Imagine – se possível – uma mulher coberta de uma roupa sem fim, que é, por sua vez, tecida de tudo o que diz o jornal de moda, pois essa roupa sem fim é dada por meio de um texto sem fim. Essa roupa total, devemos organizá-la, isto é, recortar, nela, unidades significantes, para podermos compará-las entre si e reconstituir assim a significação geral da moda.” O excerto faz parte do livro Sistema da moda, do sociólogo francês Roland Barthes, e é parte do material de pesquisa da exposição coletiva “Disfuncional”, em cartaz na Galeria Jaqueline Martins, na Vila Buarque, em São Paulo. Com curadoria da galeria em parceria com Marina Dalgalarrondo, artista visual e diretora criativa da marca ÃO, a mostra é tudo aquilo que você não espera de uma exposição sobre moda – no melhor sentido que essa frase poderia ter.
Isso porque exposição de moda, geralmente, têm roupas apresentadas em manequins ou vestidas em suportes feitos para lembrarem o corpo humano. São, no geral, roupas históricas, que foram criadas e usadas por pessoas de verdade em algum momento do passado – ou, então, que terão essa mesma utilidade no futuro. Em “Disfuncional”, como o próprio título já dá o spoiler, quase nada remete a uma roupa usável. “Quando a Jaqueline me convidou para desenvolver um projeto que propusesse essa inter relação moda-arte, propus, de primeira, que usássemos a palavra vestuário, porque moda traz todo um escopo comercial, de tendência e de universo da moda, relacionado ao fashion, ao desfile. Vestuário abarca outras questões: do cotidiano, do político, de uniforme, que é uma coisa mais ampla para ser pesquisada”, conta Marina, que acompanhou a equipe de Elástica em uma visita guiada na galeria.
“Propus que usássemos a palavra vestuário [para falar da exposição], porque moda traz todo um escopo comercial, de tendência relacionado ao fashion. Vestuário abarca outras questões: do cotidiano, do político, de uniforme, que é uma coisa mais ampla para ser pesquisada”
Marina Dalgalarrondo
Para cumprir o propósito de mostrar a relação entre arte e moda, um time de artistas que já desenvolviam trabalhos nessa temática teve trabalhos comissionados para a exibição, que ficam expostos na galeria até o fim de novembro. Ana Mazzei e Helena Pimenta, André Rachadel, Arthur Chaves, Daniel Albuquerque, Luiza Crosman, Maurício Ianês, Stefan-Manuel Eggenweber, além da própria Marina – que assina talvez o trabalho preferido deste que aqui escreve – se debruçaram sobre os muitos significados que permeiam o mundo das roupas e do vestir para criar novas narrativas, reinterpretar signos, resgatar ancestralidade e dialogar com ela usando a tecnologia.
Tudo isso está presente em “Metalbone bodies”, conjunto de obras independentes assinado por Marina. Um primeiro olhar aponta para corsets feitos de tecidos distintos, com logotipos grandes que lembram as gigantes do streetwear, vestidos em aparelhos de ginástica em tons de rosa bebê. Uma análise mais atenta, no entanto, revela outros detalhes. “Antigamente, os corsets eram chamados de whalebone bodies porque eram usadas barbatanas de baleia para estruturar essas peças – elas eram flexíveis o suficiente para permitir que as mulheres se sentassem e se movimentassem, mas também firmes para limitar seus corpos. Nessa obra, trago essa relação entre comportamento, o olhar sobre o corpo em geral, e de alguma maneira a transformação de silhueta. E como os equipamentos de ginástica estão ligados não só ao nosso potencial para transformar o próprio corpo, mas também a uma automação das coisas”, explica Marina.
“Aqui nessa sala não existem as fotos que usamos para divulgar. Precisávamos criar essa escala do corpo, de tamanho, mexer na relação simbólica, por isso optamos por essa estratégia”
Marina Dalgalarrondo
Os aparelhos de academia vestidos com as peças, no entanto, não podem ser operados. Assim como o nome da exposição que fazem parte, são disfuncionais, criados especificamente para estarem ali e serem inúteis ao seu propósito primeiro. “Se alguém um dia quiser usá-los, vai ter que descobrir outra forma de fazer isso”, completa Marina. Raciocínio semelhante serve para compreender as obras ali: as interpretações possíveis não se limitam à explicação da autora. As narrativas em torno dela também podem partir do observador e dos sentimentos que ali forem despertados. Pensou em quanto desenvolvemos um mercado de cirurgias plásticas e conteúdos fitness para que as mulheres tenham o corpo dos corsets sem usar nada? Cabe também – e muito bem, por sinal – ao diálogo que Marina queria criar.
Ainda no mote disfuncional, vale retomar que nada nessa exposição lembra uma exposição de moda. As fotos que você vê nessa matéria, inclusive, materializam o que algumas das obras de arte seriam caso fossem usadas como roupas. Não espere, então, encontrar Laura Dias, criadora do grupo musical Teto Preto e figura célebre do underground paulistano, vestindo as camisetas políticas e críticas criadas na vídeo-instalação de Maurício Ianês. “Aqui nessa sala não existem as fotos que usamos para divulgar. Precisávamos criar essa escala do corpo, de tamanho, mexer na relação simbólica, por isso optamos por essa estratégia”, revela a curadora.