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A Batekoo bate de frente

No início, era só festa, mas hoje é mais: uma plataforma de entretenimento, educação e cultura para pessoas pretas e periféricas

por Beatriz Lourenço 25 Maio 2022 00h39
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(Clube Lambada/Ilustração)

uem passa pela Batekoo pode nem imaginar que tudo começou como uma comemoração de aniversário, lá em 2014. Isso porque hoje, com a estrutura que tem, a festa tomou uma proporção maior e se consolidou como uma plataforma democrática de ensino e entretenimento que visa fomentar a cultura, a representatividade e o amor preto e periférico. Além disso, o lugar é pensado para ser um espaço seguro para jovens que sofrem com o racismo estrutural da sociedade.

“Quando a gente fala de um espaço seguro, é pensando que pessoas negras não têm contato com isso em nenhum lugar – porque se a gente vai no mercado ou no shopping, a gente é seguido pelos seguranças, se a gente está em um restaurante chique, a gente recebe cara feia e olho torto” diz Maurício Sacramento, um dos fundadores, à Elástica. “Por exemplo, a segurança da festa é sempre muito bem alinhada e entende que as pessoas que estão lá dentro devem ser respeitadas. Há um cuidado com o tratamento que as pessoas recebem, desde revista na porta a qualquer tipo de intervenção.”

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A noite, embalada por hip-hop, trap, twerk e funk de origem 100% preta, saiu de Salvador e tomou São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. E é indiscutível a relevância que esse som tem, ainda que falte um tanto de reconhecimento das esferas de consumo. Segundo Artur Santoro, que também comanda a Batekoo, muitos gostam da música, mas na hora de reconhecer e contratar artistas negros, há um descrédito. “A MC Drika, por exemplo, está estouradíssima! Mas não estamos vendo ela como headliner em festivais de música brasileira. A gente não vê essa valorização desses artistas”, afirma. É por isso que, em parceria com a Resso, eles fizeram a websérie “Lista Negra”, com objetivo de celebrar os gêneros musicais afro-brasileiros e enaltecer a trajetória de artistas negros independentes que estão escrevendo suas histórias dentro de seus gêneros musicais.

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(Vincent Rosenblatt/Divulgação)

Como frente de ensino, há a Escola B, uma plataforma com cursos gratuitos que colaboram com a expansão do conhecimento nas artes, música, dança e audiovisual. Além do aprendizado, há também workshops de direcionamento para o mercado de trabalho. A primeira ação ocorreu em 2019 e contou com mais de 270 estudantes. “Percebemos que o conhecimento sobre história e cultura afro estão restritos a ambientes acadêmicos e isso precisa mudar. Aí, decidimos ser uma plataforma de conhecimento, de troca e de intercâmbio dessas histórias”, conta Artur. Em janeiro deste ano, o projeto cresceu tanto que precisou de um espaço físico para dar conta da agenda. A Casa Batekoo foi inaugurada no centro histórico de Salvador, um lugar simbólico e, acima de tudo, de muita potência. Abaixo, você confere nosso papo completo com os criadores Artur e Maurício.

Vocês já comentaram que, quando as pessoas que vão à Batekoo, têm contato com suas raízes e se sentem mais confortáveis com a negritude. Como vocês analisam isso?
Artur Santoro: Acho que elas ampliam a consciência do que é ser negro. A gente tem inúmeros relatos de pessoas negras que deixaram de alisar o cabelo depois de irem para a festa. Há uma rede de pessoas que vai se transformando a partir dali porque se permitem vivenciar negritude, a sexualidade e as possibilidades de expressões de gênero. Somos um espaço quase que educativo e, principalmente, de respiro frente a todas as violências cotidianas que atravessam as vidas de pessoas negras no Brasil.

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(Batekoo/Divulgação)

Isso é potencializado a partir da criação de um espaço seguro?
Artur Santoro: Eu acho que esses espaços potencializam, mas a Batekoo começa e termina. Ainda assim, as pessoas que estiveram ali levam muito do aprendizado e dessas experiências para os seus ambientes cotidianos, seja familiar ou de trabalho. E é por isso também que a gente não se define mais como uma festa, a gente se define como uma plataforma de entretenimento e de conteúdo de culturas negras voltadas para essa juventude periférica do Brasil.

Maurício Sacramento: Quando a gente fala de um espaço seguro, é pensando que pessoas negras não têm contato com isso em nenhum lugar — porque se a gente vai no mercado ou no shopping, a gente é seguido pelos seguranças, se a gente está em um restaurante chique, a gente recebe cara feia e olho torto. Para nós, um ambiente seguro significa pensar ‘quais cuidados a gente deve ter para construir um espaço de preto para preto?’. Por exemplo, a segurança é sempre muito bem alinhada e entende que as pessoas que estão lá dentro devem ser respeitadas. Há um cuidado com o tratamento que as pessoas recebem, desde revista na porta a qualquer tipo de intervenção, como garantir a segurança dentro do espaço em casos de briga ou assédio.

Vocês fizeram a websérie ‘Lista Negra’, onde escolheram falar sobre novos artistas que representam os gêneros musicais afro-brasileiros. Como foi essa escolha e qual é a importância da música entrar no debate antirracista?
Mauricio Sacramento: A Batekoo tem um comprometimento muito grande com a música negra brasileira. E quando a gente fala ‘música negra’ a gente quer reivindicar que desde o funk carioca até o pagodão de Salvador, que são ritmos periféricos, também são a cultura negra. Geralmente esses ritmos são descredibilizados justamente por falarem sobre outras realidades.

Artur Santoro: Vemos muitas pessoas que gostam da música negra, mas na hora de contratar efetivamente esses artistas, ninguém chama. A MC Drika, por exemplo, está estouradíssima! Mas não estamos vendo ela como headliner em festivais de música brasileira. A gente não vê essa valorização desses artistas. Esse projeto foi muito no sentido de entender o quanto esse mercado musical não abre espaço para valorizar os artistas negros e tentar mudar esse cenário. Também sabemos que não existe um ensino sobre mercado musical. Os cursos disponíveis são caríssimos e todos em inglês, sendo que menos de 5% da população brasileira fala a língua.

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Além disso, queremos quebrar esse eixo Rio-São Paulo. Não é certo que pessoas venham para o Sudeste para ser valorizado como artista nacional. É engraçado porque os ritmos que surgem no Nordeste, são caracterizados como regionais, ao mesmo tempo que qualquer coisa que sai do Sudeste já é nacional. Essa é mais uma das facetas do racismo e da xenofobia que ainda existem no Brasil.

“Quando a gente fala de um espaço seguro, é pensando que pessoas negras não têm contato com isso em nenhum lugar – porque se a gente vai no mercado ou no shopping, a gente é seguido pelos seguranças, se a gente está em um restaurante chique, a gente recebe cara feia e olho torto. Para nós, um ambiente seguro significa pensar ‘quais cuidados a gente deve ter para construir um espaço de preto para preto?’”

Mauricio Sacramento
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(Batekoo/Divulgação)

Vocês têm o projeto Escola B, voltado para a educação de pessoas pretas e periféricas. Como surgiu essa ideia?
Artur Santoro: A Escola B surge por conta dessa falta de profissionais negros para exercer alguns cargos específicos que a gente tinha na produção de eventos. Também percebemos que o conhecimento sobre história e cultura afro estão restritos a ambientes acadêmicos e isso precisa mudar. Aí decidimos ser uma plataforma de conhecimento, de troca e de intercâmbio dessas histórias. Nós formamos essas pessoas para que elas ocupem esses espaços.

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E como vocês percebem essa atuação do Estado em relação à educação para pessoas pretas e periféricas?
Artur Santoro: A nível federal, há uma lei que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no Brasil. Mas a gente sabe o quanto essas leis ainda não foram aplicadas dentro do currículo nacional de educação e, quando são, o conteúdo é ensinado de maneiras extremamente problemático, reforçando narrativas extremamente violentas que colocam pessoas negras como sinônimos de escravizados.

Quando aprendemos história africana, ouvimos que os negros começaram ali com o tráfico negreiro, com a descoberta do Brasil e a vinda de escravizados para o país. Aí tem violência, escravidão, tortura e aquela nota de rodapé livros falando do Quilombo dos Palmares como um grande exemplo. Depois, passamos pela ‘bondosa’ Princesa Isabel e nunca mais ouvimos falar sobre os inúmeros coletivos de pessoas negras que continuam lutando por direitos básicos. Diante de tudo isso, aprendemos que ser negro é sinônimo de ter sido escravizado, de passivo, de alguém que não reage, que está ali como uma vitrine para ser violentado. Isso constrói um imaginário social na população brasileira que normaliza violências e quando finalmente reagimos, somos violentos e agressivos. O racismo é uma tecnologia da branquitude e do sistema capitalista que é extremamente sofisticada no sentido de subjugar, de estereotipar e de colocar a gente dentro de caixinhas.

“Quando aprendemos história africana, ouvimos que os negros começaram ali com o tráfico negreiro. Aí tem violência, escravidão, tortura e aquela nota de rodapé livros falando do Quilombo dos Palmares como um grande exemplo. Diante de tudo isso, aprendemos que ser negro é sinônimo de ter sido escravizado, de alguém que não reage”

Artur Santoro
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(Batekoo/Divulgação)

Nesse sentido, a Batekoo também retoma o que não foi falado nas escolas?
Maurício Sacramento: Eu acho que a Batekoo acordou toda uma juventude que, até então, tinha essa negritude adormecida. Você não vai lutar para ser negro enquanto você ainda não se reconhece como negro ou quando você ainda odeia seus traços. Durante esses anos, sinto que a Batekoo teve um papel importante dentro dessa reeducação no sentido de trazer um contato com a sua negritude de maneira direta. Por exemplo, Salvador é o lugar mais negro fora da África e até um ano ou dois antes da Batekoo, era raro ver mulheres e homens de tranças no cabelo, olha o quão absurdo isso é! A gente não tem educação racial dentro da periferia nem dentro do ensino público, então nós temos que fazer a nossa parte de alguma forma.

Artur Santoro: A gente não almeja esse lugar da vanguarda e porque a gente sabe o quanto isso sempre foi pauta na história dos Movimentos Negros. A gente tem em Salvador, por exemplo, o Ilê Aiyê, um bloco alternativo de pessoas negras que, em 1974, estava ali se organizando. E não só, a gente tem a Frente Negra Brasileira, onde mulheres negras organizavam seus bailes. Há também o Movimento Black Rio, fundador dos bailes funks no Rio de Janeiro. A existência desses lugares de representatividade negra sempre existiram no decorrer da história. Entramos neste espaço com outras narrativas, talvez com o toque da sexualidade, de pessoas com deficiência, dessa interssexualidade toda.

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Estamos vivendo um momento de crises, onde a desigualdade só tem crescido. Como a Batekoo conversa e se posiciona diante dos dilemas da sociedade contemporânea?
Maurício Sacramento: Sinto que isso só fortaleceu o que a Batekoo está construindo porque a gente defende muito esse espaço de segurança, então toda a insegurança que a gente vem passando nas ruas e no contexto que o Brasil está hoje, dentro da Batekoo a gente consegue ter um respiro. Temos uma relação super transparente com o público e com as pessoas que estão ali compondo diariamente esse lugar. Eu não tenho poder pra mudar o que está acontecendo, mas tenho poder para continuar propondo um espaço de alívio – que também é super importante.

A identidade visual de vocês é muito forte e diversos conteúdos das redes sociais abrem um debate sobre empoderamento. Como vocês percebem esse material e essa discussão que a Batekoo fomenta?
Maurício Sacramento: A Batekoo tem uma identidade muito explosiva, ela sempre se comunicou através das próprias pessoas que frequentam a festa. Todo o nosso conteúdo digital visa trazer pessoas negras para um lugar de destaque. Tem muita gente que nunca foi numa festa, mas segue a gente para se ver representado nas redes sociais. A gente tem muitos seguidores internacionais e uma conexão muito bonita com outros movimentos de ações afirmativas ao redor do mundo. Tanto que a Jenn Nkiru, que foi uma das diretoras de ‘Brown Skin Girl’, da Beyoncé, veio para o Brasil em 2016 e a gente fez uma roda de conversa com ela e a Karol Conká para falar sobre processos criativos. Então, a internet é amplificador da nossa mensagem, é como a gente conseguiu hackear de alguma maneira o mercado para se estabilizar enquanto uma produção independente.

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(Batekoo/Divulgação)
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