, não eu. Por que ninguém tá fazendo nada?! A gente já está sofrendo as consequências. Furacão, enchente, gente morrendo de calor. A nossa floresta está quase no ponto de não retorno. Imagina isso virar um deserto? Estamos condenando nosso futuro.
“Sem o voto do não indígena, os povos indígenas não vão se eleger nunca. Vocês têm que entender a importância do voto de vocês. Estamos falando de um dos piores momentos que a Amazônia viveu, a maior crise climática que já vimos”
Mas nós, povos indígenas, não estamos aqui para trazer uma história de tragédia, mas de resistência, como fazemos há 500 anos. A Amazônia é um grande jardim que nós ajudamos a construir. É preciso entender a importância dos povos indígenas quando falamos de qualidade de vida, de mundo melhor. Falar de meio ambiente e saneamento básico, transporte público de qualidade. Precisamos parar de olhar para o meio ambiente como algo compartimentado. Meio ambiente é tudo: saúde, segurança, educação. É uma pauta suprapartidária, vai além de um candidato, de um projeto de governo. É falar do futuro, do país que a gente quer construir. E nós, povos indígenas, estamos trazendo essa pauta porque é a pauta das nossas vidas.
Estamos com uma campanha para essas eleições, a Bancada do Cocar, como eu gosto de chamar, lançando várias candidaturas indígenas com representatividade, porque proposta vazia não adianta de nada. Até o Mourão falou que é indígena… Não precisamos mudar só o presidente, mas mudar o Congresso também. Muito do que aconteceu é por causa dele, que defende as pautas do agronegócio e do conservadorismo.
Você foi citada em um dos trabalhos recentes de Marina Abramovic, em que ela te define como “heroína”. Para fechar, queria saber o que é, para você, ser herói? Acho que ser herói é cada pessoa atravessada desse Brasil. Não só os povos indígenas, mas o povo preto, pessoas LGBT, as mulheres, todo mundo que vem lutando por um país melhor, pelos direitos humanos. Que vem nessa resistência e que pra gente tudo é político. Estamos fazendo do Brasil um lugar diferente só de ocupar espaços e sobreviver todos os dias. Toda pessoa atravessada é um herói. Quem luta contra o sistema que come a gente todo dia, é herói. Quando a gente diz “hoje não” pro sistema, a gente é herói. E não preciso salvar uma cidade ou o mundo como os dos cinemas. Eu posso salvar o meu lugar. Heróis são os Uru-eu-wau-wau que a gente mostra no filme, que salvam o espaço deles, que transformam o lugar que a gente vive – que nunca foi bom pros povos indígenas.