reabertura dos museus e galerias brasileiras está coincidindo com um momento único da nossa história da arte. Em fevereiro do ano que vem, celebraremos o centenário da Semana de 1922, o passo reconhecidamente mais importante para o Modernismo aqui no país. A partir desse mês de setembro, diversas exposições já começam a ser inauguradas a fim de comemorar e trazer reflexões sobre esse momento, entre elas o Centro Cultural Banco do Brasil.
Com curadoria de Tereza de Arruda, o CCBB abre no Rio de Janeiro a mostra “Brasilidade Pós-Modernismo”, que fica em cartaz na cidade até 22 de novembro. Refletindo sobre as consequências do Modernismo na formação dos artistas da segunda metade do século 20 e desse início de século 21, a mostra também será exibida em São Paulo, a partir de 14 de dezembro, e em Brasília e Minas Gerais já em 2022.
A exposição parte dos anos 1960, com obras de Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi, Helio Oiticica e Jorge Bodanzky, passa pelas consagradas Adriana Varejão e Beatriz Milhazes, e desemboca naquilo que há de mais fresco na produção artística nacional, como Maxwell Alexandre e Ge Viana.
Nós conversamos com Tereza de Arruda sobre a mostra, sua proposta e sobre como o Modernismo está sendo repensado a partir desse seu centenário. Confira:
A Semana de 22 começa a ser comemorada nesse final de ano, coincidindo com uma reabertura mais ampla dos museus em todo o Brasil. Em um contexto em que essas obras são bastante disputadas no país e em todo mundo, o CCBB opta por abrir uma mostra com o pós-modernismo brasileiro. Pode me falar um pouco sobre a exposição e o debate que ela apresenta ao público?
Optamos por não ter um foco histórico não somente pela indisponibilidade de obras, mas porque boa parte dessas obras fazem parte de acervos de museus que foram concebidos e estruturados nesse contexto, como o MAM-SP. As obras, de certa forma, têm visibilidade permanente. Também pensei que não podemos sempre ficar falando do mesmo, sempre retomando o mesmo. Claro que existem questões que precisam ser levantadas sobre aquele evento que aconteceu há 100 anos, mas isso já está sendo debatido, além de que estão programadas algumas exposições históricas.
Acho que o importante nesse momento é não visualizarmos sempre o mesmo pelo mesmo viés. É tentar, após 100 anos, seguir outro caminho, ter outra perspectiva sobre o mesmo assunto. Por isso também o título “Brasilidade”. Eu penso assim: Brasil com uma certa idade. Temos uma certa idade, supostamente um certo amadurecimento, um senso crítico, alcançamos parte daquelas ambições. Em termos de Brasil, sabemos que ainda tem muito a ser feito. Então, essa foi a intenção: não ficarmos atrelados ao que já acontecia, mas pensar no hoje baseado nas obras que foram feitas a partir da década de 1960 até a atualidade.
“Acho que o importante nesse momento é não visualizarmos sempre o mesmo pelo mesmo viés. É tentar, após 100 anos, seguir outro caminho, ter outra perspectiva sobre o mesmo assunto”
Em seu caráter mais reconhecido, o Modernismo mudou a cara da arte brasileira a partir de alguns pilares clássicos, como a literatura e a pintura. O pós-moderno, por outro lado, é muito amplo, se destacando em instalações, na arquitetura, na produção abstrata, nas colagens, no cinema. Quanto dessa pós-modernidade é herança dos modernistas clássicos, e quanto é uma fagia de um mundo pós-guerras já se globalizando?
A exposição é dividida em núcleos que correspondem ao legado histórico. Naquele momento, realmente os pilares eram a literatura, as artes plásticas e a música. Mas tudo muito limitado, havia pintura e escultura, a música apenas clássica, enquanto na literatura havia um momento em que se pleiteava uma autonomia do português brasileiro, uma tentativa de sair da formalidade do português que vinha de Portugal.
O que estamos mostrando nessa exposição são os desdobramentos do Modernismo. Quando falamos de literatura, apresentamos um núcleo sobre a poesia, o que ela é hoje, o que é a palavra como elemento autônomo. Também vemos que as artes plásticas evoluíram muito em caráter conceitual. Temos um segmento que fala sobre a estética. As obras de Beatriz Milhazes têm elementos pictóricos que resgata justamente dessa brasilidade que vem desde o período colonial até a contemporaneidade. Há ainda um núcleo que fala sobre liberdade, mas como um pano de fundo para questões de autonomia política. Pensamos na obra de Adriana Varejão, que está pleiteando aqueles azulejos. Isso é baseado em elementos herdados.
Nós carregamos grande parte daquela herança colonial e pós-colonial. Seguimos para o Modernismo, saímos dele, e, de forma geral, estamos em um mundo pós-globalização, no qual, talvez, estejamos voltando um pouquinho para a autenticidade de cada localidade. É quase como um miscellanious. Nós vivemos um período misto, atípico, pandêmico, em que automaticamente houve uma desaceleração, em que a questão de fronteiras criou outro formato, outra presença. Eram elementos que tentávamos nos desmembrar no período do Modernismo, e agora tivemos que nos apegar a eles novamente. Até por isso a exposição não é vista como um ponto final, onde nós chegamos. É impossível você fechar essa porta e dizer que acabou aqui.
Um ponto que me chama a atenção nessa mostra é trazer artistas que são vanguarda há mais de 50 anos, seja Niemeyer, Lina Bo Bardi, ou Helio Oiticica, ao mesmo tempo apresentando expoentes de uma geração que está acontecendo em tempo real, como Maxwell Alexandre e Ge Viana. Nesse sentido, você acredita que esse momento pós-moderno, contemporâneo, será lembrado como um período mais fluído, e não um recorte de um momento, como é o Modernismo?
Acho que será algo que fluirá mais. Inclusive, nessas atividades todas que estão sendo organizadas para a celebração do centenário, muitas irão rever justamente que a Semana de 22 foi um marco, mas não o único elemento decisivo do Modernismo. Haviam elementos pré-Semana, assim como houve inúmeros pós. Ali houve uma atitude de um grupo com condições e articulações específicas.
Hoje estamos nessa fase de olhar com outros olhos, de reparar. Reparar no sentido de tentar ver, mas também no sentido de consertar. Porque muitas vezes seguimos aceitando discursos sem questionar. Muitas coisas nos foram impostas na nossa história, inclusive nas escolas. E isso desde a descoberta do Brasil. Nossa! O Brasil foi descoberto! O que é isso? Ou mesmo quando falamos das culturas indígenas, da herança africana. Sempre somos nós que falamos. Dificilmente demos chances para eles falarem. Independente do nosso projeto, sempre fico me perguntando o que seria da América Latina se ela não tivesse sido descoberta pela Europa. Ela estava, em muitos casos, tão além. E hoje, olhando para a sustentabilidade, para a preservação da natureza, para questões éticas, temos que voltar e ouvir o que nossos ancestrais têm a dizer. Porque eles estavam aqui lidando com tudo isso de uma forma regrada em harmonia. Nós inventamos que tinha que ser outro formato.
Então, é hora de rever esse processo. E temos a chance de reconhecer, discutir e seguir por outros caminhos e vieses. Em nossa exposição, incluímos outras vozes. Temos artistas de diversos estados brasileiros, nordestinos que trabalham desde a década de 1970 e nunca tiveram reconhecimento. Mesmo na Semana de 22, o que é dito é que aconteceu em São Paulo, no apogeu das grandes fazendas. Não aconteceu nem no Rio, que era a capital? E estamos felizes que muitos dos artistas na nossa exposição, como Ge Viana e o Maxwell estão despontando, tendo reconhecimento. Não estão ficando na periferia, e sim integrados.
São vários sons que queremos ouvir, e não como era no início, o europeísmo que era tido como a vertente. Em um país tão grande, multicultural e diverso, não podemos mais perder essa oportunidade da pluralidade.
“São vários sons que queremos ouvir, e não como era no início, o europeísmo que era tido como a vertente. Em um país tão grande, multicultural e diverso, não podemos mais perder essa oportunidade da pluralidade”
Dá pra dizer que esse recorte apresentado pelo CCBB é também potente na crítica política, que parte dessa utopia do Estado Novo, de Brasília, e desemboca nesse Brasil fragmentado, violento e precisando se reinventar novamente nos dias de hoje?
Sem dúvida nenhuma. Para a exposição, entrevistamos dez artistas participantes. São depoimentos muito específicos. Teremos um aplicativo da exposição, onde esses vídeos estarão disponíveis. Será importante para a pessoa que quiser se informar antes, ou mesmo acessar durante a exposição, ou ainda depois. Em um desses vídeos, o Jorge Bodanzky dá um depoimento sobre estar em Brasília logo após sua fundação. Ele foi das primeiras gerações de estudantes da UNB, tendo como professores Amélia Toledo, entre vários outros. Naquele momento da Ditadura já era muito difícil prosseguir ali, mas era muito importante agir e reagir. Os artistas da atualidade, como Ge Viana e Maxwell Alexandre, também falam dessa questão, de dar credibilidade à verdadeira maioria da nossa sociedade, a massa que não tem visibilidade ou voz.
Brasília também foi escolhida para protagonizar um núcleo da exposição chamada de Futuro, mas não devemos confundir com futurismo. Os Modernistas eram chamados de futuristas porque havia uma relação com o novo, o inusitado. Só que esse termo, depois, foi mal utilizado pela direita, principalmente pelos fascistas europeus. Então, não queremos falar sobre futuristas, mas sobre futuro, porque em Brasília se pleiteava o futuro.
E a cidade é, para mim, uma das maiores concretizações do Modernismo em território nacional. A obra mais antiga dessa exposição é uma pintura do Niemeyer, de 1964. Ele produziu apenas duas telas na vida dele, ambas no exílio, em Paris. Completamente desgostoso com a situação, ele demonstra um pouco da arquitetura dele quase como ruínas. Ele via a perspectiva que ele tinha se arruinando.