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A atualidade do cangaço

Série "Cangaço Novo" da Amazon estabelece um retrato contemporâneo do banditismo nordestino

por Humberto Maruchel 1 set 2023 11h35

O cangaço não é um assunto novo para o cinema. Muitos clássicos já foram produzidos, principalmente a partir das décadas de 1950 e 1960, sob o olhar de cineastas como Lima Barreto, com O Cangaceiro (1953), e de Glauber Rocha, em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Há também versões mais contemporâneas, que vão desde produções infantojuvenis, como O Cangaceiro Trapalhão (1983), dirigido por Daniel Filho, até retratos feministas e atualizados, como foi o caso do filme Entre Irmãs (2017), dirigido por Breno Silveira. Sem esquecer da obra que já nasceu histórica, Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Aparentemente, há um universo de possibilidades para abordar esse assunto, que permanece vivo no imaginário popular. É nesse contexto que a série Cangaço Novo abraçou o desafio de reciclar a temática e se tornar uma das grandes apostas nacionais da Amazon Prime Video para este ano.

Com produção executiva da O2 Filmes e direção de Fabio Mendonça e Aly Muritiba, a trama gira em torno do conflito entre os irmãos Dinorah (Alice Carvalho), Dilvânia (Thainá Duarte) e Ubaldo (Allan Souza Lima), na fictícia cidade de Cratará, uma localidade miserável e abandonada no sertão cearense. A memória e o legado do pai, Amaro, entrelaçam as jornadas dos três personagens, que representa um tipo de herói cangaceiro de Cratará. Ubaldo, o filho mais velho, é um ex-bancário que leva uma vida infeliz em São Paulo. Sua rotina gira em torno do cuidado com o pai adotivo, Ernesto (Ricardo Blat), que está bastante doente. Desempregado, ele recebe uma informação no momento oportuno: a de que teria direito à herança de Amaro, assassinado quando Ubaldo ainda era criança.

Sem memórias da infância vivida na casa de Amaro, Ubaldo se depara com um cenário surpreendente: sua irmã do meio, Dinorah, é uma das líderes de uma quadrilha que rouba bancos. E a irmã mais nova, Dilvânia, uma jovem que ficou muda devido ao trauma do assassinato dos pais, lidera um grupo religioso que cultua o falecido Amaro. Ela é a primeira a encontrar Ubaldo. O rapaz apresenta uma incrível semelhança com o pai, o que leva os habitantes locais a acreditar que ele poderá ajudá-los a superar as enormes crises, como a falta de água e a pobreza.

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(Amazon Prime Videos/Divulgação)

No entanto, há uma mudança de rumos. O primogênito decide se aliar ao bando de Dinorah e aplicar sua experiência como ex-bancário para realizar roubos mais inteligentes e sofisticados, e menos violentos. Ele busca agregar valores que vão além da ambição da quadrilha. Rapidamente, ele se torna um dos comandantes ao lado da irmã, sugerindo que ele pode ser o herói a tomar o legado do pai. E é justamente a semelhança com o pai que molda o destino desse anti-herói.

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(Amazon Prime Videos/Divulgação)

Como nasce um clássico

A ideia do nordestern, o faroeste brasileiro, nasceu do desejo de um dos criadores, Eduardo Melo, cujos pais são nordestinos. Por muitos anos, ele viveu no sertão cearense e queria retratar as memórias e histórias que ouvia na infância sobre a região. Com Mariana Bardan, Eduardo apresentou a ideia da série para a Amazon nos primeiros dias de atuação do estúdio no Brasil.

O gênero de ação era uma escolha natural, um estilo que facilmente cativaria o público, e havia muitos elementos que impulsionavam o projeto. E, de fato, chamou a atenção da pessoa certa. “É uma série ousada, extremamente única. Estávamos construindo o estúdio, e na época eu era a única pessoa trabalhando no estúdio no Brasil. Eu ouvia de 50 a 100 pitches por dia. E quando algo se destaca de maneira tão marcante, e você consegue visualizar e sentir o que aquilo poderia ser, esse é o melhor tipo de pitch”, conta Malu Miranda, chefe de conteúdo original brasileiro para o Amazon Studios.

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(Amazon Prime Videos/Divulgação)

Cangaço: fenômeno social

Foi por volta do final do século 19 que rumores sobre a insurreição de grupos revoltosos que saqueavam e dominavam cidades, desafiando as autoridades da época, chegaram à imprensa brasileira. O movimento foi visto como um fenômeno social, uma vez que surgiu da indignação com a desigualdade, a concentração de poder dos aristocratas e a falta de assistência do Estado em certas regiões.

Até hoje, existem relatos de grupos que invadem pequenas cidades do interior com pouca força policial e, portanto, com dificuldades em se defender. Grupos de até 15 pessoas costumam chegar durante a madrugada, assaltar agências bancárias e escapar com relativa facilidade. O fenômeno do cangaço deixou de ser restrito ao Nordeste e aos relatos do passado. Em julho deste ano, o pacato município de Santa Branca, no interior de São Paulo, com apenas 14 mil habitantes, foi alvo de uma quadrilha. Em um intervalo de 40 minutos, a gangue bloqueou uma rodovia, explodiu cofres em dois bancos, trocou tiros com a polícia militar e fugiu. Esse tipo de operação, muitas vezes ligado a organizações criminosas conhecidas do país, passou a ser chamado de “novo cangaço”. A série da Amazon se inspirou nesse fenômeno, embora haja um descolamento das ações atuais em relação ao antigo desejo de fazer justiça, que levava alguns cangaceiros a serem vistos como heróis pelo povo.

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(Amazon Prime Videos/Divulgação)

Autenticidade acima de tudo

Tanto para os criadores de Cangaço Novo quanto para a equipe de direção posteriormente envolvida, era essencial que o projeto transmitisse autenticidade na representação do Nordeste. Eles decidiram montar um time composto principalmente por profissionais originários da região.

“Desde o início do projeto, acreditávamos que deveríamos ter uma representação muito cuidadosa e fiel [do Nordeste]. Isso era essencial para que a história funcionasse e para aproveitarmos todas as oportunidades ali. Mesmo que os atores fossem excelentes, ou mesmo que as locações no sudeste fossem boas, eu não acreditaria. Perderíamos uma oportunidade de aprendizado, seria um esforço unilateral”, afirma o diretor Aly Muritiba.

Isso trouxe o desafio de persuadir as partes interessadas a deixar de lado nomes mais conhecidos e escolher com base no talento. Eles se depararam com uma abundância de atores talentosos. “Não foi fácil. Conceitualmente, era fácil. Tudo o que fizemos tinha a intenção de respeitar e autenticidade brasileira, mas sempre há obstáculos e dúvidas. As pessoas sabem que há um risco ao não termos um elenco com duas figuras muito famosas. Mas, para mim, pessoalmente, para fazer isso de verdade, não há outra opção”, declara Malu.

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(Amazon Prime Videos/Divulgação)

Embora a Amazon estivesse em fase de estruturação, eles defenderam a busca por locações que se alinhassem à história. Durante cinco meses, eles estabeleceram cenários nas cidades de Cabaceiras (PB), Parelhas (RN), Equador (RN), Currais Novos (RN), Acarí (RN), Parelhas (RN) e Carnaúba dos Dantas (RN).

Aproximadamente 85% do elenco contratado é proveniente do Nordeste. Apenas a atriz Thainá Duarte, que faz parte do núcleo central de atores, vem do sudeste do país, de São Paulo. “Encontramos uma quantidade enorme de atores de alto nível nos testes, muitos dos quais nunca tínhamos visto antes. Seria um desperdício não trabalhar com essa turma, ou seria um erro grave, porque tínhamos mais pessoas talentosas do que papéis disponíveis”, diz Aly.

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(Amazon Prime Videos/Divulgação)

Esse foco na autenticidade também teve um impacto positivo no elenco, que se sentiu valorizado. “Eu achei muito importante quando soube que o elenco era majoritariamente nordestino. Poder conversar com pessoas da mesma região, com atores nordestinos, me deixou muito feliz. Me senti mais representada ao poder usar meu sotaque de forma construtiva, e não como um problema. Sou do sertão, então eu sabia como a minha personagem, Leinneane, pensava e sentia”, declara a atriz Hermila Guedes, nascida em Pernambuco.

O processo, contudo, foi demorado. “Eu imagino a dificuldade que os produtores tiveram para escolher esse elenco. Fiz cerca de 20 testes online. Se fosse presencial, talvez tivesse feito apenas quatro ou cinco. Eles realmente precisavam ter certeza dos atores que interpretariam esses personagens”, compartilha o ator Allan Souza Lima.

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Nasce uma estrela

Cangaço Novo tem muitos méritos para se orgulhar: cenas de ação incrivelmente bem executadas, um roteiro coeso que evita, muitas vezes, clichês, e uma excelente direção de arte. No entanto, é na força do elenco que reside o poder do material. E há um nome que merece destaque: a jovem Alice Carvalho, que interpreta a filha furiosa que desconfia desde o início da aproximação de Ubaldo. Alice tem 27 anos e nasceu em Parnamirim (RN), uma cidade que carece de atividades culturais. Foi criada pela mãe e pelos avós, e encontrou no teatro escolar uma forma de extravasar sua hiperatividade. “Foi quase terapêutico”, ela diz. Na adolescência, também se aventurou na escrita, desafiando ainda mais o vazio cultural de sua cidade. Com apenas 16 anos, criou sua primeira peça teatral e deu um jeito de encená-la. “Foi uma espécie de ‘criar a oportunidade para jogar’, como costumo brincar.”

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(Jorge Bispo/Divulgação)

Como aconteceu com muitos outros, seu encanto por narrativas veio do que assistia na televisão. “Eu conheci as grandes histórias, os grandes atores e atrizes pela televisão. Muito mais do que pelos espetáculos de teatro que passavam na cidade. Na adolescência, comecei a me interessar pelo audiovisual. Na faculdade, quando tive acesso a uma biblioteca mais ampla, busquei formação para entender a dramaturgia.”

Aos 18 anos, ela começou a desenvolver o argumento de uma websérie com temática LGBTQIA+, chamada Septo, na qual também atuou, além de produzir. Ela estava estudando Artes Visuais na UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). Pouco depois, ela conseguiu produzir a websérie com o apoio do grupo de audiovisual da faculdade, por meio de financiamento coletivo. Apesar de independente, a série conquistou prêmios importantes no Brasil e no exterior, incluindo o prêmio de Melhor Atriz no Changing Face International Film Festival, na Austrália. As visualizações da série cresceram a ponto de ela ganhar mais duas temporadas. No entanto, a carreira de Alice parecia não estar progredindo.  “A internet me deu a chance de ser vista por diretores de elenco de todo o Brasil. Mas, por muitos anos, fiz muitos testes e nunca dava certo.”

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(Jorge Bispo/Divulgação)

O convite para participar da seleção da série da Amazon veio por uma produtora de elenco que viu Alice em um dos vídeos da banda BaianaSystem. A atriz também estava envolvida na concepção e no roteiro do clipe. “O caminho até a série foi construído com muito esforço, um trabalho coletivo. Nenhuma das iniciativas que tomei foi solitária. Às vezes, com o apoio da família, às vezes com o apoio dos colegas. Em 2020, quando estava lançando a terceira e última temporada da websérie, me convidaram para fazer o teste para Cangaço Novo.”

Era 2020, e o Brasil estava prestes a entrar em uma pandemia. Alice viajou de Natal para João Pessoa. “Fiz o teste sem um puto no bolso. Quando estávamos voltando para Natal, ouvi na rádio que São Paulo iria parar devido à pandemia. Foi um período difícil, achei que não teria mais oportunidades de atuar. No final de 2020, Cangaço Novo retomou com força total e me chamaram para mais testes.”

Finalmente, em janeiro de 2021, ela recebeu a notícia de que tinha sido selecionada. “Foi incrível, foi o melhor dia da minha vida.”

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