rande parte das mulheres da família da profissional de educação física Thais Memo tem endometriose – distúrbio no qual o endométrio cresce para fora do útero, causando cólicas constantes, fluxo menstrual intenso e infertilidade. Diagnosticada com a doença ainda adolescente, o anticoncepcional foi a única intervenção sugerida pelos médicos. No entanto, mesmo seguindo o tratamento à risca, as dores aumentaram ainda mais com o passar do tempo, até que ela se cansou e foi em busca de métodos alternativos para aliviar os sintomas.
Foi nesse momento que a jovem que encontrou o termo “ginecologia natural” via internet e se interessou pelo assunto. Depois de conversar com uma rede de mulheres que já haviam passado pela mesma situação, Thais entendeu que se curar significava mudar completamente o estilo de vida. “Eu parei de tomar os hormônios, comecei a fazer cursos para entender meu próprio ciclo menstrual e me consultei com uma raizeira. Aí, elaborei um método baseado na dieta sem açúcar, exercícios físicos e plantas medicinais”, relata. “Após dois anos tomando esses cuidados, tive o primeiro ciclo sem cólica. Hoje, estou curada e não tenho sinal algum da doença”.
A ginecologia natural, apesar de nova, é uma corrente de pensamento que propõe o resgate de saberes das mulheres ancestrais relacionados à saúde de pessoas com útero. Um exemplo disso é o uso daqueles métodos de cura populares que não têm comprovação científica, mas que funcionam na maioria dos casos – como o banho de assento com ervas, por exemplo, comumente usado para aliviar as coceiras vaginais. No entanto, para além de medicamentos fitoterápicos e receitas caseiras, a ideologia parte do pressuposto de que as pessoas com útero devem conhecer seu próprio corpo e ter consciência da ciclicidade para que possam ter autonomia sobre si e consigam identificar quando há algo de errado. Além disso, a prática sugere o cuidado integral do indivíduo, levando em consideração não só as patologias, mas também a alimentação, o estilo de vida, as emoções e as crenças espirituais.
Essas ideias se consolidaram como movimento sociocultural no ano de 2009, quando a pesquisadora chilena Pabla San Martín criou ações para discutir a violência obstétrica com distribuições de zines e rodas de conversa entre mulheres. Percebendo a falta de materiais acessíveis sobre esse campo, Pabla realizou uma série de viagens pela América Latina, entendendo melhor a medicina dos povos tradicionais e compilando esses saberes em publicações independentes. O projeto, que ficou conhecido como Ginecosofia, chegou ao Brasil em 2018 com o livro Manual de introdução à Ginecologia Natural, uma espécie de manifesto pela retomada do controle dos corpos com vagina.
“Eu vejo muitas mulheres com raiva da menstruação e de seus corpos, sem entender como funcionamos de verdade. O manual traz informações para que elas consigam mudar essa relação porque, quando a gente se conhece, ocorre uma transformação muito forte dessa percepção”
Liz Tibau
“Eu vejo muitas mulheres com raiva da menstruação e de seus corpos, sem entender como funcionamos de verdade. O manual traz informações para que elas consigam mudar essa relação porque, quando a gente se conhece, ocorre uma transformação muito forte dessa percepção”, afirma Liz Tibau, responsável por trazer a edição ao Brasil. “Ele é um reencontro com um passado histórico que explica como a medicina se apropriou de nós. Essa visão envolve não só a saúde, mas também a política e a sociedade”.
Já o reconhecimento do movimento como especialidade médica veio com o curso de pós-graduação em ginecologia natural da Escola Shen, referência em medicina chinesa, no Recife. Lançada em 2020, a formação é a primeira do tipo Latu Sensu no Brasil, e abrange aulas sobre arquétipos femininos, psicossomática e fertilidade. Para Maiana Gomes, coordenadora e idealizadora do curso, legitimar esse conhecimento é um ato revolucionário. “Passamos muito tempo com uma polarização do conhecimento, dividindo os saberes entre tecnicista e tradicional, mas isso não é positivo. O que fizemos é a junção desses dois caminhos, colocando a medicina normativa no lugar dela, que é servir as pessoas”.
A diversidade do conteúdo é voltada para a importância das práticas integrativas, que podem influenciar o processo de cura dos pacientes. “No pensamento biomédico, uma infecção consiste em uma invasão de algo externo, por exemplo: a minha imunidade baixou, as bactérias se proliferaram e eu preciso trazer um remédio para curar isso”, conta Gomes. “Quando somamos esses conhecimentos, entendemos que a vulva e a vagina são lugares que falam de padrões emocionais que têm a ver com a sexualidade”.
No consultório de quem segue a ginecologia natural o atendimento é diferente do padrão, já que há um rompimento com a hierarquia entre médico e paciente. “Normalmente, na faculdade de medicina, aprendemos a começar a nossa entrevista clínica pela patologia. Porém, ela em si fala pouco sobre aquela pessoa. Assim, quando ela termina de se apresentar, partimos para o entendimento daquele ser como um todo”, explica Berta Brunet, ginecologista formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Falamos desde a primeira menstruação até sua rotina atual, reconhecendo aquele indivíduo como único a fim de acolhê-lo e otimizar seu plano terapêutico”. Segundo a especialista, o atendimento dura, em média, duas horas e meia e é baseado no conceito de slow medicine, o qual prioriza o tempo de escuta de cada um ao invés da demanda dos médicos.
“Normalmente, na faculdade de medicina, aprendemos a começar a nossa entrevista clínica pela patologia. Porém, ela em si fala pouco sobre aquela pessoa. Assim, quando ela termina de se apresentar, partimos para o entendimento daquele ser como um todo”
Berta Brunet, ginecologista
O plano de cura é horizontal e baseado na corresponsabilização. “Sempre proponho um leque de soluções para que a mulher escolha qual é a que ela se sente mais confortável em seguir”, afirma Brunet. Ainda é possível que, em certos casos, o tratamento possa ser livre de fármacos. “Sempre que vamos utilizar algo no corpo humano que ainda não há estudos clínicos, mas que as mulheres usam e sabem que funcionam empiricamente, precisamos ser muito prudentes. Não é porque é natural que não pode causar malefícios”. É o caso do óvulo de alho, usado em casos de candidíase – infecção causada pelo pelo fungo Candida. Segundo a ginecologista, se a manipulação não for realizada de forma correta, pode causar queimaduras na mucosa vaginal. “Existem alternativas que podem ser recomendadas de acordo com a trajetória e a segurança de cada médico. Porém, se apenas trocarmos o fluconazol por uma erva, sem levar em conta a história de cada paciente, acabamos cometendo os mesmos erros do tratamento sintomático e caindo em efeitos colaterais que qualquer remédio pode ter”.
A empreendedora Julia Morais pesquisa de forma autônoma sobre o assunto e repassa as informações em sua conta do Instagram. Lá ela também vende absorventes de pano, uma alternativa para quem quer fugir dos químicos que os produtos descartáveis contém. Ela conta que a experiência de ir a uma ginecologista natural é única: “Quando fui pela primeira vez, fiquei muito feliz em ver meu colo do útero, os ovários e os folículos que estavam se formando. Foi um momento de troca no qual eu me senti ouvida”, diz. “Repassar esse conhecimento é importante pois ele nos é negado o tempo todo, principalmente para as mulheres negras e periféricas”.
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