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“Por que não usou camisinha?”

Perguntar é fácil, mas ainda é preciso falar sobre e entender porque quase 80% da população brasileira não usa preservativo na hora de transar

por Uno Vulpo Atualizado em 22 dez 2021, 15h50 - Publicado em 14 out 2021 00h08
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(capitular/Arte)

ue camisinha é maravilhoso, perfeição, coisa mais linda do mundo, que devemos defender até a morte o seu uso e brigar para as pessoas usarem é fato. Quando a pauta surge em qualquer conversa, é natural abordarmos o assunto dessa maneira, mas todos sabemos que, na prática, o papo não é tão escrito em pedra assim. Na realidade, usar camisinha não é tão fácil como parece – muita gente realmente não gosta e várias são as questões que entram em jogo na hora de colocá-la. Ainda existe um grande medo de assumir que não quer usar ou que incomoda e esse tabu em si é um obstáculo para a saúde pública entender as demandas dos transantes e saber as melhores formas de direcionar ou aconselhar.

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Antes de tudo: camisinha é um método de prevenção às IST’s (infecções sexualmente transmissíveis) e também aos bebês (risos, prevenção contra bebês). Muito provavelmente você já deve ter visto ela na forma mais típica que é uma “capa” de látex, com um anel elástico na base, que vai “encapar” o pênis e impedir que o sêmen expelido na ejaculação entre em contato com a outra parte (ou partes, mundo moderno, né, menina?) envolvida na relação sexual. Mas talvez o que você não saiba é que esse é apenas um dos modelos disponíveis. Além dessas tradicionais também chamadas camisinhas externas, que possuem variantes de textura, cor, sabor, tamanhos e materiais – pra alérgico nenhum dar desculpa –, também existem as chamadas internas, que são as camisinhas para serem posicionadas dentro da vagina (não se fala camisinha masculina e feminina não, tá, amore? É transfóbico). 

Observação rápida e importante: não se pode usar mais de uma camisinha ao mesmo tempo. Ou seja, só um dos envolvidos na hora da transa usa a camisinha, já que, juntas, elas geram atrito e podem rasgar ou sair do lugar. Se for usar no banho, prefira as que têm maior resistência – na farmácia, você encontra de todos os tipos –, pois as chances de rompimento aumentam debaixo de água. 

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(Kareen Sayuri/Ilustração)

Camisinha: vida e obra

Desde o início da epidemia de HIV/AIDS no Brasil, a camisinha é o foco das políticas públicas e ações educacionais com foco na prevenção da doença – agora, o governo federal quer investir em abstinência sexual, mas essa é uma outra pauta. As campanhas tiveram, desde a sua implementação em meados da década de 80, um sucesso em conjunto com a distribuição de antirretrovirais gratuitamente e em escala nacional. Mas é importante observarmos, com uma lupa, as relações e as negociações envolvidas na vida sexual dos brasileiros.

Por exemplo: uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) por meio da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) apontou que apenas 22,8% dos brasileiros acima de 18 anos usam camisinha em todas as relações sexuais. Além disso, as taxas de detecção de HIV continuam altas e em crescimento, de 2012 para cá, principalmente em populações mais jovens. A comunidade heterossexual ainda tem uma mentalidade homofóbica quando o assunto são IST’s e ainda são audíveis burburinhos – loucos, sem noção, surtos coletivos – de que a PrEP incentiva o desuso de preservativo pela população GBT (gays, bissexuais e transsexuais), demonstrando uma falha na disseminação de informação sobre a importância do método de prevenção. Pensar que os outros quase 77% dos brasileiros que não usam camisinha em todas as relações não o fazem apenas por “preguiça” ou opção é ser extremamente reducionista e desconsiderar inúmeras variáveis que estão envolvidas no sexo com preservativo.

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No macro

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que temos uma grande desigualdade no Brasil quando o assunto é escolaridade e renda. Ainda de acordo com a pesquisa mencionada do IBGE, o uso de preservativo em todas as relações sexuais é menos frequente à medida que a escolaridade diminui. Podemos inferir que isso acontece pois as campanhas em prol do uso de preservativo muitas vezes não são compreendidas por inteiro pela população menos privilegiada intelectualmente, tal como as formas de uso, os momentos necessários e as possibilidades de prevenção, profilaxia e contracepção (no Brasil, temos cerca de 11 milhões de pessoas que não sabem ler nem escrever).

É sério. Uma vez, eu estava atendendo no interior de Minas, numa cidade chamada Alfenas, no começo da minha graduação. Chegou um cara dizendo que a mulher engravidou mesmo usando camisinha, e eu comecei, a partir daí, explicar que a camisinha não é 100% de eficácia e afins. Quando eu questionei ele, finalmente, como ele usava, ele me contou que usava, lavava e até usava o preservativo do avesso por vezes. E, não tão obviamente para todos, ela com certeza vai acabar rasgando no meio desse processo. 

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(Kareen Sayuri/Ilustração)

No quesito renda, existem também outros problemas. Mesmo com camisinhas sendo distribuídas gratuitamente em diferentes postos e unidades de saúde pelo Brasil, o acesso a esses espaços é dificultado por fatores como mobilidade urbana, preço dos combustíveis, abrangência das unidades de saúde em nível nacional e até mesmo a dificuldade no planejamento familiar e a compreensão acerca da necessidade de, literalmente, se organizar para transar. O ideal seria que todos nós sempre nos planejássemos e mantivéssemos um estoque de preservativos e lubrificantes em nossas casas sempre na distância do braço para os momentos de maior necessidade, mas infelizmente essa é ainda uma realidade utópica e distante considerando todos os fatores mencionados acima. No fim do dia, no desespero e na hora do “vamo vê”, a camisinha talvez estará apenas disponível num horário em que os postos não estão abertos, em alguma farmácia 24 horas e em preços bastante salgados, considerando a realidade da renda brasileira. Por isso, medidas como a PrEP, uso de DIU (dispositivos intrauterinos) e outras profilaxias e métodos contraceptivos de longa permanência são tão importantes na estratégia de saúde sexual. 

Mesmo as camisinhas tendo surgido há mais de 3 mil anos (sim, gata, o povo já dava o seu jeito lá no Egito Antigo), o seu uso tomou força diante da epidemia de HIV/AIDS nas décadas de 80 e 90. Desde o início das políticas em luta contra a epidemia, a camisinha foi a aposta central e a estratégia mais bem sucedida no controle da doença, junto com a evolução dos antirretrovirais. Entretanto, as campanhas e todas as políticas estavam imersas em uma homofobia e transfobia muito forte da época. Durante muito tempo, o HIV foi chamado de vírus gay e tal propaganda enraizou a ideia de que apenas a comunidade LGBT teria chances de contrair o vírus. Como resultado, temos, até hoje, a equivocada terminologia “grupo de risco” sendo utilizada amplamente quando falamos sobre AIDS e a forte adesão aos preservativos fica muito restrita à comunidade LGBTQIA+. Um exemplo – não estatístico – mas que gosto sempre de abordar é que, se numa turma de pessoas diversas, você pedir para levantar a mão quem sabe onde é o CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento) da sua cidade ou no mínimo o que seria um um CTA, eu aposto que a maioria a conseguir responder serão pessoas da comunidade LGBTQIA+.

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Durante muito tempo, o HIV foi chamado de “vírus gay” e isso enraizou a ideia de que apenas a comunidade LGBT teria chances de contrair o vírus. Como resultado, temos, até hoje, a equivocada terminologia “grupo de risco” para falar sobre AIDS e a adesão aos preservativos fica muito restrita à comunidade LGBTQIA+

Faço aqui uma observação que o termo grupo de risco é errado pois não existem grupos que têm mais risco de contrair HIV ou demais IST’s, na verdade o termo correto é comportamento de risco que contempla todas condutas e práticas que aumentam as chances de contaminação. Por exemplo, sexo sem camisinha é um comportamento que aumenta as chances de infecção por qualquer IST, independente do gênero ou sexualidade dos envolvidos.  

Logo, temos um grande problema no Brasil no que tange a educação sexual. Não temos previsto nos planos nacionais de educação uma estrutura complexa, completa e contextualizada de educação em saúde sexual, e todas as tentativas disso ser feito são hoje reprimidas pelo estado, sendo chamadas de imorais. O que temos no fim é, no máximo, uma tentativa em implementar, na educação brasileira, frases de impacto e propaganda em prol da abstinência sexual ou da iniciação sexual tardia. Me pergunto agora se, quando essas pessoas finalmente transarem, elas terão um conhecimento completo e correto a respeito de infecções sexualmente transmissíveis, sexo seguro, uso de preservativos, anticoncepção, consentimento e demais temas que não seriam abordados dentro de uma estrutura focada em “evitar que o jovem transe antes da hora”.

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(Kareen Sayuri/Ilustração)

No micro

Além de todos os problemas estruturais, é importante pontuar que, dentro das nossas relações, existem outros obstáculos que dificultam o uso da camisinha. Dentro das relações homossexuais, acredito que seja mais fácil a discussão acerca do uso do preservativo. Por outro lado, na comunidade heterossexual, as chamadas negociações são mais frequentes. A começar na estrutura da monogamia, é comum que casais parem de usar preservativo depois de um determinado tempo de relacionamento, independente do motivo. Há uma relação de confiança bem perigosa nesse combinados: quando somamos com todos os outros problemas que já citei no início do texto, qualquer “pulada de cerca” pode se tornar potencialmente infectante para a parte “chifrada” da relação – lembrando que, mesmo se a camisinha for usada, HPV, herpes e outras doenças não têm proteção absoluta apenas com camisinha.

Não à toa, já atendi muitos casos de mulheres casadas que foram infectadas com sífilis, HIV e outras IST’s após terem sido traídas pelos seus maridos. E infelizmente, convencer, após anos de casamento ou relacionamento, um casal a voltar usar camisinha – se algum dia já usaram – é uma dificuldade que médicos e profissionais da saúde enfrentam diariamente nos consultórios.

Na comunidade heterossexual, as chamadas negociações são mais frequentes. A começar na estrutura da monogamia, é comum que casais parem de usar preservativo depois de um determinado tempo de relacionamento – há uma relação de confiança bem perigosa nesse combinados

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“Não gostar de camisinha”, seja por conta da textura, cheiro ou quaisquer motivos, não é o problema de saúde pública que enfrentamos. O problema que temos de enfrentar é a educação sexual pobre que impede que as pessoas que optam por não usar o preservativo não cheguem nas outras possibilidades de profilaxia. Uma educação sexual defasada, pessoas com vergonha de abordar tais queixas amplamente e aquelas respostas automáticas de “ai, camisinha incomoda, e pronto acabou, não vou usar” ou “tem que usar camisinha, sim, não tem conversa” refletem numa desistência do método preventivo sem antes avaliar, por exemplo, a enorme gama de possibilidades existentes no mercado, com tamanhos diversos, uma enorme variedade de texturas, versões hipoalergênicas e outras variantes, além de entender os motivos que geram o incômodo – que podem estar associados ao mal uso ou uso equivocado por exemplo.

No começo da minha vida sexual eu não sabia que precisava apertar a pontinha – nem o porquê disso – antes de colocar. Daí eu colocava e ficava cheio de ar e eu não sentia nada, além de ter mais chances de estourar. Só fui saber disso anos depois.

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(Kareen Sayuri/Ilustração)

Tem como não usar?

Sim, é possível viver uma vida sexual saudável sem camisinha, desde que você faça uso de outras estratégias, como testagens frequentes, diálogo com o parceiro (ou parceiros), PrEP, PEP, práticas sexuais não penetrativas e várias outras possibilidades. A camisinha é um método contraceptivo que deve ser complementar, ou seja, deve ser somado a demais práticas para que haja uma proteção realmente adequada. Inclusive, eu falo como transar sem capa e de forma segura no meu podcast

De toda forma, a camisinha é, hoje, a forma de se proteger que engloba o maior número de infecções sexualmente transmissíveis, além de ser o método mais barato – com exceção da abstinência sexual, mas eu particularmente acho um preço caríssimo não transar, a gente acaba gastando mais com distrações (risos) – e de uso mais fácil. É um método quase universal, pois tem disponíveis no mercado para pessoas com vaginas (camisinhas internas) e pênis (camisinhas externas) e a disponibilidade é grande também, sendo bem fácil de encontrar gratuitamente nos postos de saúde por exemplo.

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“A camisinha é, hoje, a forma de se proteger que engloba o maior número de infecções sexualmente transmissíveis, além de ser o método mais barato – com exceção da abstinência sexual, mas eu particularmente acho um preço caríssimo não transar”

Uno Vulpo
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PS: Além da camisinha, use bastante lubrificante! Eles diminuem a chance dela romper, facilitam a penetração e ajudam muito até para colocar. A dica é colocar uma gotinha de lubrificante na pontinha antes de desenrolar ela no seu pênis. Depois de colocar, “taca” lubrificante em cima, pois antes de assar, tem que untar (não use por hipótese alguma manteiga, condicionador, shampoo, sabonete, óleo de cozinha ou qualquer coisa que vier na sua cabeça, use apenas LUBRIFICANTE MESMO E PARA HUMANOS, você não é um carro).

Vale muito a pena usar a camisinha por todos os motivos já citados. O que quero enfatizar aqui nesse texto é que, independentemente do método preventivo ou anticoncepcional, é importante que a educação sexual seja aliada, pois ela evita que você deixe a sua “capa” cheia de ar e com risco de estourar – como eu fazia – ou que você não saiba que existem outros tamanhos e texturas se esse for um problema para você.

E, no fim, o queridíssimo governo deve, junto dos profissionais, entender os motivos da baixa adesão e trabalhar em cima deles, mais do que apenas fazer um comercial atrás do outro em horário nobre.

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A tipografia de “Por que não usou camisinha?” bundinha “Por que não usou camisinha?” usada nessa matéria é a Typefesse do designer Océane Juvin.

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