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Atuando na pandemia

Protagonista da última temporada da série 3%, Bianca Comparato segue criando mesmo em meio ao isolamento, com projetos no cinema e no Instagram

por Bruna Bittencourt Atualizado em 26 ago 2020, 15h11 - Publicado em 26 ago 2020 02h49
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(Clube Lambada/Ilustração)

este mês, Bianca Comparato se despede de Michele, a protagonista de 3%, série de ficção científica da Netflix, mas que traça alguns paralelos com o Brasil atual. Filmada no ano passado, a produção chega à sua última e quarta temporada. Mas nem o encerramento deste ciclo, nem a impossibilidade de atuar pelos meios tradicionais por conta da pandemia neste ano, pararam a atriz carioca de 34 anos.

Ao lado de Andréia Horta, Débora Falabella e Mariana Ximenes, Bianca  adaptou para o Instagram um projeto que nasceu em 2019 e que ganharia os palcos. Em Cara Palavra, as quatro atrizes interpretam textos e criam a oito mãos. Desde abril, já apresentaram 14 vídeos, lançados quinzenalmente. “O Cara Palavra somos nós querendo dar voz aos nossos pensamentos, quase como um diário da pandemia em função das coisas que estão acontecendo”, conta à Elástica a atriz com diversos trabalhos na Globo, além das séries Sessão de Terapia (GNT) e Menina sem Qualidades (MTV) no currículo.

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(Netflix/Divulgação)

Bianca também comanda, dos Estados Unidos, onde passa a quarentena ao lado da namorada, Alice Braga, o Cinema de Fachada. O projeto já exibiu em fachadas de prédios do Rio de Janeiro e Salvador, em meio ao vazio da quarentena, os documentários Pitanga, sobre Antonio Pitanga, dirigido por sua filha, Camila Pitanga, e Cinema Novo, de Eryk Rocha, filho de Glauber, sobre o movimento de cinema homônimo. Sem patrocínio e com recursos próprios, as duas atrizes selecionam os filmes, procuram os distribuidores para a liberação dos filmes, contratam projetistas e entrevistam os diretores após as exibições. “Sei que as pessoas não podem ir ao cinema agora, mas para ele sobreviver vamos ressignificá-lo, projetá-lo em uma fachada”, diz. 

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Além dos dois projetos, Bianca, que dirigiu Elogio da Liberdade (2019), um documentário sobre a escritora e feminista brasileira Rosiska Darcy de Oliveira, protagoniza Intervenção (2018), filme inédito, com estreia adiada pela pandemia. No longa escrito por Rodrigo Pimentel (especialista em segurança pública e autor do livro que inspirou Tropa de Elite), ela interpreta uma policial no ocaso das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora).

“Sei que as pessoas não podem ir ao cinema agora, mas para ele sobreviver vamos ressignificá-lo, projetá-lo em uma fachada”

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Bianca conversou com a gente por Zoom sobre esses projetos e seus aprendizados, a situação da Cinemateca e a ansiedade de voltar a atuar.  

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(Kiko/Divulgação)

Como você tem mantido a sanidade nesta quarentena?
Eu tive muitas fases, acho que todos nós tivemos: a fase que achava que [a quarentena] seria menor, depois essa aceitação que é uma coisa a longo prazo, que a nossa vida mudou. Mas tive um instinto, logo no início, meio que de resistir a esse conceito de pandemia, que representa morte, desistência, representa uma doença horrível. E aí que nasceram esses projetos. Fiquei super isolada em casa, quis muito respeitar isso porque acho que é um papel que quem pode, deve fazer. Não sei nem há quantas centenas de dias que não saio para nada. Aí,  fiquei criando. O Cinema de Fachada nasceu com a Alice, com a gente em casa.

Talvez para o ator, pela impossibilidade de atuar pelas maneiras que ele está acostumado, floresça mais essa criatividade.
Foi muito isso. Acho que o papel do artista é ajudar a sociedade a lidar com as mazelas, mostrando um espelho ou colocando uma ideia para gerar um debate. E, na pandemia, realmente quis assumir isso. Acho bem importante a gente seguir criando, apesar da precariedade que está tendo no meio, da dificuldade técnica de filmar e da falta incentivo dos governos para continuar. Acho que todo mundo usou um pouco da internet, você tem um espaço ali. O Cara Palavra somos nós, quatro mulheres, querendo dar voz aos nossos pensamentos, quase um diário da pandemia em função das coisas que estão acontecendo. E o Cinema de Fachada também. Sei que as pessoas não podem ir ao cinema agora, mas para o cinema sobreviver vamos ressignificá-lo, projetá-lo em uma fachada.

“Acho que o papel do artista é ajudar a sociedade a lidar com as mazelas, mostrando um espelho ou colocando uma ideia para gerar um debate. E, na pandemia, realmente quis assumir isso”

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(Jorge Bispo/Fotografia)

Vocês exibiram o documentário sobre o Cinema Novo, em um momento em que a situação da Cinemateca é crítica. Você tem acompanhado isso dos Estados Unidos?
Muito. A gente falou muito na entrevista [com o diretor Eryk Rocha] sobre memória, identidade e cultura e que fazer isso com a Cinemateca é super político, você apaga um histórico, lutas. Então, é muito simbólico a Cinemateca estar passando por isso, acho que tem muita motivação, não é à toa. Por isso, o Cinema de Fachada também, vamos falar da nossa história, de quem lutou tanto antes da gente, dos grandes filmes que a gente tem e seguir produzindo. Isso é um bem público, né? Fiquei muito mexida quando o Museu [Nacional] foi queimado. Aquilo ali, para mim, é um símbolo muito forte, de apagar mesmo, sabe? Acho que a gente tem um pouco isso como nação, meio que vive nesse círculo em que a gente constrói e desconstrói nosso país. E, cara, a Cinemateca é do povo, é pública, deveria ser… Acho que o nosso cinema ainda não foi para o povo, como a galera do Cinema Novo mirou. A ideia era um cinema das pessoas, do povo, a câmera saiu do estúdio e foi para a rua. Mas a gente ainda tem esses sonhos. Acho que o Paulo Gustavo é um grande nome de cinema que fala com o público. Mas tem outros tantos que a gente poderia ter, filmes para o povo, sobre o Brasil.

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(Kiko/Divulgação)

Como nasceu exatamente o Cinema de Fachada?
Começou em abril, quando a gente viu uma diretora italiana que passou a projetar filmes do Chaplin, filmes mudos, curtos, na fachada do prédio. Teve em Berlim também. O isolamento social estava começando, as pessoas cantavam na varanda e viam o filme. Isso tem um momento de comunhão que gente perdeu com a pandemia, de ver coisa juntos, de alguma maneira, celebrar, de estar perto. E foi meio que uma febre no mundo, Nova York… Falei: “Por que a gente não faz no Brasil? Imagina no Rio, no Cristo Redentor. Imagina ir para o Norte, Nordeste, exibir filmes em grandes cidades brasileiras”. E aí a gente começou a  elaborar. Falamos com a [distribuidora] Vitrine Filmes que nos ajudou muito. Mas é um projeto em movimento, em cada filme a gente melhora alguma coisa. Foi muito feito por um desejo do momento, a gente não pensou tanto.

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E o Cara Palavra?
Foi no fim de março. A gente começou a se falar ano passado, estávamos com essa vontade de fazer no palco. Aí o Chuck Hipolitho [colaborador do projeto], que é músico, começou com esse conceito do spoken word. Era para ser uma coisa meio rock’n’roll, nós quatro declamando coisas com músicas, uma peça-celebração, meio performance. Quando bateu a pandemia, tive esse insight: “Cara, vamos fazer no Instagram”. Pensei em fazer só áudio: uma música, um álbum, um podcast. E as meninas disseram: “Vamos fazer digital!”. Aí a gente conversou com o Gustavo Giglio [outro colaborador do Cara Palavra], que a gente ama e teve essa visão, esse conceito digital de um logo, de uma abertura. Aí o projeto virou isso. 


“A Cinemateca é do povo, é pública, deveria ser… Acho que o nosso cinema ainda não foi para o povo, como a galera do Cinema Novo mirou”

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Você consegue matar um pouco da saudade de atuar com o projeto? Dá um alento?
Dá. É muito doido isso, estava me sentindo uma atriz um pouco enferrujada com a pandemia, tipo um pintor que por algum motivo não consegue mais pintar, numa certa angústia. Acho que essa troca com atrizes que eu admiro tanto me melhoraram como atriz, receber o feedback da Débora, acho ela uma super diretora. Tem uma confiança também, da gente crescer junto, aprimorar o trabalho uma da outra. Nunca imaginei que isso fosse acontecer durante a pandemia. Mas foi meio essa coisa de sobrevivência – quero atuar, quero expressar. Tem um negócio de comunicação digital, de falar no Instagram para alguém que está no celular em casa, que é diferente de uma novela, de uma série, de um filme ou de uma peça. Para mim, foi muito importante essa comunicação, mudou o jeito que falo nos Stories porque é diferente, é um outro canal, é um outro tempo. Isso para mim foi muito revelador: Me lembro de pensar: “caraca, tem uma linguagem muito interessante aqui”.

Teve um aprendizado.
Muito grande, sinto que me fez muito bem. Essa comunicação com o público que eu nunca tinha feito, só no teatro e um pouco no Twitter, de você fazer um trabalho e já ver as pessoas comentarem. E é muito bom ver o que gostam, o que não gostam, de trocar, quase como se fosse uma peça mesmo, de estar ao vivo. Isso para mim está sendo fascinante como artista.

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(Netflix/Divulgação)

A premissa de 3%, de uma sociedade com extrema desigualdade social, é muito atual. A pandemia acentuou essa desigualdade. Que outros paralelos você faz da série com a realidade atual?
Sempre fiz. Quando li pela primeira vez o argumento, falei: “Caramba, a gente está muito vivendo isso no Brasil e no mundo”. O momento em que caiu mais a minha ficha foi quando a gente gravou o primeiro episódio, da primeira temporada, para fazer o Continente [na trama, um lugar miserável, onde vive a maior parte da população]. Fomos para as ruas do centro de São Paulo e gravamos sem cenário, eram apenas os atores de figurino, numa área com moradores de rua. A gente fica cego nos privilégios. Essa palavra está tão em voga e acho importante mesmo que ela esteja. Às vezes, a gente normaliza. Acho que dali foi uma escada íngreme até a última temporada, de espelho para o Brasil. Acho muito potente quando a gente consegue entreter, emocionar, mas também tem um paralelo político com a situação [fora da trama]. A polarização política está representada em Michele e André. As minorias, personagens trans, negros, mulheres, nunca são debatidos na série. A gente espera que isso não seja uma questão, apesar de ainda ser. E acho que o capitalismo, um sistema montado para que uma grande parte não tenha acesso [às coisas], é meio o 3%. Gosto da mensagem da quarta temporada, fiquei orgulhosa de poder fazer isso.

“As minorias, personagens trans, negros, mulheres, nunca são debatidos na série. A gente espera que isso não seja uma questão, apesar de ainda ser. E acho que o capitalismo, um sistema montado para que uma grande parte não tenha acesso [às coisas], é meio o 3%”

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(Netflix/Divulgação)

E o Intervenção?
É sobre uma menina que fez a Escola de Cadetes e é jogada no caos do Rio de Janeiro, logo no final das UPPs, na época que a gente ainda acreditava um pouquinho nelas. Então, ela entra muito esperançosa e ingênua, com uma lavagem cerebral e se debate com a realidade. Sempre quis falar das UPPs. Vi o que aconteceu com o Rio, o saqueamento com essa promessa de Olímpiada, essa euforia. Então, me interessava muito esse tema, foi um trabalho que eu me envolvi muito para fazer, mexeu muito comigo esse acordar dessa jovem para a realidade dura, caótica e fora de controle que está vindo.

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E como você lida a ansiedade de querer voltar a atuar?
Tem dias que tenho uma paz muito grande, uma aceitação de que [a pandemia] vai passar e de que estamos enfrentando isso juntos. Tem outros dias que acho que vai dar tudo errado. E tem os momentos em que os trabalhos acontecem, você faz, dá um jeito de atuar. Estou tentando escrever um pouco, é um trabalho que dá para fazer agora, preparar alguma coisa para ser filmada lá na frente. Estou muito aberta para me adaptar, aceitando as limitações. Não vai dar para eu voltar para o estúdio amanhã filmar uma série, como eu iria, talvez. Mas o que dá para eu fazer? Estou um pouco assim, inquieta, menos que ansiosa, e querendo produzir.

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