O que a capital com menor taxa de homicídios no Brasil me ensinou sobre respeitar diferenças e a política armamentista do país
por Artur TavaresAtualizado em 10 fev 2022, 12h26 - Publicado em
10 fev 2022
00h31
Estou convencido a votar na direita!”, brinquei com a minha companheira enquanto andava pelas ruas de Florianópolis, constatando dia após dia das minhas longas férias a possibilidade de ainda morar em um lugar cujas casas têm muros baixos, portões raramente trancados, silêncio depois das dez horas (da manhã e da noite).
Caminhar pelos mais diversos bairros da ilha, de norte a sul conhecendo suas 40 praias, é perceber uma cidade idílica, de pessoas cordiais, cuja boa parte das que conversei se considera conservadora, ou pelo menos transparece alguns desses valores – com respeito às diferenças, ainda bem -, extremamente preocupada com a preservação ambiental da costa e seu entorno, sem deixar de lado o desenvolvimento econômico da região.
Por lá, todo mundo diz que a capital catarinense é a mais segura do país, e o Atlas da Violência, divulgado pelo governo federal em 2019, registra 30 homicídios em média na cidade, perdendo apenas para Cuiabá, com 28,8 homicídios em média por ano, virtualmente o mesmo número de Florianópolis – em 2021, o governo parou de apresentar os dados oficiais de mortes em capitais, compilando apenas informações totais de cada estado.
Depois de ouvir pela vigésima vez um morador da ilha nos dizer o quanto a cidade é segura, comecei a me sentir envolvido em um plot que lembrava histórias clássicas de terror, como Salem, de Stephen King, ou Os Invasores de Corpos, de Jack Finney, onde certos vernizes sociais escondem verdades assustadoras em cidades aparentemente tranquilas. O que estaria por trás do meu paraíso de verão?
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Não matarás (a não ser para fazer justiça)
“A segurança particular e a polícia têm uma relação muito estreita por aqui”, nos conta um motorista de Uber. Ele diz que é coordenador de uma equipe de segurança particular de transporte de cargas, mas com o setor desaquecido pela pandemia decidiu fazer bicos no aplicativo durante o verão. “Sabe por que a ilha é tão segura? Aqui se faz justiça com as próprias mãos.”
A imagem de Sidarta Gautama, o Buda, tatuada em seu braço direito soava a mim como uma idiossincrasia, e quanto mais ele falava, mais eu entendia como funciona a moral dessa gente que se diz de bem. Parecia não haver mais contradição enquanto ele explicava que, por lá, “é Deus quem resolve”, e que ninguém na ilha se importava com um assaltante de casas a menos na sociedade. “Eles vêm de frente, mas sempre voltam de ré”, diz rindo, enquanto contava que “11 a cada 10 pessoas de Florianópolis têm CAC”, referindo-se à certificação dada pelo governo para caçadores, atiradores e colecionadores donos de armas de fogo.
Como se um assalto fosse a quebra de um tratado de não-agressão entre os cidadãos de bem e a bandidagem, como se houvesse esse apartheid que servisse de régua para nossa sociedade, a polícia, a segurança particular e as próprias pessoas estariam autorizadas a resolver por si mesmas, da pior maneira possível, situações que deveriam ser levadas à justiça.
“E se eu não tenho arma, não concordo com o armamento da população civil?”, pergunto a ele, tentando entender o que aconteceria se eu morasse lá e fosse assaltado. “A gente resolve por você”, ele responde com uma naturalidade assombrosa.
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Entendendo seu tio
“Quando estão falando de liberdade dos homens, da igualdade entre os homens, da fraternidade entre os homens, estão pensando em homens que são iguais a eles, que têm a mesma condição racial que eles”, explicou-me a historiadora Ynaê Lopes sobre a relação entre o Iluminismo nos países europeus e a manutenção da escravatura nas colônias entre os séculos 18 e 19. O pensamento não é muito diferente na cabeça de muitos brasileiros quando o assunto é a defesa da propriedade, da moral e dos bons costumes. Vale lembrar que, durante o ápice de mortes durante a pandemia, o problema estava nos pancadões das quebradas, e não nos cassinos e shows ilegais nos bairros mais ricos da cidade. “Vai pra favela”, gritou a socialite cafonérrima Liziane Gutierrez quando policiais fecharam uma festinha clandestina em que ela estava em São Paulo, em julho do ano passado.
Existem diversos graus de conservadorismo social, embora todos sejam reativos a um outro de alguma forma. Como Florianópolis é um lugar cheio de praias e surfistas, fumar maconha é aparentemente normalizado entre a população. Por outro lado, na igreja que alguns dos meus familiares frequentam em São Paulo, eu ouviria um sermão e seria convencido a conhecer a salvação de Deus por uma vida longe dos vícios. Dos templos de umbanda e candomblé queimados por evangélicos até pessoas LGBTQIA+ espancadas e mortas por civis nas ruas, a preservação dos considerados “valores tradicionais” sempre vai envolver agressão a alguém.
Dos templos de umbanda e candomblé queimados por evangélicos até pessoas LGBTQIA+ espancadas e mortas por civis nas ruas, a preservação dos considerados “valores tradicionais” sempre vai envolver agressão a alguém
Dados divulgados pelo anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2021 mostram que houve um aumento de 24,7% em mortes e de 20,9% em agressões contra a população LGBTQIA+ em 2020. No mesmo ano, dos 6.416 brasileiros mortos por intervenção policial, 78,9% eram negros.
Os Dez Mandamentos realmente fazem sentido como linha de conduta para os cidadãos de bem, e muitos até fingem direitinho não cobiçar a mulher alheia, não praticar adultério, não desejar a vida material de influenciadores de plástico e dos famosos. Enquanto não afetá-los, tudo bem. Mas, quando essa linha é cruzada, muitos deles preferem invocar o Código de Hamurabi e tomar suas decisões na base do “olho por olho, dente por dente”. Acontece que esses olhos e dentes são bastante desproporcionais, porque um homem beijar outro em público ou um assaltante pular muros não são motivos para assassinato.
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Faz arminha com as mãos
Embora dizer que 11 em cada dez moradores de Florianópolis têm CAC soe um exagero, a verdade é que em 2020 o número de posses de armas de fogo aumentou 97,1%, e o número de armamentos nas mãos de civis duplicou desde o começo do governo Bolsonaro. Também de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, hoje já são mais de 2 milhões de armas legalmente registradas no Brasil.
Na primeira semana de janeiro, o portal de comunicação público Senado Notícias, vinculado à Agência Senado, soltou uma reportagem afirmando que as regras de flexibilização para CACs devem ser pauta na casa ainda esse ano. Está em jogo a autorização de no mínimo 16 armas de fogo na mão de cada cidadão com porte de armas, sendo 6 delas de uso restrito – como fuzis etc.
De acordo com a matéria, “não está indicado o limite máximo de aquisição, que poderá ser expandido em regulamentação do Comando do Exército”, e ainda haveria um entrave na permissão de recarga automática de munição para essas armas. O relator do projeto é o senador Marcos do Val, do Podemos-ES, uma das estrelas da CPI da Pandemia.
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Existe, é claro, uma conta macabra nessa possível flexibilização para CACs. Uma pessoa com porte que possui 16 armas pode armar outras 15 pessoas sem porte com suas armas. No pior dos cenários, onde todos distribuem suas armas ilegalmente, teríamos uma milícia de 30 milhões de brasileiros dispostos a travar uma guerra santa contra o comunismo, fechar o STF com muito mais que um cabo e um soldado e até, quem sabe, invadir a Venezuela.
Com ou sem Jair Bolsonaro no poder a partir das próximas eleições, está feito o estrago de sua insistência patética com o afrouxamento das regras que restringem a posse de armas de fogo no país. Os senadores da base aliada têm pressa para tramitar o projeto, provavelmente para permitir que o presidente cante essa vitória durante sua campanha de reeleição, mas é difícil imaginar que atrasar a pauta até 2023 terá pouco mais do que efeito paliativo nessa onda armamentista brasileira.
Uma pessoa com porte que possui 16 armas pode armar outras 15 pessoas sem porte com suas armas. No pior dos cenários, onde todos distribuem suas armas ilegalmente, teríamos uma milícia de 30 milhões de brasileiros dispostos a travar uma guerra santa contra o comunismo, fechar o STF e até, quem sabe, invadir a Venezuela
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Vale lembrar também que enquanto as chuvas castigavam Minas Gerais e a Bahia no final do ano, Bolsonaro passava férias em Santa Catarina, onde andou de jet ski com sua filha – que sempre sai com cara de bode nas fotos –, visitou pizzarias de anônimos e andou de Hot Wheels em um parque de diversões.
Nas más línguas da imprensa, isso seria um sinal de que o presidente já dá como certa sua derrota em outubro deste ano, e para fugir de eventuais condenações após a perda do mandato tentaria se reeleger senador pelo estado do Sul do país. Sua boquinha de dez dias, que resultou em um problemão de estômago, teria sido na verdade um ensaio para uma campanha política que teria durado alguns dias a mais se o camarão/Adélio não lhe desse uma indigestão/facada.
As minhas férias foram ótimas, afinal de contas, mas a realidade escancarada não me deixou desligar totalmente de refletir que os estragos a curto prazo dessa nossa guinada à extrema direita já estão postos, seja com as mais de 600 mil mortes na pandemia, com desemprego recorde ou com a economia em frangalhos, mas ainda não conseguimos enxergar quais os efeitos que as chamadas pautas de costume terão no país nos próximos anos. O bolsonarismo pode perder o poder na figura de seu Messias na presidência, mas as ideologias permanecem por muito mais tempo.
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PS: Essa crônica foi escrita antes dos acontecimentos envolvendo os apresentadores Monark e Adrilles Jorge, e o deputado federal Kim Kataguiri, que nesta semana abriram as portas do inferno ao falar de nazismo. Qualquer semelhança (não) é mera coincidência
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