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“Sem Lélia, não tinha um Emicida. Sem Abdias, não tinha um Emicida”

Conversamos com Emicida, que está lançando mundialmente o documentário “AmarElo - É Tudo Pra Ontem”, pela Netflix

por Roger Cipó Atualizado em 16 dez 2020, 18h48 - Publicado em 8 dez 2020 02h01
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(Clube Lambada/Ilustração)

história precisa saber que hoje, 08 de dezembro de 2020, uma terça-feira de Ogun, o mundo ganha uma aula profunda, sofisticada e generosa de um dos maiores professores que as ruas já gerou. Leandro Roque de Oliveira, que se batizou nas batalhas como o temido Emicida, acaba de lançar, pela Netflix, para mais de 190 países o filme AmarElo – É Tudo Pra Ontem, um trabalho que coroa o projeto iniciado com o álbum AmarElo, que além de ser um dos mais ouvidos nos últimos dois anos, foi vencedor do Grammy Latino de melhor disco de rock em língua portuguesa, e melhor canção brasileira, para “AmarElo”, que tem sample de Belchior e feat. com outras duas potências do nosso tempo, Majur e Pablo Vittar.

“O documentário joga luz numa parte da história do Brasil que foi invisibilizada e que nem os próprios brasileiros tiveram acesso”, define Emicida.

Já tem alguns dias que assisti o filme para, em seguida, entrevistar Emicida. Em menos de dez minutos, lá estava eu chorando e pensando: “Não é possível que o Emicida fez isso, mais uma vez”. Digo isso porque, além de fã, sou um estudioso da obra desse professor e grande intelectual da nossa geração. É incrível como o “devorador de mc’s”, a cada dia que passa, se mostra mais como professor afetuoso, usando de toda a experiência que as ruas, os palcos, a favela, conflitos e livros te deram para educar a sociedade, rumo a um mundo mais humanizado para pessoas negras. A forma com que ele nos toca é um constante “Levanta e Anda” (quem é fã vai entender).

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Ao olhar sua trajetória expressada nas linhas das canções, nos textos e posicionamento, vejo um artista que entendeu a importância de colocar o melhor de si à disposição de algo muito maior do que ele mesmo. Emicida é grande não só pela qualidade de todo o seu trabalho, mas por ter consciência de que é resultado da luta incansável daqueles e daquelas que chegaram antes. Por isso, segundo ele, esse filme existe para que “as pessoas entendam que um Emicida não surge do nada. Um Emicida é fruto de uma série de movimentações que aconteceram na cultura, na política e na intelectualidade brasileira; é fruto de gente que expandiu o entender desse país a respeito dele mesmo”. E, assim, se faz responsável por conectar cada vez mais pessoas com a valorização dessas histórias, e se coloca como parte da busca por resoluções dos problemas que atravessam nosso povo. Esse é um dos sentimentos mais latentes que tenho, após assistir AmarElo e bater um papo com ele.

“As pessoas entendam que um Emicida não surge do nada. Um Emicida é fruto de uma série de movimentações que aconteceram na cultura, na política e na intelectualidade brasileira; é fruto de gente que expandiu o entender desse país a respeito dele mesmo”

Emicida

Não darei spoiler, só peço (isso, eu estou pedindo mesmo): assista AmarElo. E se tiver mais pessoas, na sua casa, convide-as. Faça umas comidinhas para beliscar, separe um doce, um suco e água, muita água para não se desidratar, porque você vai chorar. Não esqueça do caderninho e da caneta, porque é aula profunda. Isso é uma das coisas que mais me admira no Emicida. Considero mágica a forma com que ele entrega reflexões teóricas e, por vezes, complexas, em uma didática encantadora. O bom educador é aquele que encanta e que mostra como aquilo faz sentido, nutre a alma e torna o caminho melhor. Em nossa conversa, que durou meia hora, ele citou dezenas de intelectuais negros, refletiu suas discussões, articulou pontos históricos marcantes, apontou no cotidiano como essas teorias incidem em nossas vidas, ou como elas podem ser caminhos para transformação.

Eu não sei vocês, mas penso que todas as pessoas deveriam ter um professor desse por perto.

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(Jef Delgado/Divulgação)

No filme, narrado pelo próprio cantor, a gente passeia por encontros, elementos e momentos importantes da presença negra e de nossas contribuições para a história desse país. “A gente reconhece pouco as pessoas incríveis que produzimos”, ele diz. Na tela, é possível conhecer a contribuição marcante de artistas pretos na clássica Semana de Arte de 22, o semear do rap pelo samba, a contribuição de sambistas para a edificação do movimento negro brasileiro, e o resgate urgente pelo sentido e humanidade negado às pessoas pretas pela ação da escravização e colonização. Tudo construído entre imagens do já histórico show de lançamento do disco AmarElo no Theatro Municipal de São Paulo, entrevistas, ilustrações e um profundo resgate de imagens e discussões marcantes da intelectualidade brasileira.

“Minha mulher viu esse filme e falou: ‘sabe o que dá a impressão? Que a gente está andando dentro da sua cabeça’”, brinca Emicida ao comentar sobre o processo da obra, dirigida por Fred Ouro Preto, grande parceiro de Emicida nas suas geniais obras audiovisuais, entre elas o clipe de “Crisântemo”, um dos meus preferidos, que me veio à memória com a cena potente de um garoto preto subindo as escadarias do Municipal. Até perguntei se ele reconhecia um diálogo dessas duas obras, porque a impressão que tenho, com essa cena e lembrando de Crisântemo, é que, nessa linha do tempo, há um caminhar na busca pela dignidade humana retirada das pessoas negras, na estrutura de opressão racial. Para quem não conhece, esse clipe que me refiro se passa em uma ocupação no centro de São Paulo, ali pertinho do Municipal e encena a lembrança da notícia da morte de seu pai.

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Ele me responde: “Mano, tem um poeta turco chamado Nazim Hikmet, autor de um poema lindão que se chama ‘Ao partir’. Nesse poema, ele fala que ele encontrou água, mas não conseguiu dividir com as pessoas que tinham sede, tá ligado? Eu sinto, principalmente depois da viagem ao continente africano, que encontrei água, e que ainda tenho tempo para dividir essa água com todas as pessoas que estão com sede. E aí, o que procuro fazer é dividir essa água o máximo de vezes que eu encontrar pessoas com sede, na minha trajetória. Sabe?”.

“Eu sinto, principalmente depois da viagem ao continente africano, que encontrei água, e que ainda tenho tempo para dividir essa água com todas as pessoas que estão com sede”

Emicida

Seu fluxo de consciência é digno de ser acompanhado. Ainda sobre o assunto, Emicida diz: “Tem uma passagem no filme, que é aquele momento que falo sobre a minha ida ao Museu da Escravidão, e acho que aquilo ali define tudo que estou tentando fazer. E, mesmo com boas intenções, a gente observa, no mercado, na comunicação, nas empresas, com acertos e erros cometidos, que pessoas pretas ou minorias são marcadas como se a existência delas fossem definidas pelos conflitos que elas têm que atravessar enquanto estão vivas. Então, é muito comum a gente entender as pessoas se referindo às pessoas pretas como se elas fossem [sempre] ativistas, naturalmente ativistas, quando muitas vezes, se isso fosse uma opção, a última coisa que a gente seria é ativistas. Porque o que a gente quer, mano, é viver nossa vida, olhar no espelho e se sentir importante, tá ligado, mano? É sentir que sua vida vale a pena, sentir que você não vai ser assassinado quando vai no mercado; deixar de ter medo, porque a nossa experiência é atravessada pelo medo, por mais vezes do que a gente imagina, tá ligado? A gente muda o lugar por onde a gente vai passar, o lugar que a gente compra, a forma com que a gente se veste, o tom que a gente fala, porque a gente não se sente seguro na sociedade que a gente vive. Então, a minha forma de compartilhar essa humanidade é através das histórias que conto. Foi o que a África fez comigo, mano. Os africanos foram muito generosos comigo, desde o primeiro momento que cheguei lá. Aquilo me fez sair dali tão transformado que quis pegar minha caneta e gerar aquela mesma sensação em todo mundo que escutasse o que eu produzisse.”

Talvez uma das grandes lições do filme seja potencializar o sentimento de que é possível alcançar e que todos os grandes lugares desse país só existem pela ação de pessoas pretas, em todos os detalhes. É esse sentido de humanidade que encontro na obra e também no seu autor, um artista escutado, e agora assistido, por milhões de pessoas. Uma força que dá sentido às nossas vidas e nos faz valorizá-las, cada vez mais.

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(Jef Delgado/Divulgação)

Isso é o Emicida, que mordeu cachorro e continua chegando muito longe. Isso é o Emicida Cachoeira, que, ao regar sua horta, aprende a nutrir sonhos com a terra. Esse é o sentimento de AmarElo – É tudo pra ontem, que ensina que o futuro está no passado e na memória do nosso povo.

O professor Emicida

Eu não tenho dúvidas de que Nilma Lino, autora do livro “O movimento negro educador – Saberes Construídos nas lutas por emancipação” vai gostar muito desse filme, onde Emicida apresenta a contundente atuação do movimento negro em construções importantes da história desse país.

Ele também facilita a compreensão de discussões como a da interseccionalidade a partir de Lélia Gonzalez, ao trazer para o centro da cena aspectos das condições de opressão que mira as mulheres negras, numa sociedade patriarcal, racista, classista e sexista.

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“É muito comum a gente entender as pessoas se referindo às pessoas pretas como se elas fossem [sempre] ativistas, naturalmente ativistas, quando muitas vezes, se isso fosse uma opção, a última coisa que a gente seria é ativistas. Porque o que a gente quer, mano, é viver nossa vida, olhar no espelho e se sentir importante, tá ligado, mano?”

Emicida

Emicida, literalmente, senta todo mundo no banco do saber e ensina acolhendo. Em “AmarElo”, milhões de pessoas podem conhecer passos de uma luta invisibilizada, que vai de Tebas, o grande arquiteto negro, à potência de Marielle Franco. Só um professor muito dedicado ao compartilhamento do saber para criar esse ambiente, em um filme.

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(Jef Delgado/Divulgação)

Esse é o meu convite para que você assista AmarElo e se movimente também.

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Jeferson Delgado. Confira mais de seu trabalho aqui

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