uando a montagem de “Dentro” ficou pronta, no final de março, o novo coronavírus ainda não havia virado o mundo do avesso — pelo menos não completamente. A mostra reuniu obras de artistas como Carlito Carvalhosa, Cristina Canale, Fabio Miguez, Cao Guimarães e Lucia Koch na sede da Galeria Nara Roesler, no Jardim Europa, em São Paulo — a casa tem filiais no Rio de Janeiro e em Nova York. Suspenso por razões óbvias, o vernissage estava programado para o início de abril.
Para que a exposição não registrasse público nenhum, Alexandre Roesler, um dos diretores de espaço, decidiu filmá-la, com a ajuda do filho, no início da quarentena. E passou a enviar o vídeo para amigos e conhecidos com a ajuda do WhatsApp. “Despertou o interesse de muita gente e nos ajudou a ter outras ideias para continuar na ativa com as portas fechadas”, conta ele, um dos filhos da fundadora da galeria. Uma das ideias foi a versão online da mostra, exibida de 11 de abril a 30 de maio, na plataforma Artsy.
Outra iniciativa similar ganhou o nome de #arteconecta. Trata-se de uma ação que visa minimizar os efeitos da Covid-19. De seu monumental acervo, a galeria pinçou 29 obras, que, somadas, custam R$ 919.940. E tem repassado todo o dinheiro obtido com a venda do conjunto para o fundo emergencial da UniãoSP. A entidade irá gastá-lo com a compra de cestas básicas para famílias que não têm como se sustentar em tempos de isolamento social. Fazem parte do acervo doado uma escultura de alumínio de Artur Lescher, vendida a R$ 68.400; a tela “Colonies: Flowers”, de Vik Muniz, a R$ 133 mil; e a serigrafia “Pitágoras”, de Abraham Palatnik, cotada a R$ 10 mil.
No meio tempo, a Nara Roesler passou a investir em conteúdos para o Instagram, onde soma 74,5 mil seguidores. O objetivo é manter os laços com os frequentadores e, acima de tudo, com os colecionadores. “Já usávamos muito o WhatsApp para fechar negócios, mas foi preciso recorrer a ele cada vez mais, assim como às redes sociais”, diz Alexandre.
A galeria que ele dirige é uma das 57 participantes da feira virtual not cancelled Brasil, iniciada no dia 10 de junho e com término previsto para 8 de julho. Trata-se da primeira edição nacional de uma iniciativa criada em Viena e já replicada em Berlim, Paris, Varsóvia, Chicago e Dubai, entre outras cidades. A versão brasileira foi idealizada pela galerista brasiliense Karla Osorio Netto e tem como meta atrair a atenção dos colecionadores estrangeiros, que ficaram menos acessíveis com o cancelamento da SP-Arte (esta última planeja uma edição virtual para meados de julho).
Em resumo, a not cancelled Brasil concentra vídeos sobre artistas e conversas online, além de permitir a consulta de preços das obras à venda. A Galeria Marilia Razuk, por exemplo, selecionou telas de Hilal Sami Hilal que custam até 18 mil dólares e outras de Fabricio Lopez, que não passam de 5.200 dólares. Os artistas incluídos pela Fortes D`Aloia & Gabriel foram Efrain Almeida, cujos trabalhos chegam a 35 mil dólares, e Rodrigo Matheus, com obras de até 13.600 dólares. A Nara Roesler optou por promover apenas as pinturas de Bruno Dunley, a mais cara delas, a 22.500 dólares.
Óleo sobre tela (do celular)
O sucesso da iniciativa e outras do gênero, como a versão online da Art Basel de Hong Kong, reflete a atual dependência das artes plásticas ao universo digital. Não é de hoje, por sinal, que muita gente já se contentava em apreciá-las sem estar no mesmo ambiente que elas. O carioca Alexandre Gabriel, um dos três sócios da Fortes D’Aloia & Gabriel, se habituou, nos últimos anos, a ouvir elogios acerca de mostras de sua galeria de pessoas que não foram conferi-las presencialmente. A explicação: viram no Instagram, onde a galeria reúne 45,9 mil seguidores. “A ferramenta tem ampliado consideravelmente o alcance da galeria”, reconhece.
A venda de obras de arte para quem nunca esteve cara a cara com elas também não começou hoje. Uma das diretoras da Bergamin & Gomide, Antonia Bergamin, estima que 30% das transações da galeria transcorram desse modo desde sempre. Nas demais, explica, a praxe é só uma rápida visita ao espaço quando a compra já está quase certa, por via das dúvidas. Isso só ocorre, convém esclarecer, porque a maioria dos compradores são colecionadores experientes, que se contentam com fotos para decidir o que querem.
Uma das vendas que mais repercutiram nos últimos anos, é bom lembrar, a da pintura que Basquiat fez do boxeador Sugar Ray Robinson em 1982, se deve ao Instagram. Quando era diretor internacional de arte contemporânea da casa de leilões Christie’s, em cujo acervo a obra se encontrava, o inglês Brett Gorvy postou uma foto dela em sua conta na rede social antes de embarcar em um voo. No desembarque, deparou-se com mensagens de três colecionadores interessados na pintura na tela de seu celular. Um deles, não identificado, fechou o negócio dois dias depois, por estimados 24 milhões de dólares. “Do ponto de vista do comprador, foi uma aquisição feita pelo Instagram”, declarou Gorvy, hoje à frente da própria galeria, a Lévy Gorvy, e com 137 mil seguidores na mesma rede social.
Há inúmeros casos semelhantes. Em 2015, noticiou-se que o ator Leonardo DiCaprio arrematou uma tela de Jean-Pierre Roy após avistá-la no Instagram da galeria do pintor americano. Pouco depois, a casa de leilões Sotheby’s bateu o martelo na venda de uma imagem da Virgem Maria feita com jóias de prata e pérolas pelo ateliê do joalheiro russo Peter Carl Fabergé. Saiu por 245 mil euros, dez vezes mais que a estimativa inicial. O comprador, mantido em sigilo, tinha visto a peça na conta da Sotheby’s no Instagram, com 1,1 milhão de seguidores.
Desnecessário dizer que uma pintura na tela do celular não é uma pintura, só uma imagem dela. As cores não são as mesmas, o brilho é diferente, as texturas desaparecem e por aí vai. O mesmo vale para esculturas, instalações e companhia. “A experiência presencial jamais será superada pela digital”, torce Alexandre Roesler. Enquanto as galerias e os museus brasileiros permanecem fechados — e os de outros países voltam à normalidade com grande limitação de público e regras de distanciamento — o jeito é se contentar com o virtual.
“Filmar a exposição despertou o interesse de muita gente e nos ajudou a ter outras ideias para continuar na ativa com as portas fechadas, mas torço para que experiência presencial jamais seja superada pela digital”
Alexandre Roesler
O fotógrafo Gabriel Wickbold que o diga. Herdeiro da fábrica de pães e afins que carrega seu sobrenome, ele costuma clicar modelos repletos de tintas bem coloridas. Para compor a sequência apelidada de “I am Light”, cobriu os retratados com glitter e aumentou o tempo de exposição da câmera com o obturador fechado para capturar efeitos de luz. No dia 11 de março, ele inaugurou uma monumental retrospectiva de sua trajetória na Faap, em São Paulo, com término previsto para 23 de maio. “É um marco na minha carreira. Custou 700 mil reais e foi patrocinada pela BMW”, diz o fotógrafo. Com a quarentena, o remédio foi filmar tudo e exibir nas redes sociais.
O saldo, no entanto, ele considera positivo. “Reforcei o e-commerce da minha galeria e comecei a vender diretamente pelo Instagram, com bons resultados”, conta ele, que aproveitou o período de isolamento social para produzir uma nova série de retratos, sobre os quais não dá detalhes. O suspense tem uma explicação: quando o governo der o aval para a retomada das visitações a exposições, a retrospectiva de Wickbold na Faap será reaberta ao público. Com nova data de término e uma nova sala, na qual o fotógrafos exibirá seus cliques da quarentena.