a mesma forma que ocorreu com outros setores da economia, a Cultura também está sofrendo com a pandemia do novo coronavírus. Portas de museus e galerias foram fechadas, feiras e bienais foram canceladas. Para se ter ideia, a Unesco e o Conselho Internacional de Museus estimaram que 90% dos museus do mundo tiveram que fechar durante os períodos de quarentena e que 13% deles corriam o risco de não voltar a abrir.
Nas periferias, a situação é ainda pior. Em São Paulo, por exemplo, frequentar um espaço cultural é tarefa difícil – com ou sem coronavírus. Dados do Mapa da Desigualdade de 2019 apontam que as regiões periféricas da cidade contam com menos centros culturais, casas e espaços de cultura, museus, cinemas, salas de shows e concertos, acervos de livros adultos e infanto-juvenis do que regiões centrais e bairros ricos. A desigualdade chega a ser 265 vezes maior em alguns casos.
Pinheiros, por exemplo, distrito nobre da zona oeste de São Paulo, conta com quase 93 salas de show e concerto (municipais, estaduais, federais e particulares) para cada 100 mil habitantes. Do outro lado da cidade, em Cidade Tiradentes, periferia na zona leste, não há sequer uma sala de show e concerto.
Além disso, o único projeto federal para a Cultura durante a pandemia do novo coronavírus, que destinará R$ 3 bilhões para socorrer o setor neste período, foi sancionado por Jair Bolsonaro apenas no dia 30 de junho — mais de 100 dias após o primeiro caso da doença no país. A lei prevê um auxílio de R$ 600, em três parcelas, para trabalhadores da arte e da cultura. Podem solicitar o recurso profissionais que comprovem atuação no setor nos últimos dois anos, com rendimentos de até R$ 28,5 mil em 2018.
Uma série de artistas das periferias enfrentam dificuldades para continuar produzindo em meio a quarentena e até mesmo antes dela. Elástica conversou com alguns deles sobre as diferenças territoriais e de classe social, as dificuldades para ser visto por instituições tradicionais e os impactos do novo coronavírus. Para conhecer um pouquinho de cada um, é só rolar a tela.
Lya Nazura, artista multidisciplinar
Numa manhã de abril, Natalya Nazura, ou simplesmente Lya Nazura, preparou seu celular para gravar um vídeo que mais tarde seria postado em sua rede social. A jovem de 22 anos tratou de cuidar do cenário, enquadrando a câmera de maneira que os pôsteres com artes digitais, pendurados na parede, ficassem bem visíveis. “Você já ouviu falar de afrofuturismo?”, perguntou no início do vídeo, referindo-se ao tema que seria abordado.
Duas semanas depois, ela repetiu o ritual: arrumou sua câmera, gravou um vídeo de menos de 10 minutos e postou em sua rede social. Dessa vez, o assunto era ‘arte autêntica’. No entanto, as produções caseiras foram interrompidas após o segundo vídeo. Não pela falta de reações de seus seguidores, mas sim pela falta de “pique”, como ela mesma diz.
“É difícil falar nesse momento de pandemia”, resume. “Meu processo criativo está um pouco complicado porque eu continuo trabalhando bastante e, às vezes, sinto que isso me desgasta muito”, afirma ela, que atua também como designer.
“As pessoas acham que, porque a gente é preto, a gente só consome coisas que falam sobre racismo”
Lya Nazura
Nazura é periférica, criada no Jardim Robru, na Vila Curuçá, Zona Leste de São Paulo, e artista multidisciplinar – nome dado a quem se distribui por várias linhas de pesquisa. Antes da pandemia, ela costumava fazer ilustrações de rappers com traços futuristas, como o Sabotage em forma de ciborgue, ou o mesclá-los com personagens de desenho, tal qual Donald Glover de Naruto, e expor em feiras de arte, como o PerifaCon. Devido ao isolamento social, os vídeos informativos em suas redes sociais eram uma forma de lidar com a Covid-19.
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Nazura acredita que as pessoas têm uma visão muito errada sobre artistas, como se tivessem “lapsos divinos”, que são “super viajados”. Mas, para ela não é assim. “É um estudo super sensível sobre subjetividade, se entender como um ser singular, como dialogar com o mundo”.
Formada em artes visuais com bolsa integral, se descobrir artista foi um processo de coragem para Nazura, apesar de seus pais sempre terem a colocado em contato com as artes, principalmente o desenho. “As pessoas acham que porque a gente é preto a gente só consome coisas que falam sobre racismo”, sintetiza ela, que concentra seus traços em desenhos que abordam cultura geek, por exemplo.
Quando perguntada sobre expor em galerias tradicionais, Nazura diz que não é seu objetivo principal. “Já expus em lugares, no centro de São Paulo e bairros nobres, que eu olhava para o lado e era a única preta do local. Às pessoas exotificavam minha produção. Não faziam perguntas com tom de curiosidade, era com o tom de ‘o que você faz não está dentro das coisas que eu observo’”, resume. “Não acho que seja minha função educar essas pessoas”.
Robinho Santana, artista visual e músico experimental
“A preocupação do artista periférico vai além da sua criação. Tipo, a gente está preocupado em pagar a conta antes mesmo de pensar na própria produção”. Pelo menos é assim que Robinho Santana, 36, resume a principal diferença entre artistas endinheirados com os que vêm de classes sociais mais baixas.
Morador do Jardim Ruy, em Diadema, na Grande São Paulo, por mais de três décadas, Robinho se considera artista visual e músico experimental desde sua adolescência. No início dos anos 2000, em sua banda de punk rock, ele teve contato com o que ele chama de “faça você mesmo”. De lá para cá, tudo mudou. “Tive que criar as próprias capas de disco, os próprios cartazes de shows, aí fui criando um amor pela arte. Mas eu não fazia ideia que poderia viver disso”, conta.
Robinho estudou dois anos de design e, durante a faculdade, conheceu o artista Basquiat. Segundo ele, foi quando se apaixonou de vez por esse universo. “Foi a primeira vez que vi uma pessoa que parecia comigo e que fazia arte. Antes disso, não conhecia outros artistas negros dentro de galerias”. Hoje, ele vive de arte, expondo quadros que retratam seu dia a dia e o das pessoas com quem ele convive, conversa e ama. “Quando me perguntam com estranhamento o motivo de eu pintar pessoas negras, eu respondo com outra pergunta: por que eu pintaria pessoas brancas se não é o natural do Brasil? A maioria da população é negra”.
Em uma das suas obras, exposta no Instituto Moreira Salles, Robinho pintou um jovem negro, funkeiro, trajado no “kit”, como ele mesmo diz, e os dizeres “MPB”, referência a Música Popular Brasileira, estampado na camiseta. “Quis colocar ali uma pessoa periférica e criar essa discussão de por que o funk não é considerado MPB se é ouvido em todo lugar do país. Só não é considerada música popular brasileira porque ele é criminalizado e a gente sabe porque ele é criminalizado: porque é feito e escutado por pessoas pretas e periféricas”, resume.
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Apesar de expor em lugares considerados tradicionais, Robinho vê certa dificuldade em ocupar as grandes galerias de arte. “A maioria das galerias são vendas, e poucas têm coragem de bancar um trabalho de um artista periférico. Porque a maioria dos clientes que têm dinheiro talvez não compactuem com o nosso pensamento”, analisa.
Seu processo criativo durante a crise do novo coronavírus é descrito por ele como “na muquia”, termo usado em muitas periferias para se referir ao “fazer em segredo”. Segundo ele, suas produções sempre foram feitas dentro de casa e sem muito apoio financeiro.
“Apesar de eu mesmo produzir, divulgar, vender e entregar minhas próprias obras, se não fossem as pessoas próximas a me ajudarem tanto psicologicamente quanto compartilhando na internet, não estaria sobrevivendo. O governo mesmo não me ajudou em nada e temo que não irá me ajudar, porque cultura para eles não é algo importante, tratam a cultura como se fosse nada, e é uma grande palhaçada no mal sentido”.
Alexandre Ribeiro, escritor
O escritor Alexandre Ribeiro, 21, autor dos livros Inflorescência e Reservado, também sente falta de apoio do governo em meio à pandemia do novo coronavírus. Porém, em seu caso, das autoridades da Alemanha. “O país tem várias medidas de apoio para os cidadãos alemães, mas a inclusão social é pouquíssima para estrangeiros”.
Morador do Jardim Canhema, também em Diadema, Alexandre vive do outro lado do atlântico desde 2019, quando ganhou um bolsa para estudar e trabalhar com voluntariado para um centro de tratamento pedagógico.
Como “marreta”, gíria usada para nomear vendedores ambulantes nos trens e ruas de São Paulo, o escritor vendeu cerca de 2 mil cópias do seu romance Reservado, que conta a conta a história de um jovem que tem uma fixação com os ônibus que passam na quebrada com o destino “reservado”, para arcar com os custos da passagem, que não estavam inclusas na bolsa, além de criar um vakinha online.
“Quando eu trabalhava nesses empregos formais, o tempo que eu tinha era dentro do ônibus. Eram quatro horas diárias no transporte. Lá era o lugar que eu tinha para ler, para escrever, para sonhar, para planejar minha vida e fazer tudo”
Alexandre Ribeiro
Durante sua adolescência, Alexandre trabalhou em uma loja de departamento e em um hotel cinco estrelas. Segundo ele, um dos maiores desafios para tornar-se de fato escritor foi a falta de tempo. “Quando eu trabalhava nesses empregos formais, o tempo que eu tinha era dentro do ônibus. Eram quatro horas diárias no transporte. Lá era o lugar que eu tinha para ler, para escrever, para sonhar, para planejar minha vida e fazer tudo”, acredita. “A maior desigualdade que existe é a desigualdade do ócio criativo.”
Para ele, as pessoas de outras classes sociais têm esse tempo de sobra, podendo imaginar realidades paralelas. “A vida do pobre é muito real, ela é dura, ela machuca. Não tem como ficar sonhando com Harry Potter quando o boleto vai bater na sua porta no dia 5”, conclui. Além disso, Alexandre enxerga que “a cor da sua pele”, como ele mesmo diz, também interfere. “Não dá para enxergar poesia se em cada momento que você quer avoar sua mente um policial te enquadra”.
Soma-se a isso a pandemia, que adicionou dificuldades no seu processo criativo. O jovem perdeu o pai em outra crise sanitária: a gripe H1N1, conhecido como gripe Suína, que teve seu surto em 2009. “Minha família tem um histórico de trauma. O que tem me salvado são livros, ouvir áudio livros, porque nem sentar para ler eu estou conseguindo”.
Ao analisar o atual cenário artístico no Brasil, ele se chateia. Alexandre acredita que a desigualdade no meio das artes é uma máquina de criar escritores frustrados. “Nem todo mundo tem a disposição que eu tenho de sair pra rua e dar a cara ao trampo. De falar ‘isso aqui sou eu e eu represento esse sonho aqui’. É foda, porque é uma bolha. Não é a toa que que as livrarias estão falindo”, finaliza, referindo-se a falta de diversidade de autores nos grandes conglomerados.
Vita Pereira, multiartista
“Sou multiartista, trabalho com várias linguagens. Sou travesti, negra, macumbeira e periférica.” É assim que a mineira Vita Pereira, 23, criada no Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo, se apresenta. Uma das primeiras linguagens artísticas experimentadas por ela foi o audiovisual, gravando videoclipes experimentais, no estilo “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. “Reuni amigos, fizemos um clipezinho da Lana Del Rey. Queria gravar um filme, muitas pessoas não botavam fé”, relembra.
Na visão da artista, o direito ao acesso à cidade é fundamental para contribuir com o desinteresse das quebradas pelas artes. “Esses dias, estava fazendo uma live e perguntei ao público quando foi a primeira vez que foram ao teatro. Uma das pessoas respondeu: 2019. Eu fico chocada, mas não surpresa, porque sabemos que os espaços de arte, teatro, cinema, ainda são espaços brancos e elitistas”, afirma ela, que é formada em Edificações pelo Instituto Técnico de Barueri (ITB).
Vita dirigiu, atuou e escreveu o roteiro do curta-metragem Perifericú. O filme, que fala sobre ser mulher, negra e LGBT no contexto das periferias de São Paulo, foi premiado nos festivais de cinema Mix Brasil, Mostra Internacional de Tiradentes e na Mostra Wallace Leal Valentin Rodrigues.
Hoje, parte da sua renda vem do auxílio emergencial, dado pelo governo Bolsonaro desde abril deste ano, em meio a uma série de críticas. Além disso, Vita tenta se inscrever em editais de fomento à arte – no entanto, relata enfrentar dificuldades. “Vários editais não me apoiaram, assim como não apoiaram várias pessoas trans, e percebemos que esses editais querem trabalho de pessoas de faculdade. Entender que os editais precisam ter um recorte de raça, gênero, sexualidade, é entender que outras narrativas precisam ser visíveis e valorizadas”.
Souto MC, rapper e compositora
De tênis, macacão e colares no pescoço, a rapper Carolinne Souto, 25, conhecida como Souto MC, subiu ao palco para lançar o novo álbum Ritual, em março desde ano. A artista, criada em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, é uma das referências no cenário hip hop brasileiro. “Em Itaquá, foi a primeira vez que ouvi e vi rap na minha vida. Mas fui começar a me envolver com o estilo quando fiquei mais velha. Em São Paulo, comecei a ir para batalhas de rap”, lembra ela, que hoje mora no Brás, na região central da capital.
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Apesar de ser uma figura importante na música brasileira e trabalhar com música há 10 anos, a rapper ainda vê muitas dificuldades na carreira de artista periférica, indígena e, sobretudo, independente. “Como artista independente esse tempo inteiro, só consegui gravar meu primeiro álbum ano passado. Pessoas com mais recursos financeiros têm dinheiro para várias situações: para publicidade, impulsionar algo na internet, pagar uma equipe melhor para determinadas funções, equipamentos melhores”, avalia.
Seu álbum retrata a extinção de indígenas e suas tradições, além da construção do país sem a ancestralidade dos povos originários, como o Kariri, o qual Souto tem ascendência. A música, segundo a rapper, a ajudou a se conectar com seus ancestrais, pois quando começou a compor suas letras, mesmo sem pensar, essa era uma característica.
Apesar de considerar que o rap tenha espaço no cenário atual da música no Brasil, Souto ainda sente falta de uma representatividade maior no mercado. “Vejo hoje fatias muito grandes para o sertanejo, para o pop, porque existe um padrão de pessoas, dos recursos financeiros. Acho que o que falta para a gente é um olhar de que o gênero rap também tem consumidores, também pode chegar em lugares mais altos a partir do momento que a gente também tiver esse apoio. Falta um olhar mais otimista e menos marginalizado”.
A pandemia também “derrubou” Souto, como ela mesma diz. “A principal renda que eu tinha vinha dos shows e, como agora não está mais acontecendo isso, ficou bem difícil. As principais ajudas para artistas independentes é ouvir as músicas nas plataformas e procurar se inscrever nos canais, por exemplo, para que a gente possa ter algum tipo de renda dentro desses espaços”. Souto recebeu a primeira parcela do auxílio emergencial apenas no final de maio. Ela aguarda mais duas parcelas, que estão atrasadas.