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BaianaSystem navega contra a maré

Em um papo descontraído, o guitarrista Roberto Barreto fala sobre as raízes da banda e a vontade de ampliar o acesso à cultura

por Beatriz Lourenço 10 nov 2022 10h08

Quem vai ao show do BaianaSystem pela primeira vez se depara com uma fusão de ritmos, letras combativas e uma vontade imensa de tirar o pé do chão. E isso se dá não só pela autenticidade da banda, mas pela proximidade de seus integrantes com o público. “Não gostamos de manter uma parede separando a gente dos demais, como se as pessoas fossem ao nosso show para assistir algo que está acima delas. Nos alimentamos do público também e essa troca é muito única”, conta o guitarrista Roberto Barreto.

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(Luiz Franco/Fotografia)

A banda teve início em 2009 e nasceu com o objetivo de dar novos sentidos à guitarra baiana, instrumento criado em Salvador capaz de transitar entre a música erudita e popular. E após 14 anos na ativa, o resultado é a experimentação de sons e a capacidade de alimentar cada criação com novas influências musicais.  

“Nossa temática sempre é um reflexo dos tempos em que vivemos: o que as pessoas anseiam, o que está incomodando e o que queremos transformar. Nesses últimos cinco anos, estamos passando por um momento em que a política e o nosso entendimento de sociedade estão mais expostos – e isso vai para as nossas letras e a forma com que preparamos nosso show”, explica Roberto. 

Uma das canções de destaque é “Lucro: Descomprimindo”, que trata da especulação imobiliária e da desigualdade social. E o ideal anticapitalista dos integrantes sai dos versos e vai para a prática quando eles criam um trio elétrico independente que amplia o acesso à cultura. 

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“Aqui em Salvador, o bloco de carnaval é o inverso do acesso. É diferente do Rio de Janeiro ou de São Paulo, por exemplo. Aqui é tudo pago. E o ‘Navio Pirata’ vem contra a corrente e vai para a avenida justamente para quebrar esse padrão de que você precisa ter dinheiro para se divertir”, afirma. “Ele está na nossa essência enquanto estética e concepção. Esse é um jeito do Baiana estar mais próximo do público, além de falar da cultura, da violência e não violência, e da importância dos blocos afro no carnaval. É algo bem maior do que o desfile em si.”

No último dia 15 de outubro, os moradores de Campo Grande puderam conferir o show do BaianaSystem no Festival Campão Cultural. Foram 75 minutos de duração que divulgaram sucessos como “Sulamericano”, “Bola de Cristal”, “Duas Cidades”, “Miçanga” e mais. Abaixo, você confere o papo completo com Roberto Barreto.

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(Paula Cayres/Fotografia)

A banda começou em 2009 e vocês ainda seguem na ativa. O que vocês mudaram e o que continuou o mesmo depois de 14 anos?

A gente foi amadurecendo em vários aspectos com a estrada, com as gravações e com os shows. Fomos entendendo mais toda essa dinâmica de banda e qual é a melhor maneira de tocar entre beats e orgânico, além da diferença do ao vivo e do estúdio. Também acrescentamos uma guitarra e um teclado que não tinha na formação original. O que mantemos é essa fusão de ritmos e a capacidade de colocar na música as influências de cada um de nós – isso vai alimentando a experimentação dos sons. 

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(Paula Cayres/Divulgação)
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A nossa temática sempre é um reflexo dos tempos em que vivemos. De certa forma, os artistas refletem seu momento, o que as pessoas anseiam, o que está incomodando e o que queremos transformar. Em todos esses anos de banda, passamos por muitas transformações, mas nesses últimos cinco anos estamos vivendo um momento em que a política e o nosso entendimento de sociedade estão mais expostos – e isso vai para as nossas letras e a forma com que preparamos nosso show.

A música “Sulamericano” foi a abertura da novela “Um Lugar ao Sol”. Você acredita que a banda conseguiu atingir outros públicos?

Sim! O impacto que uma novela tem, justamente por falar com um público amplo, além do tempo que ela fica no ar, nos apresenta para pessoas que não necessariamente nos conhecem. Essa novela, especificamente, começou num período em que ainda estávamos bem reclusos, então não conseguimos sentir tanto esse impacto nos shows. Ainda assim, vimos que a música ganhou uma força que ficou no inconsciente coletivo. 

Em todos esses anos de banda, passamos por muitas transformações, mas nesses últimos cinco anos estamos vivendo um momento em que a política e o nosso entendimento de sociedade estão mais expostos – e isso vai para as nossas letras e a forma com que preparamos nosso show.

Ainda falando sobre essa música, ela tem a participação do Manu Chao. Como foi esse contato e o que tem de convergência entre vocês e ele?

Temos muito incomum porque compartilhamos esse viés combativo, social e da mesma forma de pensar. Apesar de ser francês, ele se associou muito à América Latina e se tornou uma referência muito grande com suas letras e com a forma com que ele trazia os assuntos abordados. Quando estávamos na construção do álbum “O Futuro Não Demora” e fizemos a música, automaticamente ela nos remeteu a ele. Como estávamos para fazer coisas fora do Brasil e conhecíamos pessoas em comum, mandamos a música e ele topou participar! E quando tocamos na Espanha, tivemos a honra da presença dele em nosso show. 

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(Cartaxo/Fotografia)
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Estamos vivendo um momento político em que a direita coloca a população do Nordeste como analfabeta política por votar no Lula. Qual é o papel dos artistas – e até da imprensa – para barrar esse tipo de falácia xenofóbica? 

O papel é de continuar falando sobre esse assunto. Eles falam o que querem, mas o Nordeste sempre ensinou todo mundo a votar – o pessoal do sul e do sudeste deveria fazer aulas sobre o entendimento de política. A gente vem há algum tempo salvando, sustentando e defendendo o Brasil que todo mundo quer. Seguimos ocupando um lugar de resistência e de esperança, sendo um exemplo aos outros locais do país. 

Quem assiste um show do Baiana, do Planet Hemp ou da Céu, por exemplo, sabe bem o que está sendo falado e a mensagem que está sendo passada. Então o artista participa dessa forma, movimentando a sociedade por onde circula. Em cada encontro desses você consegue transformar e tocar o outro de alguma forma.

E como é possível, por meio da música, furar as bolhas discursivas para além da militância?

A arte, de uma maneira geral, tem essa função de tocar por um lado que não é o racional – principalmente nesse momento de extremos que estamos vivendo. É difícil hoje você mudar o que uma pessoa pensa com argumentos. Temos visto que argumentos e fatos, por mais sinistros que pareçam, não são suficientes para mudar o entendimento de determinadas pessoas. Então, acredito que a arte vem nesse impossível e transforma, seja através do show ou do nosso próprio posicionamento. 

O Navio Pirata é um bloco que junta milhares de pessoas nos carnavais de rua. Qual é a importância, para a banda, de estar em ambientes acessíveis que qualquer pessoa pode estar junto e ver a apresentação? 

Aqui em Salvador, o bloco é o inverso do acesso a todos nós – e as instituições que fizeram com que esse trio não pudesse ser independente e aberto ao público. É diferente dos blocos do Rio de Janeiro ou de São Paulo, por exemplo. Aqui é tudo pago. E o “Navio Pirata” vem contra a corrente e nasce como um trio independente que vai para a avenida justamente para quebrar esse padrão de que você precisa ter dinheiro para ter acesso. 

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Ele é fundamental, no nosso entendimento, porque o carnaval é muito importante para nós. Ele está na nossa essência enquanto estética e concepção. O Navio é um jeito do Baiana estar mais próximo do público, além de falar da cultura, da violência e não violência, e da importância dos blocos afro no carnaval. É algo bem maior do que o desfile em si.

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(Paula Cayres/Fotografia)

A música “Lucro: Descomprimindo”, que fala “Tire as construções da minha praia/Não consigo respirar”, toma outra proporção quando pensamos no fenômeno das ilhas de calor – que tem aumentado junto com a especulação imobiliária (também tema abordado na música). Produzir cultura também pode ser considerada uma ação anticapitalista?

Essa pergunta tem muitas nuances e sutilezas do que pode ser uma ação anticapitalista. Nós entendemos quais são os perigos e os contras do capitalismo mas, ao mesmo tempo, estamos dentro disso e, ao mesmo tempo, a cultura precisa de algum sistema que faça ela girar. O capital, em si, pode circular de várias formas. Falamos um pouco dos blocos, onde há o loteamento e a venda de um espaço da avenida e poucas pessoas têm acesso, mudando esteticamente a composição do carnaval. Isso é um impacto negativo do capitalismo nesse sentido. 

Quando falamos da especulação imobiliária sem limite, sem controle e sem nenhuma ação governamental que entende os prejuízos, é assunto para a arte cobrar e apontar!

Quando falamos da especulação imobiliária sem limite, sem controle e sem nenhuma ação governamental que entende os prejuízos, é assunto para a arte cobrar e apontar! Em todo o Nordeste tem acontecido isso, inclusive, por causa da nova lei que muda as regras das alturas e distância dos prédios nas orlas. A arte chega, então, como uma maneira de chamar a atenção para a forma como esse capital especulativo vai de encontro ao bem comum. 

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A energia de um show do Baiana, a mobilização do público que a banda consegue proporcionar, é algo que nenhum outro artista brasileiro hoje consegue. Qual a sua explicação para esse fenômeno?

Talvez seja o fato de que a gente se sente como parte do público. Não gostamos de manter uma parede separando a gente dos demais, como se as pessoas fossem ao nosso show para assistir algo que está acima delas. Entendemos que somos parte daquela comunicação que acontece ali e o fato disso ser verdadeiro, traz essa sensação. Nos alimentamos do público também, e essa troca faz muito sentido. 

Vocês lançaram “Olho do Guloso”, que tem o feat com Mestre Môa do Katendê – e esse mês faz quatro anos de sua morte. Queria que você comentasse um pouco sobre a produção e seus significados.

Essa não é uma canção de produção nossa, fomos convidados para participar de um disco com vários artistas que regravaram músicas de Môa, além de um documentário que ainda será lançado. 

A “Olho do Guloso” tem a percussão e a voz dele, que é incrível. Quando nos enviaram, trabalhamos uma guitarra e Russo fez uma parte nova de rima que deu uma cara nova e muito interessante de ver. Esse projeto é muito emblemático porque saiu na semana da eleição – e há quatro anos, entre o primeiro e o segundo turno, aconteceu essa tragédia que mostrou o que nos aguardava. Para nós, foi muito importante participar desse disco porque esse é o momento em que precisamos pensar em transformação e reforçar que não queremos mais essa intolerância. É o momento perfeito para reverenciar Mestre Môa.

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(Cartaxo/Fotografia)
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