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Não precisa ter medo da ordem dos vampiros brasileiros

Fundada em meados de 2003 por Lord A, rei da dinastia Sahjaza, a Rede Vamp é uma das maiores comunidades vampíricas do país

por Renata Moniz Atualizado em 23 nov 2021, 11h45 - Publicado em 15 out 2021 00h59

Qual a primeira imagem que vem na sua cabeça quando você pensa na palavra “vampiro”? Se a sua resposta for “The Vampire Diaries” (2009-2017), “Crepúsculo” (2008) e “True Blood” (2008-2014), então as suas maiores referências partem da cultura pop contemporânea. Caso a sua resposta seja “Drácula”, “Família Addams” (1964-1966) e “Entrevista com vampiro” (1994), o seu repertório vem de uma época que foi muito importante para a proliferação midiática da figura do vampiro. Apesar dessas referências audiovisuais, duas coisas são certas: os vampiros estão entre nós (de uma maneira bem distante daquilo que é visto em Hollywood) e esse fenômeno não é de hoje.

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A partir dos anos 1970, a comunidade vamp internacional começa a se organizar, conforme outros grupos da vertente esotérica também iam se reunindo. Mas é apenas algumas décadas depois, em meados de 2003, que o movimento passa a se centralizar no Brasil, com o surgimento da Rede Vamp, fundada por Lord A, rei da dinastia Sahjaza. “Naquela época, nos anos 70, você tinha a bruxaria, o wicca e os satanistas se organizando em grupos e comunidades. Alguns anos antes, em 1966, você tem o “satanic panic” das pessoas acontecendo por toda parte, e no meio de tudo isso havia aqueles que encontravam no vampiro a sua figura de poder, o seu arquétipo de poder. E precisamos pontuar que dentro disso a comunidade vampírica vai se organizar em duas vertentes principais, primeiro (quantitativamente maior), o pessoal que aprecia a produção cultural (videogame, cinema, seriados, quadrinhos, história da arte, literatura, folclore) em segundo, o pessoal que encontra ali uma espiritualidade, um processo que oferece uma mística, ou como a gente prefere chamar (para resumir tudo), de cosmovisão vampírica”, conta Lord A.

Lord A
Lord A (Paulo Jorge/Fotografia)

Lord A já estava inserido dentro desse contexto vampírico, confeccionando e traduzindo textos desse universo, desde os anos 1990. Assim como qualquer atitude que seja diferente do status quo, ele sofreu bastante, especialmente ao tentar esconder a sua espiritualidade dos outros, chegando a passar por uma experiência de quase morte. Após esse episódio traumático, em 2003, ele concluiu: “se for para viver escondendo todo meu vínculo de espiritualidade, de magia, tudo isso que eu sou, só para tentar me encaixar no mundo dos outros, dizendo que eu sou uma coisa que eu não sou, ficar fazendo esse jogo social… eu cansei. Eu quase morri e agora eu quero que se foda! Eu sou um vampiro, eu vivo isso, e fui iniciado nesse meio alguns anos atrás, então tenho o conhecimento, tenho o que partilhar, o que contar, e de agora em diante eu vou publicar tudo”, relata.

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Foi nesse impulso que ele decidiu assumir de vez o lado vamp, publicando traduções de obras norte-americanas e textos vampíricos em seu blog, mas o que ele não esperava era a proporção que o seu site iria tomar. “Quando vi, fui parar no noticiário da madrugada, fazendo uma matéria onde eu simplesmente me assumia como vampiro para o hemisfério sul inteiro. Isso foi um negócio explosivo na minha vida. Eu de fato achava que ia aparecer umas cinco, seis pessoas e que pelo menos teriam algumas figuras para conversar sobre o que eu gostava, compartilhar isso, mas quando eu vi, meu site explodiu de visitação”, relembra Lord A.

Um passo importante para aqueles que cultuam a espiritualidade dentro da comunidade foi o surgimento do Círculo Strigoi, que criou uma sociedade discreta voltada para a cosmovisão vampírica, acoplando também a estrutura de estudos e práticas do hermetismo, paganismo e ocultismo. Para poder pleitear uma vaga e se tornar membro do regimento interno, os interessados devem estudar a história e os ritos vampíricos, além de escrever algumas monografias no decorrer dos anos. É importante pontuar que o indivíduo só pode pleitear uma entrada no círculo a partir dos 18 anos, e só depois dos 28 anos que essa pessoa pode se tornar um membro oficialmente.

“Tem toda uma estrutura, tem alma, tem metodologia, há um percurso a ser feito para você poder ascender nesse meio. É sempre legal pontuarmos que existe tudo isso. Não é uma coisa que a pessoa se veste diferente, põe o par de uma lente de contatos, coloca umas presas postiças e sai berrando que é vampiro, né. Espiritualidade vampírica tem éthos, práxis, toda uma estrutura que não foi inventada por nós, ela já está aí há cinco décadas, nós a integramos, somos parte dela. Qualquer pessoa que se interessa por vampiros, que gosta de tudo isso, pode frequentar as nossas reuniões, simplesmente por gostarem e se sentirem bem. Já aqueles que optam por trilhar o caminho da cosmovisão vampírica, carregam um legado espiritual diferente das outras pessoas. E essas pessoas, quando chegam na Dinastia Sahjaza, no Círculo Strigoi, ou nas outras casas que existem, tendem a encontrar uma ressonância, uma experiência sensorial diferente, porque elas percebem que estão entre afins”, afirma Lord A.

“Não é uma coisa que a pessoa se veste diferente, põe o par de uma lente de contatos, coloca umas presas postiças e sai berrando que é vampiro, né. Espiritualidade vampírica tem éthos, práxis, toda uma estrutura que não foi inventada por nós, ela já está aí há cinco décadas, nós a integramos, somos parte dela”

Lord A, rei da dinastia Sahjaza
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(Luciana Lupe Vasconcelos/Ilustração)

Alguns elementos são praticamente intrínsecos aos vampiros para muitas pessoas: sangue, luz do sol e mordidas. Afinal, isso tudo está só na ficção?

“Normalmente a noite é o nosso momento de força, charme, glamour, o ar é mais fresco, tudo fica mais interessante, nossos sentidos ficam mais aguçados. Podemos viver sobre as leis da luz do dia, mas elas não são o ponto determinante da nossa vida. Já a mordida, só se for para dar prazer para o parceiro ou para a parceira. Quanto ao sangue, já lhe adianto que todas as grandes ordens, famílias e dinastias vampíricas com história, não consomem sangue orgânico de nenhum tipo, nem de animais, nem de humanos. O sangue é a força indestrutível de viver. A cosmovisão vampírica procura a força no próprio sangue. Junto dos integrantes, nós realizamos nossas meditações, ritos e práticas em busca desse estado, onde o sangue cristaliza essa força”, diz Lord A.

Para os vampiros, a magia está presente nas práticas ritualísticas e espirituais, dentre as coisas mais simples do cotidiano. É o que explica Darius, de 28 anos, membro da comunidade vampírica. “Eu sou advogado, na época em que fui fazer a prova da OAB, eu estava morrendo de medo, já que não tinha estudado para a prova da primeira fase. Sentei na sala quinze minutos antes de começar e durante esse período de espera, eu desenhei na carteira algumas runas e passei a entoar um mantra meio baixinho, com isso, entrei em um estado meditativo. Assim que vi que havia passado na prova, fiquei muito feliz com aquilo, eu nem estava esperando esse resultado, e eu atribuo isso, em parte claro, às práticas de meditação que eu aprendi no Círculo Strigoi. A minha história é anticlimática, porque não tem grandes reviravoltas, mas eu costumo dizer que magia é isso, não aquilo que algumas pessoas se baseiam por Hollywood. É uma viagem para dentro, algo interno”, relata.

Provavelmente, a essa altura, você deve estar se perguntando “se os vampiros não fidelizam a sua relação por meio da mordida perfeita, como é que as coisas acontecem?” Existem muitos vamps que se aventuram no Tinder, outros estabelecem vínculos com pessoas fora da comunidade, mas antes de qualquer possibilidade, é importante reforçar que não existem regras que possam limitar o desejo carnal. Atualmente, Lord A é casado com Xendra Sahjaza, rainha dos vampiros, que conta o momento que eles se conheceram em 2010:

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“Era Paris, século 19, chovia, ela caminhava próximo a Catedral de Notre-Dame… E ele estava no telhado, abraçando um dos gárgulas… (risos), brincadeira. Poderia ter sido assim, mas na verdade, a gente se conheceu numa balada, em uma festa comum, gótica. Eu estava na pista de dança com umas amigas e ele estava sozinho, no canto da pista, na penumbra, flertando comigo, e eu ainda não conhecia ele pessoalmente. Uma amiga que estava junto olhou para ele e me disse ‘lembra do Lord A que eu tanto te falava? olha ele aqui’ e tudo começou assim. Então, gente, não vamos desistir de encontrar o amor da nossa vida na balada, né… Nós já estamos juntos há onze anos! Eu sempre gostei de magia, mas eu nem sonhava que existia uma comunidade vampírica aqui no Brasil. Eu não sabia de nada desse universo, nisso, quando ele me fez o convite para ir na primeira reunião do grupo, eu me encantei com tudo aquilo… Eu já gostava da parte fashionista, aí eu comecei a conhecer a parte da espiritualidade e achei fascinante. Com isso, eu fui adentrando nos estudos e tudo foi caminhando”, relembra.

Com o passar dos anos, o casal foi galgando títulos, recebendo investiduras, até que chegou o momento em que foram coroados como príncipe e princesa da dinastia. Em julho de 2018, Lord A recebe uma ligação do delegado internacional da comunidade vampírica, pedindo que ele organizasse um evento dali a vinte três dias, o que ele ainda não sabia é que nessa data, a grande matriarca, e a alta cúpula da comunidade iriam coroar a dupla como rei e rainha da dinastia Sahjaza. Outra cena memorável que aconteceu nessa mesma noite de agosto, foi o pedido de casamento do casal Gabys, de 24 anos, e Diego, de 28 anos, ambos membros da comunidade vampírica.

“Era Paris, século 19, chovia, ela caminhava próximo a Catedral de Notre-Dame… E ele estava no telhado, abraçando um dos gárgulas… (risos), brincadeira. Poderia ter sido assim, mas na verdade, a gente se conheceu numa balada, em uma festa comum, gótica. Eu estava na pista de dança com umas amigas e ele estava sozinho, no canto da pista, na penumbra, flertando comigo, e eu ainda não conhecia ele pessoalmente”

Xendra Sahjaza, rainha da dinastia Sahjaza
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(Paulo Jorge/Fotografia)
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O casal se conheceu na faculdade de cinema. Diego vinha de um histórico evangélico, mas sempre gostou de estudar crenças ocultistas por conta própria. Gabys também vinha da mesma tradição, mas quando conheceu Diego, estava noiva dentro de um relacionamento abusivo, e no meio disso tudo, conforme a intimidade entre os dois aumentava, ela passou a desenvolver um interesse pelo ocultismo também. Diego só conhecia o trabalho de Lord A pelas redes sociais, mas em 2018, junto de Gabys, decidiu participar da sua primeira festa na Rede Vamp. Assim que o casal começou a realizar as monografias para pleitear uma posição na comunidade, Diego decidiu surpreender a namorada. “No dia da festa, em agosto de 2018, ia ser uma data muito importante, por conta da posição da lua, era uma noite de muita energia. Fomos para a festa, e no meio dela, a música parou e o Lord nos apresentou para a festa, e no meio de todas aquelas pessoas, eu pedi a Gabys em casamento. Foi algo único, um jantar de gala, vitoriano, gótico, vampírico, dentro de uma mansão, em um eclipse de lua de sangue”, conta Diego.

Atualmente, somando o número das redes sociais, mailings e os volumes de venda da Rede Vamp, estima-se que a comunidade atinge de quinze a dezoito mil usuários em período de baixa, englobando pessoas de todo o país, com ênfase nas capitais. Nos períodos em que algum blockbuster vampírico aparece, esse número tende a aumentar por um tempo curto e depois volta a se estabilizar. Durante a pandemia, a comunidade vampírica operou totalmente online. Dentro do “antigo normal”, em um cenário não pandêmico, a Rede Vamp realiza vários encontros no decorrer do ano, como festas, passeios culturais, bazares, entre outros.

Depois de todo esse contexto dá para começar a entender os vampiros de verdade. Apesar do ditado popular afirmar que “a primeira impressão é a que fica”, Lord A garante que os blockbusters vampirescos ruins não têm a capacidade de afetar a credibilidade da comunidade. “Desde o final do século 19, quando o vampiro ganha a literatura, existem as febres vampíricas da cultura pop, mas elas são cíclicas, sempre vão e voltam. Aí surge a pergunta ‘Crepúsculo acabou com os vampiros?’ É claro que vão ter filmes como esse que são uma verdadeira droga, tem muita história e filme de vampiro que são ruins, mas eles não maculam o arquétipo e força vampírica que já estão estabelecidos”, conclui.

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Luciana Lupe Vasconcelos. Confira mais de seu trabalho aqui

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