pandemia do novo coronavírus deixou o food trotter em casa. A figura do cara que viaja exclusivamente pra comer, faz reservas com meses de antecedência nos mais concorridos restaurantes e ajuda a girar uma engrenagem de milhões de dólares – dos prêmios, como o World’s 50 Best, o mais influente da gastronomia hoje, a departamentos de turismo em diversos países do mundo – ficou ameaçada.
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Se os restaurantes das cidades com grande fluxo de turismo, como Lisboa, Nova York ou Copenhagen, por exemplo, já estão sofrendo muito com a redução de público, o que poderíamos dizer dos restaurantes-destino, aqueles instalados em locais ermos, financiados exclusivamente por pessoas obcecadas por comida, que fazem (faziam?) qualquer coisa para ter uma “experiência transcendental” à mesa? Difícil dizer ao certo como esse enredo vai terminar. Mas talvez ele deixe alguns personagens pelo caminho. E isso pode ser bom para o futuro da própria gastronomia.
Surto gourmetizado
Não é de hoje que a comida ganhou um novo status na nossa sociedade, com campanhas publicitárias estreladas por chefs de cozinha, uma onipresença até enfadonha de programas de culinária na TV, artistas fazendo uso dos elementos desse universo para promover músicas ou até mesmo voltar ao mercado (a comida, quem diria, fez muita gente sair da geladeira). “Absolutamente o motor da gastronomia, mesmo a alta gastronomia, em geral, é essa geração de pessoas aparentemente obcecadas por comida que estão dispostas a dirigir uma hora e meia por um taco ou economizar quantidades de dinheiro – que minha geração gastaria em cocaína – para jantar no Le Bernardin”, escreveu sobre os foodies (os tais obcecados por comida) o saudoso chef e apresentador Anthony Bourdain, também ele transformado em celebridade por eles.
O efeito colateral desse “surto gastronômico” foi uma apropriação torta dos elementos da própria gastronomia, um uso exacerbado (e desconfigurado!) da palavra gourmet para designar da varanda do novo apartamento à mais simples e trivial das coxinhas. Uma ostentação até meio cafona para a justificar “restaurantes com conceitos”, preços exorbitantes, pirotecnias sem sentido no prato e, muitas vezes, menus degustação que poderiam ser cortados pela metade sem qualquer prejuízo à tal experiência – ainda que não se possa dizer o mesmo sobre os nossos bolsos.
De volta ao natural
A pandemia, acreditam muitos, pode nos devolver a naturalidade da cozinha, o prazer de comer sem ter que ouvir explicações sobre a origem de cada ingrediente, a possibilidade de sair de um restaurante sem a percepção que pagamos demais por algo que nem chegamos a comer (e não é só sobre quantidade). “Acho que as crises nos obrigam a dar uns passos atrás, o que pode ser bom nesse momento. A gastronomia estava virando a festa da goiaba, valia tudo”, defende o chef Raphael Despirite, do Fechado para Jantar. Diante da crise, sua família foi obrigada a fechar indefinidamente o Marcel, restaurante que há mais de 60 anos mantinham em São Paulo.
“Acho que as crises nos obrigam a dar uns passos atrás, o que pode ser bom nesse momento. A gastronomia estava virando festa, valia tudo”
Raphael Despirite
“Agora, será mais uma questão econômica, claro, algo a que a gastronomia já demonstrou saber se sobrepor nas últimas décadas. Ela já passou por guerras, e aprendeu a se reinventar. Receitas muito simples, como o macarrão à ‘cacio e pepe’, por exemplo, feito apenas de queijo e pimenta do reino, surgiram de uma necessidade de se fazer muito com pouco”, explica ele, que é também um dos fundadores da Suflex, startup de soluções de gestão para bares e restaurantes. Para Despirite, cozinheiros passarão a olhar mais para os ingredientes locais, exercer a criatividade, comprar mais conscientemente. “Pois é, chegou aquela hora de mostrar que conseguimos fazer do limão uma limonada”, brinca. Mas uma simples, refrescante, com os frutos que temos ali no quintal, segundo ele. “Até porque essa coisa de comprar ingredientes importados não vai fazer tanto sentido. É o momento mais da abobrinha do que da manteiga trufada. E isso pode ser muito bom”, afirma. É uma oportunidade das diferentes cozinhas olharem mais pra dentro e encontrarem seus diferenciais.
Mais casual
Dar um passo para trás pode ser muito positivo, de acordo com o chef Rui Martins, do restaurante O Paparico, no Porto. A cidade portuguesa viu sua cena gastronômica se desenvolver muito, com o boom do turismo que passou a tomar o pequeno país europeu nos últimos anos. Destacado como um restaurante que funcionava apenas com menu degustação, apresentando aos visitantes os sabores portugueses das diferentes regiões, O Paparico reabriu há poucas semanas com uma nova roupagem e serviço “à carta”, da qual se pode escolher sem ficar preso ao antigo formato.
“Acho que as pessoas não querem mais refeições tão ostensivas. Tivemos muito tempo parados, sem sair, e agora já não achamos moralmente aceitável gastar muitos euros em uma garrafa de vinho, sabendo que existem tantas pessoas que tiveram reduções de salário. É um julgamento de valor que as pessoas não estão dispostas a enfrentar”, ele defende. Mas isso não significa o fim da alta gastronomia, claro, mas um indicativo que ela deve se tornar ainda mais nichada a um segmento para alguns endinheirados mais dispostos, um reflexo de como vamos sair dessa pandemia: ainda mais desiguais, social e economicamente falando.
Em cidades como Chicago, Melbourne ou Londres, restaurantes se reinventaram não para buscar alternativas mais acessíveis, mas justamente como oferecer experiências ainda mais exclusivas a preços mais altos do que os praticados antes da pandemia. Na cidade americana, o chef Curtis Duffy colocou de pé o Ever, seu restaurante com investimento de US$5 milhões, em plena pandemia, com mesas de 6 mil dólares e menu a 285 dólares por pessoa. Se parecia demasiado antes, agora, na maior crise econômica do século, pode soar ainda mais. “Eu sei que somos um restaurante caro. Mas paga-se pelos ingredientes, pelo trabalho, pelo amor. Todas essas coisas custam dinheiro”, disse Duffy ao portal Eater.
“No nosso caso, foi uma pausa importante para repensarmos um novo caminho, mas em busca de algo mais casual, sempre com qualidade de produto”, explica Martins. “Ajudou-nos a olhar para dentro e perceber que podíamos fazer tão bem quanto antes, mas de uma maneira mais descontraída”. Isso pode ajudar a fazer a culinária de alguns países e regiões ganharem novas oportunidades de serem melhor exploradas.
Rui Martins
“Tivemos muito tempo parados, sem sair, e agora já não achamos moralmente aceitável gastar muitos euros em uma garrafa de vinho, sabendo que existem tantas pessoas que tiveram reduções de salário. É um julgamento de valor que as pessoas não estão dispostas a enfrentar”
É difícil elencar todos os fatores nas últimas duas décadas que deram aos restaurantes sua relevância cultural global, transformando-os em uma indulgência cara para alguns ou em uma obsessão compartilhada por muitos outros. Essa apreciação exagerada os tornou espaços de celebração quase messiânica da gastronomia, onde a palavra do chef vale mais do que a própria percepção do cliente sobre a comida que ele faz. “Poxa, não gostei dos pratos, mas eu é que não devo ter entendido o conceito”, pensam muitos, antes de passar o cartão.
Da pandemia, uma nova apreciação gastronômica pode surgir com menos discursos, menos afetação, menos fanatismo – algo positivo desse que é talvez o momento economicamente mais desafiador de nossas vidas. “Esse período nos trouxe a consciência de que comida é, mais que tudo, para nos nutrir, literal e simbolicamente, e não tem que ser nada muito além disso”, diz o chef César Costa, do Corrutela, em São Paulo. “Cozinhar para o outro, sentar à mesa, algo despretensioso que faz parte das nossas vidas há tanto tempo”. Sem tantos excessos, resta-nos apenas o que é mais essencial: a ideia primordial de que comida é feita para nos reunir, nos divertir, e nos satisfazer. Tão simples e tão complexo quanto isso.
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As fotos dessa reportagem fazem parte da série Comidas Comidas feita pela fotógrafa Carol Gherardi para Flair Coletivo