Ela saiu e falou: ‘Ó, eu vou sair e ver se arrumo comida. Se eu arrumar comida, eu volto para casa. Se eu não arrumar, eu vou me matar. Vou me suicidar. Vou me jogar do Viaduto do Chá’. A gente ficava ali apavorado, esperando que ela voltasse. Meu irmão pegou pilhas velhas e ferveu, pôs Bombril nelas e disse: ‘Nós vamos ouvir A Hora do Brasil’. Ficamos os três de cabeça coladinha ali no rádio. ‘Se ela se matar, a gente vai saber’, ele falou, ‘porque ela é escritora. Todo mundo vai falar. Se ela não se matar, a gente corre até o ponto de ônibus’.”
Quem conta essa história é Vera Eunice de Jesus, 67 anos, filha caçula de Carolina Maria de Jesus. Fenômeno da literatura mundial no início da década de 1960, a escritora de Quarto de despejo: Diário de uma favelada, lançado há exatos 60 anos, jamais pensou que sentiria fome de novo. Ela deixava o sítio que havia comprado em Parelheiros, na zona sul de São Paulo, e se dividia entre caminhadas a pé e viagens de ônibus ao centro da capital, onde voltou a catar papel para alimentar seus filhos, João José, José Carlos e Vera, então adolescentes.
Carolina passava horas, às vezes dias, até conseguir o necessário para colocar comida na mesa. Famélicos, como a própria autora dizia em seu português rebuscado, os jovens andavam mais de um quilômetro na expectativa de encontrar a mãe com vida. Eles iam e voltavam aflitos pelo mesmo caminho repetidas vezes para esperar a chegada do último ônibus.
“Lembro como se fosse hoje, a gente olhou e viu aquela mulher bem pretinha na frente do ônibus, já para descer. Nossa, que alegria! Ela desceu com sacola de comida e até com uma vassoura para a gente varrer a casa. Imagina, vassoura era luxo. E ali ela tinha a ‘paz interior’ que ela falava. Ela sentava debaixo das árvores do sítio, que estão lá até hoje, e escrevia, as ideias afloravam”, recorda Vera Eunice, professora de português do ensino público em São Paulo.
Sucesso com prazo de validade
Os registros de Carolina Maria não estavam reservados para nenhuma editora, mas para si própria. Passado o frisson de Quarto de Despejo, a escritora chegou a publicar mais três livros, porém sem repetir a repercussão. Aquele momento da vida, na metade da década de 1960, em nada parecia com o passado recente, quando chegou a vender 100 mil exemplares de sua obra de estreia, viajou de avião para ir a festivais literários pelo mundo e até encontrou o presidente João Goulart.
Nascida em Sacramento (MG), ela ficou conhecida mundialmente com seus manuscritos biográficos, editados pelo jornalista Audálio Dantas, que a descobriu em uma matéria sobre a favela do Canindé em 1958. Literata negra de pele retinta, de corpo magro e esguio, caracterizada pelo lenço na cabeça, ela expôs as contradições sociais de um Brasil que crescia economicamente a largos passos, com a criação da nova capital Brasília como peça-chave de um projeto político que deixava de fora aqueles que dormiam no quarto de despejo. Mas não apenas sobre isso.
Depois de sua morte, em 13 de fevereiro de 1977, a escritora tem sido redescoberta em ciclos espaçados. O lançamento póstumo de Diário de Bitita, curiosamente na França, em 1982, reavivou a memória da sacramentense no imaginário popular. No ano de centenário, em 2014, Carolina voltou a ser a celebrada, foi tema de exposições, biografias e incontáveis estudos acadêmicos.
Mais recentemente, a Companhia das Letras anunciou que irá, a partir do ano que vem, publicar sua obra, resgatando 27 textos originais como aquele que só puderam ser escritos após alcançar a tal paz de espírito. Um conselho foi criado para editar os manuscritos e conta com a presença de Vera, a escritora Conceição Evaristo e as pesquisadoras Amanda Crispim, Fernanda Felisberto, Fernanda Miranda e Raffaella Fernandez.
Ostracismo ou racismo?
Contemporâneos como Jorge Amado, Clarice Lispector e Guimarães Rosa preservaram seu prestígio literário até o último dia de suas vidas, enquanto Carolina Maria morreu sem conseguir desfrutar do mesmo respeito. Pode-se dizer que uma mulher negra, mãe solteira e semianalfabeta que ousou escrever acabou sendo vítima de um certo ostracismo. Ou melhor, ost(racismo).
Quem confirma essa hipótese é a escritora Conceição Evaristo. Ela mesma teve seu primeiro e único contato por muitos anos com Quarto de Despejo quando tomou emprestado um exemplar que circulava entre colegas de um grupo de movimento de base da igreja católica. “Eu lia e me sentia como uma personagem de Carolina”, relembra, na época uma adolescente que morava em uma favela em Belo Horizonte. Hoje tem quatro exemplares desse livro em sua biblioteca, incluindo um presente de sebo com autógrafo da própria Carolina. Já Diário de Bitita só chegou em suas mãos há menos de dez anos.
É impossível falar de Quarto de Despejo sem associá-lo à narrativa da fome, mas a conterrânea defende que a obra explora muito além do óbvio. “Carolina é uma mulher que experimenta a pobreza, mas também está escrevendo sobre a carência humana. É no sentido da solidão, não apenas a fome física. Carolina não está só falando de carências materiais, mas de uma carência humana muito maior, que é o experimento da solidão. Ela escreve quando está com fome, com alimentos mais fartos para seus meninos ou quando está enamorada. O sustento de Carolina como pessoa é a escrita”, aponta Conceição.
A autora de Olhos d’água recorda que Carolina Maria de Jesus foi a primeira referência de literatura negra que teve. Não sabia que Machado de Assis, até então embranquecido nos livros de história, era negro como ela. A única obra à disposição da catadora de papel de Sacramento foi tão influente que inspirou sua mãe, dona Joana Josefina Evaristo, hoje com 97 anos, a escrever um diário nos anos 1970.
Para Conceição Evaristo, a falta de acesso à obra de Carolina é apenas um dos pontos que explica o racismo no Brasil, e ela se tem como próprio exemplo. “Existe um aspecto bastante sério que é esse imaginário que se tem em relação às pessoas negras, à escrita das mulheres negras. Um professor estava em uma banca de mestrado ou doutorado e uma das críticas era que a autoria negra ficava presa à memória. O que eu rebato é o seguinte: Becos da Memória é um livro de memória ficcionalizada. Nada que está ali é verdade e nada que está ali é mentira. São experiências vivenciais que transformei em ficção”, afirma a Elástica a autora de 73 anos.
Ela continua: “É um trabalho de criação que eu faço, inclusive de linguagem, mas há uma má vontade de se pensar nisso. E a pergunta que fica é a seguinte: um grande escritor brasileiro, Pedro Nava, escrevia memórias. Ninguém deixa de incluir a obra de Pedro Nava como um grande escritor porque ele escrevia memórias. Você percebe que há uma crueldade e essa crueldade no fundo sustenta o racismo. Qual é o problema de negros estarem escrevendo memórias? Há um juízo de valor que passa não pelo material, mas pelo sujeito que está atrás dessa produção. Isso é muito cruel.”
“Coloque livros no meu túmulo”
Vera Eunice nasceu com espírito de rico, segundo sua mãe. Ela sentia nojo de lixo, queria bolos de aniversário e sonhava com vestidos cor-de-rosa e bonecas falantes. Portanto, não foi nenhum problema quando Carolina passou a ser requisitada em eventos no Brasil e em países vizinhos. Viajar de avião era inimaginável para quem vivia até pouco tempo na favela do Canindé sem saber qual seria a próxima refeição. Das margens do Rio Tietê, a família se mudou para Osasco e, então, se instalou por três anos em Santana até morar definitivamente em Parelheiros a partir de 1964.
Ela rememora que não foram bem aceitos em Santana, bairro de classe média da zona norte, nos três anos que viveram lá. A fama imediata obtida com Quarto de Despejo despertou a atenção não só da crítica literária, mas de pessoas em situação de vulnerabilidade social. “Amanhecia o dia e tinha gente pedindo para comprar caminhão, casa, alimento. Ela atendia todo mundo. A nossa situação ficou caótica. Quando fomos morar em Parelheiros, ela estava desgostosa de lá [Santana]”, lamenta.
“Nunca terminei de ler ‘Quarto de despejo’. Preciso tirar esse trauma de mim. Fico pensando como ela sofreu. E por que ela sofreu tanto? Por ser inteligente”
Vera Eunice de Jesus
Essa e outras histórias estão sendo descobertas por Vera recentemente. Ela ficou incumbida de manter vivo o legado de Carolina Maria, como solicitado por sua mãe em uma carta entregue antes de morrer. “Ela me pediu para colocar livros no túmulo dela”. Naquelas folhas também foi solicitado que cuidasse de seu irmão João José – que faleceu seis meses depois de insuficiência renal –, preservasse o sítio e se formasse professora de português.
Nos últimos anos, Vera conta que soube da boca de Audálio Dantas, morto em 2018, que a intenção dele era que Carolina se dedicasse com exclusividade aos diários. Entretanto, ela queria que seus romances chegassem ao público leitor, o que só foi possível com Pedaços da Fome, de 1963, cujo título original era A Felizarda. Se ela conseguisse concretizar esse sonho, talvez mudasse um incômodo cenário: apenas 11 livros desse gênero literário foram publicados por mulheres negras entre 1859 e 2006, de acordo com a pesquisa de doutorado de Fernanda Miranda.
O desprezo de Jorge, o respeito de Clarice
Quando criança, Vera Eunice conheceu os pés de Jorge Amado. Isso porque o escritor de Ilhéus, na Bahia, convidou a escritora para se hospedar em sua casa no Rio de Janeiro para participar de um evento. Ao chegarem lá, relembra, as duas foram barradas na porta pelas empregadas domésticas. Carolina teve que procurar um hotel para passar a noite, mas a criança foi acolhida pelas funcionárias e dormiu na sala do autor sem ele saber.
“As empregadas me puseram num sofá-cama e disseram ‘você vai dormir aí’. Elas combinaram que a minha mãe ia me buscar cedinho na manhã seguinte. [Ao amanhecer] elas me pegaram correndo e me colocaram debaixo da mesa. Eu vi os pés do Jorge Amado. Ele ficou enciumado com a minha mãe”, ela opina, em referência ao fato de Carolina Maria de Jesus vender mais livros que ele naquela época.
Se o escritor de Gabriela, Cravo e Canela resguardava sentimentos pouco afetuosos, a admiração veio de uma mulher literata: Clarice Lispector. O carinho recíproco era impensável para o biógrafo de Clarice, o estadunidense Benjamin Moser, que narrou o encontro das duas com a presença de uma “estrela de cinema”, referindo-se à autora naturalizada brasileira, e a “empregada doméstica de Clarice”, aludindo a autora de Quarto de Despejo.
“Minha mãe foi ao lançamento de um livro da Clarice. Ela se abaixou, era muito alta, e falou para mim: ‘Guarda o nome dela, ela se chama Clarice Lispector. Você vai ouvir falar muito dela’. E ela chegou muito tímida e emocionada, disse que a Clarice era uma grande escritora e ela respondeu que a verdadeira escritora era ela [Carolina], porque ela escreve a realidade. Clarice tinha muito respeito pela minha mãe”, afirma.
O verdadeiro lugar de Carolina
Essas memórias resgatadas – e certamente as que ainda virão – serviram de motivação para Vera Eunice começar a escrever uma nova biografia de sua mãe. À reportagem, a professora sintetiza que precisa “colocar as verdades”. Só que esbarra em algumas dificuldades: as lembranças de sua mãe e a emoção que sente ao abrir Quarto de Despejo. Ela nunca chegou a ler o livro por completo. “Preciso tirar esse trauma de mim. Fico pensando como ela sofreu. E por que ela sofreu tanto? Por ser inteligente.”
Existem mistérios por trás da autora como, por exemplo, seu nascimento e morte. Embora é sabido que Carolina veio ao mundo em 14 de março de 1914, Vera questiona a data. Há documentos oficiais que apontam a nascença em 1915, 1917, e ela mesma dizia que era de 1921. A causa da morte, crise de insuficiência respiratória devido a complicações da asma, também é contestada por sua filha. “Ela não tinha asma, tinha Doença de Chagas. Acredito que foi a Doença de Chagas que pegou. Ela fazia tratamento. Eu tenho certeza disso.”
Ao pensar no lançamento das obras inéditas, o conselho avalia que os livros têm de ser publicados com o máximo de fidelidade aos textos originais. Até mesmo uma reedição de Quarto de Despejo, com novo título e texto, está prevista para o breve futuro. Quem analisou os cadernos afirma que o conteúdo é cinco vezes maior do que o publicado há 60 anos. A edição atual tem cerca de 200 páginas.
Em meio à recuperação dos textos, a filha caçula ainda tem uma preocupação que consome seu tempo: um novo lugar para o acervo de Carolina Maria. Ela afirma que o Arquivo Público de Sacramento não é o local mais adequado. Faltam medidas de conservação, cuidado e estrutura física, diz. “Já vi livro molhado, gente pegando as coisas com as mãos. Sumiram várias fotos, agora só tem seis, e antes tinha 23”. O material está guardado em caixas no antigo presídio da cidade, onde a escritora foi presa acusada de ler um livro de bruxaria. Biblioteca Nacional, IMS Rio e Museu Afro Brasil estão na disputa.
Para Conceição Evaristo, Carolina se apropria de uma linguagem muito singular por não seguir as regras na norma culta – ou oculta, segundo ela, por chegar a poucas pessoas –, o que pode desencadear em outro tipo de preconceito, o linguístico.
“Carolina, que não tinha conhecimento das normas cultas da língua, insisto em dizer isso, usa um processo de criação semelhante ao de Guimarães Rosa, mas com fundamentos diferentes. O dele é o próprio conhecimento e o dela é a carência, é a necessidade de se expressar. Por que desprezar a potência criativa de Carolina Maria de Jesus?”
Conceição Evaristo
“Um escritor com domínio da norma culta pode brincar com a língua, ferir a gramática, criar neologismos e tudo fica visto como estilo. Quem mais demonstra isso é Guimarães Rosa. Carolina, que não tinha conhecimento das normas cultas da língua, insisto em dizer isso, usa um processo de criação também, só que com fundamentos diferentes. O dele é o próprio conhecimento e o dela é a carência, é a necessidade de se expressar. Por que desprezar a potência criativa de Carolina Maria de Jesus?”, indaga.
E hoje, seis décadas depois do lançamento de Quarto de Despejo, Vera Eunice encara o desafio de apresentar aos leitores (e críticos de plantão) que sua mãe é uma escritora que deve estar no mesmo lugar que Machado de Assis, Clarice Lispector e Jorge Amado. E que ela nunca saia de lá, espera a filha.