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Memórias do corpo na quarentena

Projeto no Instagram discute acolhimento, gordofobia, autoimagem e autoestima durante o isolamento e deve virar documentário em 2021

por Alexandre Makhlouf 18 dez 2020 00h54
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(Clube Lambada/Ilustração)

única forma de começar esse texto é com um aviso: não se trata de uma reportagem 100% jornalística, imparcial e impessoal. Falo isso porque o tema “corpo”, para mim, é permeado por uma série de pensamentos, estigmas, traumas, dores e descobertas. Digo “para mim” exatamente para ressaltar que só posso falar do lugar onde estou e de tudo que já vivi – sendo um homem gay, agora magro (mas com uma infância e uma adolescência bem acima do peso), branco e privilegiado financeiramente. Mas sei que esse tema atravessa todos nós de formas diferentes. E quase sempre de maneira violenta.

Feito o aviso, posso finalmente começar a contar a história de Gabriela Altaf, psicóloga de formação, roteirista e documentarista por vocação, transição de carreira que aconteceu recentemente – ou melhor, está acontecendo – quando a quarentena forçou que ela se reinventasse. Assim como eu, Gabriela também lutou contra o peso e os olhares gordofóbicos da sociedade desde muito nova. Para ela, tenho certeza que a barra foi mais pesada do que para mim, que sou homem. Não sei se é sua formação em psicologia ou um jeito mais carinhoso de ver o mundo, mas nosso papo, que aconteceu numa sexta-feira à tarde, em uma videochamada, me deixou confortável para que eu escutasse sua história e também me sentisse confortável para compartilhar a minha.


“Fui uma adolescente nos anos 90, não tinha as redes sociais ao meu lado, esse movimento body positive. Não existia falar sobre corpos, só existia um corpo possível. O modelo eram as paquitas, magras e loiras, e isso, para mim, sempre foi algo inatingível”

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“Fui gorda dos 13 aos 21 anos. Eu era super magra e, na adolescência, comecei a engordar. Tive uma adolescência horrível, não peguei uma alma e sofri todos os bullyings possíveis”, conta, rindo, Gabriela. “Eu jogava vôlei, era super atlética e ouvi o ginásio inteiro gritar ‘baleia, baleia, baleia’. Cheguei a ir em lojas comprar roupa e ouvir ‘sai daqui, sua gorda, a gente não tem seu número. Como você acha que você poderia se vestir aqui?’. Fui uma adolescente nos anos 90, não tinha as redes sociais ao meu lado, esse movimento body positive. Não existia falar sobre corpos, só existia um corpo possível. O modelo eram as paquitas, magras e loiras, e isso, para mim, sempre foi algo inatingível. Várias questões de autoestima surgiram por conta disso. A adolescência é quando você está se afirmando no mundo e, para mim, foi uma desafirmação total. A cereja do bolo foi quando um crush falou pra mim “sua canela é grossa como a de uma escrava lerda.” Racismo, machismo, gordofobia – tudo junto em uma mesma frase. 

A luta de Gabriela contra o próprio peso mudou quando ela entrou na casa dos 20, ao descobrir um tratamento que envolvia programação neurolinguística e foi indicado por uma prima de Juiz de Fora, Minas Gerais, que também travava as mesmas batalhas com a autoimagem. Durante cinco anos, Gabriela acordava às 4h da manhã, uma vez por o mês, e partia do Rio para a cidade mineira apenas para fazer o tratamento. Resultado: emagreceu mais de 30 quilos sem fazer dieta, apenas cuidando da cabeça, e mantém o peso até hoje, mais de dez anos depois. As marcas de todas as violências, todos os absurdos que ela ouviu durante os oito anos em que não se encaixou no padrão de beleza, ela também mantém até hoje.

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(Polina Tankilevitch / Pexels/Fotografia)
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Nasce um projeto

Assim como para a maioria de nós, o período de quarentena também foi um período de montanha-russa para Gabriela. Afastada do trabalho na Rede Globo, onde atuava como roteirista, no dia 16 de março, os dias em isolamento foram pautados por ansiedade, preocupação com os pais – pertencentes ao grupo de risco – e uma vontade de por para fora tudo que ela estava sentindo. Dois meses mais tarde, recebeu a notícia de que seria desligada do projeto que estava participando na emissora e tomou uma decisão de embarcar para Juiz de Fora e ficar isolada lá. Isso porque ela e os pais são residentes de Copacabana, o bairro onde a taxa de mortalidade por covid-19 era a mais alta do Rio de Janeiro em maio de 2019. 

A chegada em Minas Gerais veio acompanhada de uma avalanche de emoções. Ela e a família se hospedaram em um apartamento de 1968 que pertencia à avó, onde o que não faltava eram memórias. “Na primeira noite, fui tomar banho e pensei: ‘poxa, eu amo trabalhar, não consigo ficar sem, quero inventar algo pra fazer nessa quarentena’. Ali, tomando banho e vendo a pintura do banheiro, comecei a questionar quais seriam os efeitos da pandemia no corpo. Sou psicóloga, sabia do aumento do TOC, mas imaginei que tivesse vários outros efeitos além do pânico geral com a doença. Aquilo que a fala não dá conta sai pelo corpo“, explica Gabriela. A ideia virou post no Facebook e no Instagram, que ela achava que seriam respondidos apenas por amigos. A realidade foi outra: milhares de compartilhamentos e relatos começaram a chegar em seu inbox, o que a motivou a criar a página Memórias do Corpo na Quarentena, em que compartilha algumas dessas histórias, de forma anônima ou não, dependendo do pedido do remetente. 


“Comecei a questionar quais seriam os efeitos da pandemia no corpo. Sou psicóloga, sabia do aumento do TOC, mas imaginei que tivesse vários outros efeitos além do pânico geral com a doença. Aquilo que a fala não dá conta sai pelo corpo”

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(Gabriela Altaf/Fotografia)

“A coisa foi crescendo e a vontade de fazer um documentário veio junto. Tem muitas coisas sendo registradas nesse período de isolamento, mas me interessava esse recorte de entender o que o corpo está dizendo na quarentena. Já estamos produzindo esse doc, todo feito com imagens de celular. Entrevistei 13 pessoas, de cabeleireira a médica intensivista que entuba pessoas com covid, motoqueiro, professor, uma cam girl… Durante esse processo, a Brigitte Filmes, uma produtora que nasceu também nesse período de pandemia e buscava projetos que dessem conta de documentar esse momento, se interessou pelo Memórias, tornando-se produtora do filme”, conta Gabriela, pontuando que, por conta da extensão da quarentena, da falta de um plano de vacinação e do aumento de casos e de mortes por covid-19, algumas entrevistas estão sendo refeitas, para contemplar de forma mais abrangente o tema. Ainda sem data oficial de lançamento, a ideia é lançar o documentário do projeto até o fim de 2021.

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Jornada do corpo

Falar sobre autoimagem e nossa relação com o corpo não é uma linha reta. É um processo, cheio de curvas e de altos e baixos. Tem dias em que a gente acorda se odiando, vendo defeito em cada dobrinhas, cada espinha que nasce no rosto, cada pelo fora do lugar. E também tem dias em que a gente acorda no mood autoestima delirante, se amando e gostando do que vê. Pelo menos, para mim, é assim – e volto a falar isso, cara leitora e caro leitor, porque não consigo falar de corpo em um texto sem “levar para o pessoal”. 

Quando conheci o Memórias do Corpo na Quarentena, indicação de um amigo que me disse “você tem que conhecer o trabalho da Gabi”, não esperava que os relatos que lá encontrei fossem bater tão forte. Um dos que mais me marcou foi o que uma menina relata ter ouvido da mãe: “Meu amor por você é inversamente proporcional ao seu peso. Se você está obesa, eu não te amo tanto assim”. Nunca ouvi coisa parecida dos meus pais, que sempre me acolheram, acumulando mais um privilégio dentro de tantos que eu tenho, mas isso doeu. Porque eu já disse isso mim mesmo mentalmente ao me olhar no espelho. E lembrar disso doeu de novo. 

Assim como eu, Gabriela, autora do projeto, é uma mulher branca, hoje magra e privilegiada. E a consciência dela sobre isso é uma das coisas que reforça a construção de uma atmosfera de acolhimento no perfil do Memórias, em que os próprios seguidores criaram uma rede de apoio, começaram trocas que extrapolam o Instagram e comentam, sempre que algum novo relato é postado, palavras de carinho para lembrar que o autor do relato, tenha ele se identificado ou não, não está sozinho. “A primeira coisa é reconhecer como marcadores de raça, de gênero e/ou de classe social vão produzindo privilégios ou violências. Isso está sempre em consideração – na vida das pessoas e dentro do Memórias. Outra coisa é que, na psicologia, trabalho a dimensão do indivíduo. A gente fala em acolher as vivências sem nenhuma espécie de julgamento, entendendo que o sofrimento existe também dentro da vida de quem é privilegiado. A gente percebe as dores e as violências dentro do nosso contexto. A página é um espaço onde todo mundo vai falar da sua vivência com a possibilidade de ser acolhido, para não cairmos numa hierarquização de sofrimentos, apesar de saber que, a partir de determinado marcador, você vai sofrer mais ou menos violências estruturais”, pontua Gabriela. 

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“Recebemos um relato de um homem negro, que não disse seu nome, com uma frase que me impactou muito: ‘aprendi na quarentena que os corpos negros são tratados sem cerimônia’. Discutimos demais a questão dos marcadores de raça nessa quarentena, o movimento #vidasnegrasimportam ganhou muito força e ainda bem que estamos discutindo isso. Considerar as violências estruturais e ao mesmo tempo poder acolher todo tipo de violência: essa é minha motivação no projeto”, continua.

E se a quarentena proporcionou ansiedade, depressão e várias outras dificuldades, algumas pessoas encontraram algum tipo de alento no isolamento quando o assunto são seus corpos. Veja, aqui não estamos romantizando o tempo estendido que estamos presos em nossas próprias casas, a falta de um Estado que se preocupa com as pessoas ou o discurso voluntarista de “vai passar, vamos enxergar o lado bom”. Mais de 180 mil pessoas já morreram e a pandemia no Brasil é uma grande tragédia. Mas o Memórias traz à tona também uma questão que, com ou sem pandemia, precisa ser discutida: a maioria de nós não olha com carinho para o próprio corpo. 

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(Polina Tankilevitch / Pexels/Fotografia)

“Recebi relatos de vivências muito emocionantes. Da mulher que foi gorda a vida inteira e percebeu que adorava a quarentena, porque se protegia dos olhares de gordofobia, e passou a dançar todos os dias na frente do espelho. Da menina negra que, também protegida dos olhares racistas, começa a transição capilar sozinha em casa e assume os cachos. Da professora universitária super tímida, que sempre tira os óculos quando entra na sala de aula porque, assim, vê os alunos desfocados e consegue falar melhor, driblando a timidez no isolamento – ela descobriu um programa de computador e começou a cantar os boleros que o pai dela cantava para ela na infância, e assim descobriu a própria voz” conta Gabriela, sorrindo.


“Recebi relatos de vivências muito emocionantes. Da mulher que foi gorda a vida inteira e percebeu que adorava a quarentena, porque se protegia dos olhares de gordofobia. Da menina negra que, também protegida dos olhares racistas, começa a transição capilar sozinha em casa e assume os cachos”

Precisamos ficar isolados para olhar com mais carinho para o espelho, descobrir paixões e entender o isolamento como uma oportunidade para encarar coisas que não sabíamos sobre nós mesmos.  Comigo, não foi diferente. Foi durante a pandemia que eu – um homem magro, branco, de classe média-alta e cheio de noias na cabeça sobre o meu corpo, que sempre se achou gordo e sofreu bullying no ensino fundamental por estar acima do peso e ser afeminado – consegui pela primeira vez olhar no espelho, ver minha barriga dobrada e me achar bonito. E, chegando ao fim desse texto, entendi que é também por isso que a história da Gabriela e o Memórias do Corpo na Quarentena prestam um serviço importante para quem está isolado e se sentindo sozinho com suas questões corporais. Fica o lembrete: enquanto o projeto não vira um documentário, é possível acompanhar os próximos passos no Instagram e, se tiver um relato e se sentir confortável para compartilhá-lo, conversar com a Gabi por inbox para achar o melhor formato de contar sua história. De perto ou de longe, isolado ou aglomerado, a nossa única companhia permanente é a gente mesmo.

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