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Clarice nas telonas

A diretora Marcela Lordy tomou para si um desafio de quebrar a cabeça: adaptar o romance “Aprendizagem ou o livro dos prazeres”, de Clarice Lispector

por Humberto Maruchel Atualizado em 1 nov 2022, 14h22 - Publicado em 31 out 2022 10h44
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(Clube Lambada/Ilustração)

e na vida o silêncio parece preencher o vazio com a sensação de incômodo, não seria de estranhar se isso se repetisse no cinema. Há obras da literatura que parecem quase inadaptáveis para o audiovisual e o romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector, é um deles. Um dos motivos é a vastidão de momentos de silêncio vividos pela protagonista, Lóri, que vive um ciclo de reconhecimento de si mesma e também da própria solidão em um longuíssimo fluxo de pensamentos – tão típico da linguagem de Clarice.

Dizemos quase inadaptável, pois ele acaba de ganhar uma versão para as telonas, pelas mãos da diretora e roteirista Marcela Lordy, que viveu uma intensa relação de 10 anos com o livro até encontrar um formato que não reduzisse o conteúdo original. “Foi uma ingenuidade minha querer adaptá-lo”, confessa Marcela.

Mas, ao fim, parece ter conseguido. Marcela solucionou os vazios de Clarice, que começa o romance com uma vírgula e termina com dois pontos. O silêncio, entretanto, é parte do longa: passam 10 minutos até que ouçamos a voz da protagonista da trama, vivida brilhantemente pela atriz Simone Spoladore. E mais do que nunca, a obra parece fazer todo sentido para uma sociedade que conhece o isolamento e o desejo de amar. “É uma personagem que se isola por livre e espontânea vontade para se refazer e nós fomos obrigados a viver isso. De forma compulsória, tivemos que viver isso durante a pandemia.”

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(O Livro dos Prazeres/Reprodução)

Logo de início, a obra introduz uma metáfora que mostra a batalha de Lóri: ela é como uma sereia. Mas o que lhe falta não são pernas e, sim, o simples abrir-se para o mais banal e profundo da experiência humana. Lóri é uma professora primária, de família abastada, que vive no Rio de Janeiro, num amplo apartamento à beira-mar, herdado da mãe e recebe uma mesada do pai. Ela é a única mulher entre cinco filhos e busca a própria voz e independência. Nos seus intervalos, ela explora a liberdade sexual, vive encontros, mas tem relações superficiais e parece estar sempre mergulhada em introspecção. Seu estado é de isolamento, ela passa a perceber. “É um filme em que ela [a personagem] se reconstitui, onde ela se humaniza, passa a entender a importância do outro e se vê de igual para igual. É um filme sobre cura.”

“É uma personagem que se isola por livre e espontânea vontade para se refazer e nós fomos obrigados a viver isso. De forma compulsória, tivemos que viver isso durante a pandemia”

A cura dessa personagem começa ao amar um outro. Esse outro é encarnado na figura de Ulisses (vivido pelo argentino Javier Drolas), um professor de filosofia, que por vezes se confunde numa figura arrogante e machista, mas que também se torna mestre e amante de Lóri. Ele parece entender perfeitamente o labirinto em que a protagonista se encontra, como se já tivesse enfrentado também, mas que ao invés de tentar resgatá-la, prefere esperar pacientemente que ela encontre sua saída. “É sobre respeito, não só sobre o amor, mas sobre amor-próprio e dignidade. E para isso precisamos desses espelho que é o outro, mas sem criar uma relação de dominação”, afirma a diretora.

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A adaptação do romance, escrito em 1969, se passa no contexto atual, no Rio de Janeiro, em 2018. Há, inclusive, menções à política brasileira daquele momento, com a eleição de Jair Bolsonaro para presidência. No entanto, ela não cita nomes.

Embora, a obra seja carregada de mergulhos profundos nas incertezas e angústias do descobrir se só no mundo, Clarice decidiu ser benevolente com sua Lóri. Longe de um fim trágico como nos outros romances da autora, esse termina com a protagonista atravessando os próprios embaraços e encontrando tranquilidade e prazer nos braços de Ulisses.

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(Marcela Lordy/Arquivo)

Marcela conta que O livro dos prazeres dialoga com sua própria experiência, tanto ao nível afetivo, quanto profissional. Embora leia Clarice desde a infância, o encontro com essa obra ocorreu num momento determinante de sua vida: havia terminado uma relação de nove anos. Estava, portanto, redescobrindo sua solitude e vivendo um período de novos aprendizados. Desde aprender a morar sozinha até a descobrir maneiras saudáveis de se relacionar quando os relacionamentos são cada vez mais descartáveis. “Nossa geração perdeu um pouco essa capacidade de amar. Isso precisa ser resgatado.”

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A solidão, ela entendeu, não precisava ser algo ruim, mas poderia trazer uma maior governança sobre si mesma. “A Lóri tem uma melancolia de ser uma mulher livre e independente. Ela se autorrealiza, se autoafirma. Ela termina inteira, mas é um processo para encontrar a própria voz que custa. E eu também vivi isso na pele.”

“Nossa geração perdeu um pouco essa capacidade de amar. Isso precisa ser resgatado”

Durante toda carreira na publicidade e no audiovisual, Marcela trabalhou sozinha ao lado de homens. “Eu estava louca para falar minhas histórias e, muitas vezes, escutei de diretores arrogantes que eu deveria usar as minhas ideias quando fizesse os meus filmes. Mas, claro, que usavam as minhas ideias como se fossem deles. Não aguentavam ter alguém mais experiente e com mais ideias do que eles.”

Parte do encanto que Marcela tem por Clarice vem da centralidade da mulher nas narrativas. Na realização do filme, não foi apenas na narrativa que a mulher ocupou o lugar de protagonismo, mas também nos bastidores da produção, com mulheres à frente do roteiro e da produção – e ,claro, do elenco. Havia motivos de sobra para isso. Um em especial era retratar de forma cuidadosa e verossímil a sexualidade dessa mulher.

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(O Livro dos Prazeres/Reprodução)

Aqui não se trata de uma abordagem que objetifica a personagem e a atriz, mas um olhar honesto para alguém que explora a sexualidade como se estivesse escavando a própria identidade. O mesmo ocorre com as cenas de nudez, cuidadosamente retratadas como parte da vida cotidiana, dos momentos de descanso e de solidão, e não de um corpo que apenas se desnuda para o sexo. E isso envolveu um cuidado desde a preparação para as cenas com os atores, até a posição da câmera de modo a deixar o elenco o mais confortável possível.

Para essa preparação, Marcela explica que ela tenta se colocar no lugar dos atores. E em uma obra em que o desejo e emancipação feminina são centrais, a relação de confiança entre ela e Simone eram fundamentais para que a obra se concretizasse de maneira fiel e sem objetificar qualquer uma das partes. “Na literatura estamos muito acostumados a ver a sexualidade feminina através do olhar masculino. Você começa a ter outra perspectiva com Sylvia Plath, com Virginia Woolf e com Clarice. Elas foram precursoras. E eu brinco que o filme termina com dois pontos porque é para seguirmos criando histórias, onde a mulher esteja no centro e não sirva de escada em grandes dramas construídos, o tempo todo, por homens.”

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(O Livro dos Prazeres/Reprodução)

Para alcançar a adaptação, foram feitas rodas de conversas, trocas de experiências entre as mulheres criadoras do filme e investigar as próprias dores e alegrias. “Com o tempo, ficou claro para mim que para fazer isso acontecer é necessário trazer nossas histórias pessoais, da roteirista, e da própria Simone”, conta a diretora. “Uma das sacadas, que é um método do roteiro, é fazer com que essa Clarice de 50 anos atrás, as angústias que ela sente, que pouco mudaram 50 anos depois, tem a ver conosco, com a nossa geração. Continuamos numa sociedade patriarcal.”

Aprendizagem ou o livro dos prazeres, finalmente entra em cartaz nos cinemas após um hiato de dois anos da pandemia.

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