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Fan games: uma paixão que pode virar processo jurídico

Conheça os fãs que assumem os riscos e criam jogos com Pokémon, Donkey Kong, Liga da Justiça, entre outros personagens da cultura pop

por João Varella Atualizado em 12 abr 2022, 11h54 - Publicado em 12 abr 2022 01h38
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(Arte/Redação)

paixão de Matheus Gelesov por Pokémon começou aos quatro anos de idade. Fruía o jogo dos monstros de bolso em um Gameboy, console portátil da Nintendo. “Virou um vício, é onde baseio muito das minhas inspirações pessoais”, disse Gelesov, hoje um professor de arte e design gráfico de 21 anos.

No ensino médio, Matheus passou o apego adiante. Apresentou Pokémon à então namorada Michelle Chagas. Em 2016, a dupla, que mora na capital de paulista, começou a elaborar o game Pokémon Samba. Nessa reinterpretação da franquia japonesa os personagens são inspirados na cultura brasileira. Há uma chefona vestida como passista de escola de samba, por exemplo.

É uma manifestação de amor. O sentimento sustenta e justifica os fan games, ou jogos de fãs, como o Pokémon Samba. Esses projetos demandam anos de dedicação, se apropriam de personagens famosos – além de Pokémon, há versões de Mario, Sonic, Batman e praticamente tudo que há de relevante na cultura pop – e sem intenção de lucro. Uma mistura de trabalho e diversão que escapa da taxonomia convencional do capitalismo.

E se “o amor só é bom se doer”, ainda por cima há o risco de tomar um processo dos próprios donos da marca. Vai amar, vai sofrer, canta Vinicius em seu mais famoso afrosamba.

“Virou um vício, é onde baseio muito das minhas inspirações pessoais”

Matheus Gelesov, designer
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(Pokémon Samba/Reprodução)

PT-BR

Pokémon Samba representa um salto na representação nacional dentro da série, cujos jogos principais nunca ganharam tradução no Brasil. O spin-off Pokémon Unite, que coloca os monstrinhos numa arena estilo League of Legends, foi o primeiro da série a receber tradução para o português, no começo deste ano.

A insatisfação é latente. Diante do anúncio de Pokémon Scarlet/Violet, previsto para o final do ano, os fãs brasileiros protestaram no Twitter com as hashtags #ScarletVioletPTBR #PokemonPTBR. A ex-BBB Juliette fez coro. “Realmente acho um absurdo”, disse ela em um stories, destacando que não sabe falar inglês. “Isso é uma safadeza. Com quem eu falo?”.


Atento à demanda dos fãs desde o princípio, Pokémon Samba já sairá com versão em português brasileiro, o PT-BR. Não há data de lançamento para sua versão completa. Uma demonstração está disponível para ser baixada gratuitamente.

Logo no início, o jogo avisa não ter fins lucrativos, não ser dono da marca Pokémon e incentiva os jogadores a apoiarem a marca oficial. Mesmo assim, se a proprietária do Pokémon mandar, eles estão prontos para apagar tudo. “Não tem muito espaço para discussão, eles são os donos da franquia”, afirma Gelesov. E nem precisa perguntar para o seu orixá, mais hora, menos hora o processo vai, vai, vai, vai chegar.

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Dedo-duro

Tem gente disposta a atravessar o samba. “Ei @NintendoAmerica, se liga nesse fã de vocês… o cara tá clamando por um processinho!”, tuitou no começo do ano Eduardo Benvenuti, o BRKsEDU, dono de um dos maiores canais de games do YouTube. Ele compartilhava um vídeo de um jogo de fãs baseado em Super Mario Land 2.

A mensagem de Benvenuti marca a conta oficial da Nintendo. Uma notificação de um perfil de peso do Brasil chegou até lá. No dia seguinte, com a postagem original deletada, Edu pediu desculpas. “Galera: ontem postei algo na intenção de criticar uma empresa e fui mal entendido. Tudo que eu quis dizer foi: ‘Muito legal isso, pena que a Nintendo sempre derruba’”. Segundo Edu, a intenção era “mostrar o absurdo que um projeto que tá tão da hora vai cair por política estúpida corporativa”.

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Não da Nintendo

A postura amigável e aprazível do Mario não se reflete no departamento jurídico da empresa proprietária do personagem. Basta um projeto de fãs se destacar para a Nintendo mandar derrubar. Foi assim com Another Metroid 2 Remake, uma atualização de Metroid II: Return of Samus, lançado no Game Boy em 1991. Também com Pokémon Uranium, que teve nove anos de desenvolvimento e criava o conceito de pokémons nucleares.

Diante de uma notificação extrajudicial de uma empresa bilionária, raros fãs pagam para ver. Mas ainda dá para encontrar esses jogos, os jogadores sempre dão um jeito de preservar os arquivos.

As leis protegem a propriedade intelectual da detentora, inclusive no Brasil. “Jogo está protegido pela Lei do Software, que por sua vez remete às condições impostas na Lei de Direitos Autorais”, explica a advogada especializada em direito digital Flavia Penido. À Elástica, ela falou em tese, sem analisar o mérito de nenhum caso em particular. “As criações [os jogos de fãs] ferem direito autoral, e a lei de software prevê punição mesmo que o intuito não seja comercial”.

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Penido, no entanto, desaconselha sair metendo processo nos fãs. Pelo contrário, ela argumenta em favor da valorização dos admiradores. “Nem sempre a melhor solução é a solução jurídica nua e crua”.

A Sega, dona de Sonic, o rival de Mario, é mais leniente. A coordenadora de redes sociais da Sega, Katie Chrzanowski, explicou no ano passado que a companhia não tem problemas com jogos do Sonic feitos por fãs, contanto esses projetos não sejam monetizados. A atitude rende frutos. Sonic Mania, título lançado oficialmente em 2017, foi dirigido por Christian Whitehead, que começou na carreira com jogos de fãs do ouriço azul.

“As criações [os jogos de fãs] ferem direito autoral, e a lei de software prevê punição mesmo que o intuito não seja comercial”

Flavia Penido, advogada
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(Arte/Redação)

Limitação apaixonante

Pokémon oferece condições ímpares para a formação de fan games. A começar pela comunidade enorme. Entre os dez jogos mais vendidos do Nintendo Switch, console mais comercializado da atualidade, três são de Pokémon, somando 42 milhões de cópias. Isso sem contar os games gratuitos, brinquedos, filmes, séries.

Apesar de ser uma série grandilocuente, os jogos principais adotaram as limitações técnicas como linguagem. Pokémon Brilliant Diamond/Shinning Pearl, que saiu no ano passado, ainda traz as animações de combate dos bichinhos limitada a tremidinhas. As caixas de texto abundam para comunicar elementos que em outros jogos se dão de maneira visual. Não há dublagem. É tradição. Pokémon se mantém graças ao carisma dos seus monstrinhos (aqui talvez esteja a razão de tamanho resguardo com a marca).

Isso faz com que os jogos de fãs sejam próximos dos títulos oficiais. O RPG Maker, ferramenta usada para criar games, traz uma extensão especialmente moldada para jogos de Pokémon – Pokémon Samba usa esse recurso.

Para assistir as fofurices dos pokémons em ação, melhor ir a games derivados como New Pokémon Snap. Lançado há um ano, esse jogo com ares de safári coloca o jogador em uma trilha, observando os bichinhos interagindo com o cenário ou entre si. Dá para jogar comida e ver como eles reagem. A missão é mirar e disparar… com uma câmera fotográfica, claro. A Pokémon Company preserva o tom infantil da série. Só dá para matar pokémons nos jogos apócrifos.

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40 anos de macacada

Nem só de Pokémon vive a Nintendo, proprietária de algumas das marcas mais famosas e antigas dos videogames. No ano passado, Donkey Kong completou 40 anos. Os fãs estranharam o silêncio da empresa, que não prestou nenhuma homenagem significativa ao game que alavancou a carreira de Shigeru Miyamoto. Depois, o game designer rebatizaria Jumpman, o herói de Donkey Kong, em Mario. Sim, é O Mario.

Donkey Kong criou um séquito de seguidores próprios depois de uma recauchutada que recebeu nos anos 1990. Sob a batuta do estúdio britânico Rare, a trilogia Donkey Kong Country deu um show de técnica e carisma. Introduziu personagens novos, como Diddy Kong, sobrinho de Donkey. A série é um destaque da ludoteca do Super Nintendo – o que não é pouca coisa.

“Tudo era inovador, gráficos, música, jogabilidade, diversão, era tudo maravilhoso”, diz o programador André Luiz Silva, 39 anos. Natural de Florianópolis, ele tinha dez anos quando jogou DKC pela primeira vez. Há nove anos, Silva teve contato com a demo de Donkey Kong Country 4, um jogo de fãs brasileiros que imaginava uma continuação direta para a trilogia, com ares de anos 1990.

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(Arte/Redação)

Código aberto

Silva entrou em contato com os criadores que franquearam as dicas e ferramentas usadas. Assim, começou a desenvolver DKC Trilogy, uma remixagem dos elementos dos três jogos clássicos. Como não é um emulador, o jogo não disponibiliza o save state, que permite congelar um momento específico da partida. A própria Nintendo oferece essa ajudinha nos jogos do serviço de assinatura Switch Online, incluindo os três Donkey Kong Country.

Quem quiser se aventurar pelas 40 fases de DKC Trilogy vai ter que se esforçar como nos tempos das locadora. Nem mesmo Lorena Freitas de Jesus, 35 anos, esposa de André e testadora do jogo, conseguiu zerar.

Há um ano, o projeto ganhou a ajuda voluntária do designer Tiago Rodolfo Leal, 34 anos, de Araçatuba, interior de São Paulo. Entre várias melhorias, ele bolou uma vinheta de abertura que resgata a nostalgia do Donkey Kong original e honra as quatro décadas do macacão.

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Após oito anos de trabalho, a versão definitiva foi publicada em setembro do ano passado e desde então está disponível gratuitamente. De acordo com Silva, o jogo teve quase 40 mil downloads.

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Heróis

A Nintendo não tem o monopólio dos fan games, claro. O analista de suporte Vitor Franco, 39 anos, que assina seus jogos como ZVitor, já fez 14 títulos. As peças são baseadas em Street Fighter, Marvel, DC, e até de marcas que nunca tiveram um jogo próprio, como Caverna do Dragão. Segundo ele, esse último foi o mais rápido a ser concretizado, levou apenas um ano. “Tive mais tempo livre durante a pandemia”, afirma ele, que mora em Fortaleza.

Ele encontra uma finalidade pragmática nos fan games: “Muitos produtores fazem os jogos como portfólio para quem sabe um dia ser contratado pelas empresas de jogos nacionais”.

O desejo é um dia viver da produção de fan games – entre Patreon e apoia.se, ele recebe o patrocínio de 26 apoiadores atualmente. Os pagantes decidem caminhos do desenvolvimento dos jogos, como próximos personagens a serem adicionados, por exemplo. “Viver de fan game é um sonho difícil, mas não é impossível”, afirma ZVitor. Vindo de alguém que na infância imaginava jogos com seus personagens prediletos, não parece ser impossível mesmo.

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