Historiadora Ynaê Lopes propõe revisão na hegemonia social dos brancos para amplificar o debate antirracista
por Artur TavaresAtualizado em 22 nov 2021, 16h26 - Publicado em
16 nov 2021
23h50
notícia já é antiga, mas escancara que a série de violências diárias sofridas pelos negros no Brasil não é coincidência. No final de julho, o presidente Jair Bolsonaro e deputados de sua base, como Bia Kicis, se encontraram com parlamentares do partido neo nazista Alternativa para a Alemanha. As fotos da reunião foram publicadas sem constrangimento, e ninguém veio a público dar uma satisfação à população logo depois.
Somos um país cuja maioria da população é preta, mas vivemos sob uma dominação tão grande que perdemos – ou talvez nunca tenhamos criado – a capacidade de nos chocar. Negros são mortos por seguranças na porta de supermercados, crianças desaparecem em favelas, vereadoras são assassinadas à sangue frio e, se obviamente a soma de 2+2 é quatro, então o encontro do presidente da república com neo nazistas significa apenas uma coisa: a engrenagem que move o Brasil é o racismo.
“Quem é reacionário não vê nenhum tipo de problema em considerar que a população negra é inferior, que índio não é gente. Isso é construído na história brasileira. Dá para entender, infelizmente, porque as pessoas pensam desse jeito, e porque é possível que representantes máximos do poder, da organização administrativa brasileira, coadunem com isso. É o que estamos vivendo hoje”, diz a historiadora Ynaê Lopes.
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Doutora pela USP e especialista em escravidão nas Américas, a paulistana é uma voz importante na luta antirracista no país. Se preparando para lançar seu terceiro livro, Uma Breve História do Racismo no Brasil, Ynaê vem fazendo relações importantes entre a época das navegações transatlânticas e a atualidade, um estudo de causa e consequência sobre as desigualdades gritantes que enfrentamos enquanto nação.
Na edição mais recente da revista Serrote, do Instituto Moreira Salles, Ynaê fez reflexões duras sobre como racismo ajudou para que a maioria das 600 mil pessoas mortas por covid no Brasil tenham sido negras, e, para além disso, como a covid-19 também jogou mais pessoas pretas no desemprego, na fome, na miséria, situações de desamparo total.
Ynaê conversou conosco sobre a necessidade urgente de superarmos ideias coloniais de desenvolvimento socioeconômico e cultural a fim de promovermos uma mudança verdadeira, uma crítica que atinge não apenas a parcela mais abjeta das pessoas, mas a todos nós.
Você é especialista em escravidão nas Américas mas, para começar nossa conversa, gostaria que você me explicasse qual o peso que a prática da dominação de corpos tem no desenvolvimento e na economia das sociedades desde os tempos mais antigos.
A instituição escravista acompanha, infelizmente, a história da humanidade em diversos momentos e locais. Na verdade, aparece aproximadamente no mesmo período em que, como espécie, passamos pela mais importante das nossas revoluções, que é o sedentarismo.
Essa prática se organiza de formas diferentes mas, a grosso modo, temos sociedades que tiveram escravizados principalmente como subprodutos de guerras, e nesse caso usamos um sinônimo que é a palavra “cativo”. É o subproduto de uma guerra, um soldado que, em tese, deveria ter morrido em combate. É como se ele devesse sua vida para o vencedor daquele embate. Essa foi a origem de muitas sociedades com escravos. O que garantia a perpetuação da escravidão era o ventre escravizado. As mães davam à luz a outros meninos e meninas escravizados.
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Outra situação são as sociedades escravistas. São sociedades que dependem da força de trabalho desses escravizados para funcionar em uma macroestrutura. O maior exemplo ocidental antes da experiência transatlântica foi o Império Romano, que só ganhou sua dimensão ao custo da mão de obra escravizada.
A escravidão foi praticada em diversas sociedades, sejam elas no continente africano, ameríndias, asiáticas. Foi a tônica de boa parte da antiguidade clássica, sobretudo no período de vigência do Império Romano. A escravidão atravessa a história da humanidade, infelizmente mostrando que nós, seres humanos, construímos sociedades a partir da exploração máxima do trabalho de terceiros.
Nós, atualmente, no mundo ocidental do século 21, somos uma sociedade com escravizados. A escravidão ainda existe em uma série de lugares, mas não dependemos do trabalho desses homens e mulheres para fazer nossa economia funcionar.
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Quando foi que a escravidão passa a ganhar um recorte racial baseada em fenótipos?
Essa escravidão moderna racializada se constitui a partir do século 15 e se estabelece do 16 em diante. Pela primeira vez há uma justificativa racial tanto para a escravização tanto dos africanos quanto dos ameríndios. Não é por acaso que entendemos a constituição do racismo como sistema político justamente nesse mesmo período.
No século 16, considerado o ápice da modernidade, temos o encontro de sociedades que não sabiam umas das outras, no caso os europeus e ameríndios, e essa construção do mundo atlântico, que vai ligar os interesses absolutamente distintos da Europa, da África atlântica e da América. Ali se constituem as sociedades escravistas que tomam os aspectos fenotípicos dos indivíduos como justificativa para a escravização.
Em um primeiro momento, essa acepção racial estará ligada a algumas passagens bíblicas. Na verdade, quem dá a justificativa moral para a escravização tanto de africanos quanto de indígenas é a Igreja Católica, então a principal instituição ordenadora da Europa, ou pelo menos dos países que estavam empreitando essa jornada colonial.
“No século 16, considerado o ápice da modernidade, temos o encontro de sociedades que não sabiam umas das outras, no caso os europeus e ameríndios, e essa construção do mundo atlântico, que vai ligar os interesses absolutamente distintos da Europa, da África atlântica e da América. Ali se constituem as sociedades escravistas que tomam os aspectos fenotípicos dos indivíduos como justificativa para a escravização”
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De que maneira as teorias racistas vão evoluindo em empreendimentos como a Igreja Católica e os círculos científicos ao longo dos séculos do período colonial, pavimentando o caminho para a sociedade ainda muito segregada de hoje em dia?
É um processo histórico complexo que é marcado por indivíduos que são herdeiros de um mundo no qual o lugar racial, ainda que não estejam tão… Existe um debate na historiografia, se podemos chamar de racismo aquilo que acontece antes do século 19, porque é nesse momento, quando a ciência finalmente designa uma concepção discriminatória de raça, hierarquizada, que passamos a falar em racismo. Mas, historiadores e cientistas sociais defendem que podemos pensar em práticas racistas antes da delimitação e circunscrição desse conceito propriamente dito. Eu concordo com essa perspectiva na medida em que, pelos estudos que fiz, consigo observar que as justificativas para a escravidão já passavam por um reconhecimento de uma diferença da condição humana, e uma diferença muito embasada em uma visão desigual.
Essa percepção, que é construída nos séculos 16 e 17, são fundamentais para que o Iluminismo nasça no século 18. O Iluminismo é um movimento filosófico feito por homens que têm um lugar racial muito bem determinado no mundo. São homens, brancos e europeus. Homens que estão no topo da cadeia do mundo que fazem parte, e que vão pensar o mundo a partir do lugar onde eles estão.
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O que o Iluminismo faz e que acaba sendo uma das heranças mais complexas e, ao mesmo tempo, muito bem amarradas do racismo, é criar a falsa ideia da universalização. Da segunda metade do século 18 até o século 19, esses movimentos filosóficos, e consequentemente esses movimentos da ciência feitos por esses homens brancos e europeus, vão pensar a experiência humana a partir da experiência deles. Quando estão falando de liberdade dos homens, da igualdade entre os homens, da fraternidade entre os homens, estão pensando em homens que são iguais a eles, que têm a mesma condição racial que eles. Por isso que não há nenhum tipo de contradição entre o Iluminismo e a manutenção da escravidão. Ou, do acirramento da escravidão e do próprio tráfico. Porque os homens que estão defendendo essa concepção universal de homem não estão compreendendo a possibilidade de colocar africanos, negros e indígenas dentro dessa categoria.
O desenvolvimento da ciência acontece pautado pelas condições dadas naquele período, e essa concepção será fundamental para que, a partir do século 19, a ciência se transforme na principal fonte de justificativa da discriminação sistemática que já acontecia na sociedades desse mundo atlântico, e que ganham proporções até então desconhecidas.
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O Brasil nunca tomou ações afirmativas e reparatórias após a abolição. Olhando para nossa história desde então, a ditadura, agora a pandemia, dá pra dizer que nós somos o povo do “deixa pra ver o que acontece”?
Não acho que seja largado, mas é a forma como o racismo foi construído no Brasil. Como você colocou muito bem, não temos nenhum tipo de política afirmativa que traga alguma forma de integração efetiva e mais igualitária das populações negras e ameríndias no Brasil durante nossa experiência republicana. Agora, nos últimos 20 anos, temos o sistema de cotas, mas são ações muito pontuais.
Só que isso é parte do problema. Se recuperarmos a história da experiência republicana, a partir do momento em que o Brasil se constitui como uma nação em que a escravidão não é uma instituição legítima, observamos uma série de projetos políticos defendidos pelo Estado nacional que tinham como objetivo efetivo a eliminação da população negra.
Em um primeiro momento esses projetos passavam pela eliminação existencial desses corpos negros, pelo embranquecimento que faria com que a população deixasse de ser negra em 100 anos. Isso é um projeto financiado pelo Estado, não só a acepção do projeto, do ponto de vista científico, mas de todo o programa de migração. Se pegarmos o número de imigrantes que chegaram na virada do século 20, é estrondoso, impressionante. A localidade de origem desses imigrantes expressa esse projeto de embranquecimento da nação. O Brasil queria ser uma nação branca. Para os dirigentes do país naquela época, isso significava ser uma nação moderna, civilizada.
Um pouco mais para frente, observamos – sobretudo porque a base científica do racismo tinha caído por terra – um embranquecimento do Brasil não necessariamente nos corpos das pessoas, mas da própria ideia de Brasil. A ideia de brasilidade passa a projetar a branquitude como a única saída possível. É um golpe de mestre do Estado, em um momento em que a figura de Getúlio Vargas é muito importante, e que faz com que sejamos herdeiros dessa concepção que permite, de certa forma, uma entrada e contribuições positivas das populações negra e indígena, da mestiçagem como grande característica, mas que coloca o projeto nacional em uma ideia de uma nação não apenas administrada, mas que se entenda dentro dos pressupostos de existência das pessoas brancas.
Isso é o Brasil de hoje. O que acho importante pontuar é que não é um “deixa pra lá”, e sim um projeto nacional. São pessoas que estão pensando como o Brasil deve ser. Pode parecer um pouco assustador, mas o que vivemos hoje é exatamente isso. Esses 30% do Brasil que, de certa maneira, não veem de nenhum tipo de problema no país ser racista… porque o Brasil tem uma série de problemas, mesmo dentre os campos mais progressistas as pessoas têm dificuldade – ou tinham, porque está mudando – que não só o racismo existe no Brasil como o racismo faz parte da vida dessas pessoas brancas.
Mas, quem é reacionário não vê nenhum tipo de problema em considerar que a população negra é inferior, que índio não é gente. Isso é construído na história brasileira. Dá para entender, infelizmente, porque as pessoas pensam desse jeito, e porque é possível que representantes máximos do poder, da organização administrativa brasileira, coadunem com isso. É o que estamos vivendo hoje. É muito mais do que um “deixa pra lá”. São projetos de nação construídos com base no racismo. O racismo é a tônica, o chão no qual esses projetos vão se erguendo. E isso nunca foi efetivamente questionado em nenhum governo. Porque uma coisa é pensar em uma inserção um pouco menos desigual da população negra. Outra coisa é a gente compreender o peso do racismo na nossa história e atuar na contramão desse movimento. Isso ainda é inédito no Brasil do ponto de vista do estado nacional.
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“A ideia de brasilidade passa a projetar a branquitude como a única saída possível. É um golpe de mestre do Estado […] que faz com que sejamos herdeiros dessa concepção que permite, de certa forma, uma entrada e contribuições positivas das populações negra e indígena, da mestiçagem como grande característica, mas que coloca o projeto nacional em uma ideia de uma nação não apenas administrada, mas que se entenda dentro dos pressupostos de existência das pessoas brancas”
Existe algum processo abolicionista, em algum lugar do mundo, que tenha de fato promovido uma reparação justa?
Acho que infelizmente não. Temos um olhar para a abolição que parte de um certo anacronismo que é entender a liberdade a partir da nossa experiência no século 21. Isso faz com que lancemos para os abolicionistas uma visão de mundo que muitas vezes eles nem tinham. Os abolicionistas, sobretudo os brancos, eram, em sua maioria, muito racistas. Não são homens que estão defendendo a igualdade entre negros e brancos, e sim homens brancos defendendo o fim da escravidão. São coisas diferentes.
O movimento abolicionista é complexo porque precisamos entendê-lo também com a participação de inúmeros agentes negros. No caso do Brasil estamos caminhando para o reconhecimento de forte protagonista de abolicionistas negros devido a pesquisas muito bem feitas, mas para a maioria da população a imagem dessas pessoas ainda é de figuras brancas, como Joaquim Nabuco e Ruy Barbosa, alçadas ao panteão brasileiro. Eles não estão preocupados com a igualdade racial. Isso não é uma pauta da vida deles. Eles querem acabar com a instituição escravista, essa mancha no Brasil.
A mesma coisa vale para os EUA, para Cuba, para várias sociedades africanas que passaram pelo processo de abolição. Por isso, precisamos desvincular a abolição da luta por igualdade racial. Elas não são a mesma coisa. Claro que dentro desse movimento abolicionista existiam figuras brancas que acreditavam nessa igualdade. Mas, a maior parte delas não acreditava. Tem projetos de abolicionistas que queriam tirar a população negra daqui. Nos EUA isso ganha contornos mais radicais, porque eles compram a Libéria e fazem um projeto efetivo de retirada. O Brasil vai pensar essa retirada de maneira mais diluída, homeopática, ao longo dos anos, por meio do processo de embranquecimento.
A abolição não é um processo de luta antirracista. Enquanto acreditarmos nisso não vamos entender porque esses processos abolicionistas não garantiram a equidade de direito entre os negros e brancos.
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A devastadora maioria de pessoas assassinadas anualmente no Brasil é negra. A pandemia matou muito mais negros e pobres. Nós chamamos o presidente de genocida, mas a verdade é que toda nossa nação é, de certa maneira, genocida, correto?
Com certeza. É que agora é mais fácil de direcionar para uma pessoa só. Porque agora é abertamente. Temos um grupo de pessoas com muito poder no Brasil que não têm nenhum problema em realizar políticas abertas de genocídio. Mas nem mesmo quando tivemos governos progressistas houve uma revisão do treinamento dado à Polícia Militar.
A PM vive uma longa duração da história do racismo. É uma instituição criada em 1808 cuja principal função no Rio de Janeiro capital era aprisionar escravizados. E escravizado é gente preta. A lógica de funcionamento da Polícia Militar nunca foi pauta de uma revisão efetiva do Estado nacional. Isso sim seria uma ação antirracista, uma ação que pretende promover uma equidade racial. Promover que a instituição que mais mata negros propositadamente – ou como parte de ações – reveja seu papel. Isso também vale para o SUS, onde temos o maior índice de mulheres negras morrendo no parto porque existe essa ideia de que elas são mais fortes e, consequentemente, não precisam de tanta anestesia na hora do parto, seja no parto normal ou na cesária.
Nunca se sentou no Brasil, efetivamente, para desmontar essa estrutura racista. A cota é fundamental porque faz com que algumas gerações que estariam preteridas de ocupar espaços de privilégio, como a universidade pública, possam estar neles e, consequentemente, comecem a pautar outras discussões, mostrando que não dá para entender o Brasil só com as perguntas feitas por homens e mulheres brancos que não conseguem entender que são frutos do privilégio causado pelo racismo. Não conseguem porque a estrutura é feita para não conseguir. Essa é a grande sacada, a parte perfeita do crime.
É fundamental que essas ações afirmativas tenham acontecido, mas por si só não são suficientes para mudar o cenário. Porque da mesma forma que temos o aumento da inserção das populações negras nas universidades públicas, também temos o aumento da mortandade desses mesmos jovens pela polícia. Ou entram na faculdade ou são assassinados. Do ponto de vista estrutural, o Estado brasileiro ainda não fez aceno para nenhuma mudança efetiva.
“A cota é fundamental porque faz com que algumas gerações que estariam preteridas de ocupar espaços de privilégio, como a universidade pública, possam estar neles e, consequentemente, comecem a pautar outras discussões, mostrando que não dá para entender o Brasil só com as perguntas feitas por homens e mulheres brancos que não conseguem entender que são frutos do privilégio causado pelo racismo”
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Você fala em artigo na Serrote que a primeira iniciativa que devemos tomar para superar o racismo é reconhecer que ainda somos um navio negreiro. Outras pessoas com quem conversei falam sobre termos um carrego coletivo, quase um karma espiritual das violências que cometemos. Como superar o racismo agora que estamos no momento mais fragmentado e fascista de nossa história?
Acho que são duas camadas de resposta. Essa luta já é travada há muitos anos. Perceber que as lutas dos movimentos negro e indígena existem é uma forma de entender como o racismo chega em você. Porque se não você entende isso, significa que ainda está operando dentro da lógica racista. A história do Brasil é ao mesmo tempo uma história de racismo e uma história de luta contra o racismo. A diferença é que agora a população mais progressista está se entendendo como parte desse problema.
O racismo não é só problema do negro, e portanto não cabe apenas aos negros lutarem contra. O racismo é um sistema político que cria lugares sociais de privilégio e de discriminação. Então, as pessoas que usufruem um lugar de privilégio precisam entender isso. Uma forma é justamente olhar para trás e ver que existe uma luta enorme já sendo feita. E que parte positiva do que somos é devedora dessa luta. Acho que essa é um dos primeiros movimentos.
E, além disso, acho que é preciso fazer uma autoanálise, se levar um pouco pro divã pra tentar entender. Porque, por mais desesperador que possa parecer, eles são 30% e nós somos 70%. Acredito que dentro desses 70% é possível garantir uma série de mudanças importantes e transformações efetivas. Mas é preciso que parte dessas pessoas que estão acomodadas por essa estrutura racial comecem a se questionar.
Sempre acho que a literatura é uma boa maneira de promover mudanças. Também acho é preciso racializar todos os lugares, sua família, seus amigos, as pessoas com quem você se relaciona amorosamente. Você só namorou pessoas brancas? Por que isso aconteceu se a maioria da população brasileira é negra? Talvez eu viva em uma parte da sociedade que só conviva entre brancos. E, por que isso acontece?
São várias camadas de ação. Tem que haver ações individuais, que se criar vínculos com ações coletivas que já existem, e temos que exigir que o próximo governo – porque esse podemos esquecer – coloque isso como principal pauta. Porque o Brasil não terá uma experiência republicana e democrática efetiva enquanto o racismo tiver esse tamanho. Não sei se vamos chegar em um momento da humanidade em que não haja racismo, mas dá para ser bem melhor do que hoje. Essa tem que ser a tônica de qualquer governo que acredite em uma experiência democrática.
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Durante os Jogos Olímpicos, o jogador de futebol Paulinho comemorou um gol fazendo uma saudação a Oxóssi, um respiro a esse fundamentalismo que ajudou o governo a espalhar negação em relação ao vírus. De que maneira a espiritualidade e as culturas ancestrais podem ser resgatadas e auxiliarem na quebra do racismo?
Finalmente, né?! Que coisa maravilhosa! Tem uma coisa que gostaria de compreender, como cientista social, o que alimenta esse fundamentalismo. Tem um número expressivo da população negra encaixado nesse sistema. O racismo também está alimentando essa forma mais… não sei nem como classificar [risos]… mais fundamentalista mesmo de espiritualidade.
Não quero ficar julgando o fundamentalismo porque em muitos casos ele é a salvação para muita gente, porque nossa sociedade é muito desigual. É muito, muito desigual. Não sabemos por onde passa a possibilidade de se sentir pertencente a algo. Acho que é nessa combinação de desigualdade, racismo e da necessidade que as pessoas têm de ser parte de um grupo que esse fundamentalismo funciona, infelizmente.
Então, precisamos entender como ele funciona para poder disputar ali junto. Porque essa disputa estamos perdendo. Está muito vinculado ao racismo, mas precisamos compreender por que está acontecendo, como está acontecendo, quem são essas pessoas, quais são as condições de vida elas têm, que tipo de perspectiva o Brasil oferece para esses brasileiros, o que essas pessoas entendem ser o brasileiro. Tudo isso está em questão, em uma construção constante.
Eu proporia um exame, uma análise, e não um diálogo tão próximo como já aconteceu em outros governos progressistas.
Em relação ao Paulinho, o gesto foi muito legal por mostrar que existe. Porque estamos há não sei quanto tempo vendo aquele “agradeço a Deus”, virou uma coisa… Me lembro da Copa de 1994 e era samba, pagode, outra coisa. Era outra dinâmica da Seleção. Ela foi mudando, refletindo a origem e as escolhas desses jogadores, muitos deles neopentecostais. Não é só importante para mostrar que existem outras possibilidades de relações com o sagrado, mas também para reforçar para as pessoas que já professam essas religiões, que já se identificam, que elas devem estar nesses lugares, que não podemos mais temer acreditar naquilo que acreditamos, ou no que se acredita.
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Ao fazer isso, ele coloca uma disputa muito interessante, inclusive para que os debates sobre intolerância religiosa sejam pautados. Porque o Brasil tem preconceito com as religiões de matriz africana desde o dia 1, né? Não é nenhuma novidade. Mas, claro que isso foi mudando, não foi da mesma forma ao longo do tempo. Mas estávamos vendo uma prevalência dessas perspectivas neopentecostais. Acho que o que o Paulinho faz é lembrar que o Brasil é muito diverso, que o Brasil é um pouquinho de África, é negro, é indígena. Ele está ampliando a própria ideia de Brasil fazendo isso. É bem forte isso, eu gostei bastante.
“Acho que o que o Paulinho faz é lembrar que o Brasil é muito diverso, que o Brasil é um pouquinho de África, é negro, é indígena. Ele está ampliando a própria ideia de Brasil fazendo isso. É bem forte isso, eu gostei bastante”
Sobre ancestralidade, você acredita que haverá no Brasil uma nova geração que começará a buscar as histórias dos povos originários africanos, suas histórias de ascendência, tentando iluminar aquelas culturas apagadas nas travessias atlânticas, ou ainda estamos muito presos à ilusão dessa nação brasileira embranquecida?
Isso se dá há muito tempo dentro das populações negras, mesmo que seja uma reconstrução de algumas identidades um pouco inventadas, porque não temos como saber especificamente as origens da nossa ancestralidade. Em tese tem como deixar isso um pouco mais preciso, com os testes genéticos. Dá para fazer uma série de caminhos, mas, antes, tem tanta coisa para ser feita! Precisamos entender mais sobre os povos africanos, o que é o continente africano, antes de entender efetivamente se eu vim de uma aldeia Bantu, Sao ou Jeje. Para mim, até faz sentido do ponto de vista do indivíduo. Mas, enquanto nação, precisamos enfrentar todo o preconceito que existe pelo fato de que a maior parte da população brasileira é negra e oriunda do continente africano.
Tem uma camada ainda muito grossa antes de chegar nessas questões que, claro, são fundamentais e importam, mas precisamos nos refazer diante de nossas origens, positivá-las e compreendê-las pela pluralidade, desmistificar um pouco essa ideia de África como se ela fosse um território único, de entender que é um lugar dinâmico, com um histórico, com sujeitos distintos, disputadas… Temos um caminho longo.
Você já tem alguns livros publicados e, ainda esse ano, lança pela Todavia “Uma Breve História do Racismo no Brasil”. Pode me falar mais sobre a obra?
Olha, to aqui no desespero para terminar esse livro [risos]. Porque escrever um livro em uma pandemia com dois filhos pequenos está sendo tenso! [risos]
A ideia é justamente revisitar a história do Brasil a partir da perspectiva de uma nação que se constrói a partir do racismo e ao mesmo tempo constrói outras formas de racismo ao longo do tempo, privilegiando não as contra-respostas a isso, ações de resistência indígena e negra, e sim entendendo como esse jogo político se deu. Na verdade, o objetivo do livro é compreender a quem interessava que o Brasil fosse racista e porquê.
Vai estar na biblioteca da Fundação Palmares? [risos]
De jeito nenhum! Pelo menos não por enquanto! [risos] Talvez daqui uns dois ou três anos. Mas isso que está aí vai mudar. O Brasil não sustenta isso muito tempo, não. Pela nossa dinâmica histórica logo vamos ter um sopro.
__ As ilustrações que acompanham esta entrevista são de Gustavo Nascimento. Saiba mais sobre seu trabalho aqui.
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