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Demissexualidade: tudo sobre o espectro cinza

Em um sociedade tão sexual, assexualidade e demissexualidade – o tesão que precisa de conexão – precisam ser levadas mais a sério

por Guilherme Dias Atualizado em 6 out 2021, 11h54 - Publicado em 5 Maio 2021 23h32
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(arte/Redação)

“Quando comecei a me entender como demissexual, já tinha entrado em muitas situações que não curti. Pensava que havia algo de errado, porque eu não conseguia sentir atração sexual logo no primeiro encontro. Até achava a pessoa bonita, interessante, mas na hora de transar não conseguia sentir nenhum tipo de atração sexual. Acho que foi em 2018, um ano depois que havia terminado com meu ex, que ouvi sobre assexualidade, numa série da Netflix chamada Bojack Horseman. Todd, um dos personagens principais, se descobre assexual romântico e isso me deu um clique, por que eu me sentia muito conectado ao que ele sentia na série. Por mais que fosse um desenho, o jeito que o assunto é tratado na série, de forma tão leve e ainda informativa, me fez pesquisar mais a fundo sobre a assexualidade e me achar naquele meio do espectro cinza.”

“Foi um alívio perceber que havia pessoas como eu. Geralmente, elevamos o sexo como o ápice da liberdade. Nos sentimos progressistas, mas esquecemos da complexidade humana e de como isso se estende também ao sexo. Hoje, já tento deixar claro minha sexualidade e me relaciono somente quando me sinto atraído. E me sinto muito mais confortável com a sexualidade alheia”

O depoimento aqui em cima, que explica o que é assexualidade romântica melhor do que qualquer artigo, é de Gabriel Dionizio, uma das pessoas que se identificaram como demissexuais recentemente. Os demissexuais estão dentro do espectro da assexualidade. Diferentes da grande maioria, essas pessoas precisam de algo a mais antes de ter algum contato sexual – e isso não acontece porque são devotos ou beatos.

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“Foi um alívio perceber que havia pessoas como eu. Geralmente, elevamos o sexo como o ápice da liberdade, mas esquecemos da complexidade humana e de como isso se estende também ao sexo. Hoje, já tento deixar claro minha sexualidade e me relaciono somente quando me sinto atraído”

Gabriel Dionizio

Antes de explicar o que é esse “algo a mais”, é importante lembrar que a demissexualidade não está envolvida com a identidade de gênero – ser homem ou mulher – e muito menos com a identidade sexual – ser gay, lésbica ou bi, por exemplo. O espectro da demissexualidade é formado por pessoas que se sentem atraídas por indivíduos com quem têm algum envolvimento intelectual e/ou afetivo inicialmente. E viver nos tempos atuais, em que a sexualidade é colocada em jogo tão casualmente, é claramente complexo para eles. Complicou para entender? Calma, vamos explicar um pouco de todo esse universo. 

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(Rodnae/Pexels)

Os espectros da assexualidade

Sabia que quem tem sexualidade regular também tem nome? Sim, esses são os alossexuais, pessoas que geralmente sentem atração sexual facilmente por qualquer indivíduo que o interesse, com o mínimo de estímulo. Do outro lado dessa linha temos os assexuais, que não sentem atração nenhuma sob nenhum estímulo. E, no meio disso, temos os demissexuais, que ocasionalmente sentem atração sexual depois de uma aproximação intelectual e/ou afetiva. Com isso, os demissexuais são “meio sexuais”, portanto, existir ou não relação sexual vai depender muito do vínculo estabelecido por eles. 

Cada tipo de vínculo acaba variando de demi para demi, mas, em um âmbito geral, os vínculos relacionados a demissexualidade são românticos. É possível sentir atração sexual intelectualmente também. Mas, em resumo, o desejo sexual existe, a libido também – só dependem de uma ligação relacionada por aquele indivíduo. E a manifestação desse desejo – o toque físico, o carinho – também podem variar de demi para demi. Assim como a sexualidade no geral não é apenas preto e branco, mas, sim, um espectro, a demissexualidade também. E cada indivíduo vai entender o que funciona melhor para ele.

Se é algo tão pessoal e variável, por que a demissexualidade incomoda – além de intrigar – tanto as pessoas? A resposta é simples. Como os alossexuais, muitas das vezes, projetam muito o desejo sexual em qualquer pessoa que sentem atração e são maioria, existe essa dificuldade comum de entenderem outro posicionamento. Batemos um papo com o terapeuta sexual André Almeida para esclarecer algumas dúvidas comuns em relação ao tema. Aos fatos:

Como a sexologia e os terapeutas sexuais enxergam a assexualidade?
A assexualidade é uma orientação sexual normal dentro do espectro gigantesco do que é sexualidade. O indivíduo que se identifica como assexual é completamente normal e precisa ser auxiliado a lidar com as pressões sociais, familiares, autoconhecimento e outros fatores externos que podem gerar sofrimento, como diversos preconceitos por não querer se relacionar sexualmente. 

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Falando nisso, podemos considerar a reprodução um instinto humano?
Segundo estudos da área biológica e evolucionista, sim. Trazemos esse traço comportamental selecionado e, com ele, muitas adaptações para seu favorecimento. A sexualidade é uma dessas adaptações. Com essa especialização que é a sexualidade, desenvolveram-se diversas formas de manifestá-la e de orientá-la que acabaram favorecendo comportamentos focados em outros espectros que não apenas na reprodução.

Por que a demissexualidade, assim como a assexualidade, é frequentemente patologizada?
Patologia é sinônimo de sofrimento gerado para si e/ou para outros. Se não gera sofrimento para o indivíduo, não é patologia. Partindo desse pressuposto, é importante entender que há determinadas ideias disseminadas no meio médico de “normalidade” que foram atribuídas à sexualidade, principalmente em meados do século 19 com as produções e estudos do psiquiatra Krafft-Ebing, que determinam critérios para um comportamento sexual saudável. Dentre eles, a atração sexual, que é o cerne da compreensão a respeito da demissexualidade. Dentro do guarda-chuva da assexualidade, a demissexualidade é a atração sexual condicionada ao envolvimento afetivo e/ou intelectual e é completamente saudável se não gera sofrimento direto para o indivíduo. É diferente do transtorno do desejo sexual hipoativo justamente por esse fator (sofrimento), aí sim considerado uma patologia.

“Dentro do guarda-chuva da assexualidade, a demissexualidade é a atração sexual condicionada ao envolvimento afetivo e/ou intelectual e é completamente saudável se não gera sofrimento direto para o indivíduo”

André Almeida, terapeuta sexual
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(Rodnae/Pexels)

Não sentir tesão não é doença

A patologização da demissexualidade ocorre, muitas vezes, de forma abusiva, quando outros afirmam, por exemplo, que as pessoas demissexuais não sentem atração por qualquer pessoa por já terem sofrido algum trauma ou até mesmo abuso na infância – o que, além de não ter correlação científica nenhuma, é extremamente ofensivo.

Ainda bem que, atualmente, a internet e a abertura de mais canais para falar sobre sexualidades que vão além do considerado “tradicional” possibilitam que mais pessoas se sintam representadas quando enxergam outras que sentem o mesmo. Rita von Hunty, uma questionadora do senso comum e pesquisadora dos comportamentos humanos, é uma das vozes que usa a internet – o YouTube, mais especificamente – para desmistificar conceitos e explicar novos termos (e como eles se manifestam na sociedade). Conversamos sobre assexualidade e demissexualidade com ela – e o resultado você confere aqui.

Qual é a origem da palavra demissexualidade?
É um termo mais ou menos novo, composto por duas partículas: um prefixo, “demi” que significa “meio”; e sexualidade. Ou seja, pessoas demisssexuais são pessoas “meio sexuais”. A sexualidade é um jeito de estar inserido no campo da sexualidade, que fica entre pessoas assexuais e pessoas alossexuais. Ou seja, pessoas que não têm interesse sexual e pessoas que têm interesse sexual.

A demissexualidade fica dentro do “guarda-chuva” dos assexuais, mas quais as características os diferenciam?
A principal diferença é a presença de um interesse romântico e sexual por uma via de interesse. Pessoas demissexuais desenvolvem e performam sua sexualidade e são condicionadas por um disparador, que pode ser uma admiração intelectual, ligação afetiva ou uma proximidade. Mas algo dispara essa possibilidade de performance sexual. No caso dos assexuais, pode até existir algum tipo de relação romântico-afetiva, mas não haverá atração sexual.

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A constância da performance sexual é imposta de alguma forma pela sociedade?
Isso é uma novidade na história da humanidade. E aí a gente precisa responder essa pergunta e estar atento a qual possível sociedade poderia impor essa constância. De um lado, temos a Ministra Damares cogitando uma campanha de abstinência sexual; de outro, existem registros de textos de uma escola do pensamento cristão do século 4 que se debruçam sobre as práticas sexuais para definir as quais são agradáveis a Deus ou quais não são. A gente tá há um tempo lidando com isso. Talvez o mais importante para responder essa pergunta é que a constância da performance sexual é muito recente. Até pouquíssimo tempo no relógio da história, a maioria da sociedade ocidental via o sexo como uma forma de perversão, como uma prática unicamente destinada à reprodução. Então, a constância sexual é algo muito recente na história da humanidade.

Pessoas demissexuais são necessariamente arromânticos?
Não, mas talvez elas possam ser. Via de regra, a demissexualidade está sempre de alguma forma atrelada a um traço de romantismo. Mas muitos demissexuais só conseguem se sentir à vontade por performar a sexualidade mediante intimidade, proximidade, admiração e criação de laços afetivos. 

E, para encerrarmos, queria que você explicasse um erro bastante comum de nomenclatura: qual a diferença entre assexuado e assexual?
A diferença entre assexuado e assexual é que assexuado, por exemplo, é planta. É um termo que a gente usa para falar sobre plantas, que não têm sexo, não que não performam sexo. Pessoas são assexuais como são bissexuais, homossexuais, heterossexuais. Toda vez que a gente muda o termo para falar só de um grupo, há um problema. É semelhante a quem fala heterossexualidade, mas escolhe falar homossexualismo. Esse “ismo” em paridade com “ade” é um sufixo que designa uma doença. Toda vez que há uma troca de termo para designar um grupo específico, a gente precisa pensar em qual projeto de poder que viabiliza essa troca de palavra – ou que essa troca de palavra se viabiliza dentro de um projeto de poder.

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