e Ana Frango Elétrico fosse uma pintura, certamente seria do tipo abstrato. A artista de 22 anos define seus álbuns por cores. Mormaço Queima, lançado em 2016, “é mais saturado, com bastante vermelho e amarelo”, enquanto Little Eletric Chicken Heart, de 2019, “é azul escuro”. Quando fala, também, não é incomum a sobreposição de frases rápidas que nem sempre terminam ou a interrupção de uma ideia aparentemente contínua por um “esqueci, o que eu estava falando mesmo?”
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Sobre seu pai, que é professor e artista plástico, ela diz que é “muito isso: terra, madeira e formas.” Isso porque ela se recorda, desde pequena, dele trabalhando com gesso, bronze e uma série de outros materiais. “Muitas das minhas memórias de cheiro vêm daí. Amo cheiro de madeira, de loja de construção, tinta e terebentina”, lembra Ana, que chegou a cursar dois anos de pintura na faculdade de Belas Artes antes de assumir a música como profissão.
“Todo mundo tinha muita certeza de que era uma mistura do The Police com alguma outra coisa que eu nem ouvia, ou com certeza Rita Lee com Jorge Ben ou com certeza The Smiths com Nirvana. Acho que era algo muito cru e permitia isso, mas me irritava também. Então tinha algo de: não é nada, deixa eu fazer minha parada”
Ana Frango Elétrico
Mas esse pensamento pouco linear está longe de refletir no alcance da sua arte, para a qual Ana tem planos bastante concretos: quer não só continuar produzindo – e muito – como também atingir o maior número de pessoas. Durante o processo de produção de Little Eletric Chicken Heart – abreviado para LECH –, ela costumava chegar na gravação dizendo um “vamos lá, é Grammy, Japão”. A indicação ao Grammy Latino, que poderia ser vista à época como um sonho distante, não demorou para se tornar realidade. No fim de setembro, a lista de indicados incluía Elza Soares, Emicida, Céu, Letrux e Ana Frango Elétrico, com LECH concorrendo na categoria Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa. “Agora vou chamar outra coisa. Era brincadeira, mas verdade também. A palavra é algo muito forte”, diz Ana.
O disco, segundo a cantora, foi realizado também como uma afirmação, uma espécie de resposta para ela mesma e também para os outros. “Ficava querendo provar alguma coisa, mas acho que não tenho que provar nada”, conta. Quando começou a se apresentar como Ana Frango, ela lembra que não havia ninguém que não tivesse algo a falar sobre seu trabalho. “Todo mundo tinha muita certeza, de que era uma mistura do The Police com alguma outra coisa que eu nem ouvia, ou com certeza Rita Lee com Jorge Ben ou com certeza The Smiths com Nirvana”, diz. “Acho que era algo muito cru e permitia isso, mas me irritava também. Então tinha algo de: não é nada, deixa eu fazer minha parada”.
Mas enquanto Mormaço começou a ser gestado sem que Ana soubesse aonde o álbum ia parar, o LECH já veio com começo, meio e fim. “Acho que o primeiro disco vai ser sempre o primeiro disco, com 16, 20, 30, 50 anos. Será sempre o primeiro de uma coisa que você ainda tem muito para aprender”, explica. Mesmo assim, para fugir dos rótulos, Mormaço Queima saiu do forno com a definição de que era um álbum “bossa-pop-rock decadente com pinceladas de punk”. Uma espécie de tradução da “teoria do suco verde” que Ana Frango acabou desenvolvendo. A ideia se baseia no fato de que, quando você mistura suco de beterraba com laranja, você tem um suco de beterraba com laranja, mas à medida em que acrescenta couve, maça, gengibre, vira uma mistura de tudo: o suco verde.
Com uma carreira recente, mas em contínua ascensão, Ana já se diz cansada de responder sempre a mesma pergunta sobre o seu nome artístico, além de incomodada ao ver que muitas das entrevistas acabam com versões não tão fiéis sobre o que chegou a contar. A respeito do seu nome, há onde se diga que a escolha foi porque seu avô não sabia pronunciá-lo – o que seria impossível, segundo Ana, por ser o seu próprio sobrenome. “É dessas coisas que a gente fala, cada um interpreta de um jeito e quando a gente vê não tem nada a ver com o que falou”, resume, acrescentando que começou a utilizar Frango Elétrico no picho antes de incluir o Ana e assumi-lo de vez. “Em nenhum lugar falavam meu nome certo. Me chamavam muito de Ana Farinha Espaguete, ou [o sobrenome Fainguelernt] virava Fahrenheit. Entre falarem errado, prefiro Frango Elétrico”, conta. “No início achei que seria só para um disco, mas fui me apropriando e hoje é Ana Frango Elétrico. É também uma questão poética e de liberdade de gênero.”
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Entre as informações dissonantes, Ana também cita o fato de que, no Wikipédia, a data do seu aniversário aparece como 9 de dezembro em vez de 19 e confessa que lhe causa estranheza ver ali “que tocava piano clássico em recitais”. “Parece que eu entrei para a orquestra”, diz. Os recitais, na verdade, eram os que fazia em casa, tendo como convidados a prima Tati, a tia Mônica e o tio Gabriel. Do piano, inclusive, ela só se reaproximou agora. Quando criança, as aulas eram quase uma imposição dos pais, que fazia a contragosto num período em que queria mesmo jogar futebol, soltar pipa, brincar de bola de gude e caçar aranha na praça em frente da casa onde morava, no bairro de Santa Teresa. O interesse pela música chegou somente um pouco mais tarde e se deve também às aulas de guitarra com Aloysio Neves, que foi quem primeiro gravou uma composição de Ana para que ela pudesse ouvir. “Tinha feito uma música superboba e foi a primeira vez que me colocaram para escutar o que eu estava fazendo. Lembro de ficar muito angustiada com essa coisa de ouvir a própria voz.”
“Estava no terceiro ano, tive mononucleose, pensei que ia morrer, mas hoje vejo que era tudo psicossomático e não passava de medo e desejo. Tinha uma força criativa muito forte e nunca pintei tanto como naquele ano”
Ana Frango Elétrico
Quando começou a compor, Ana lembra que o que queria mesmo era fazer pintura: “Era um pensamento muito das artes plásticas”, explica. Nesse início, aos 16 anos, ela vivia suas primeiras paixões que, como recorda, não estavam dissociadas de uma fase hipocondríaca. “Estava no terceiro ano, tive mononucleose, pensei que ia morrer, mas hoje vejo que era tudo psicossomático e não passava de medo e desejo”, diz. “Tinha uma força criativa muito forte e nunca pintei tanto como naquele ano.” Suas composições, também, eram feitas por um processo quase dadaísta, partindo de colagens de anotações.
Hoje, em contrapartida, para a poesia e para as artes visuais, ela quer imprimir o alcance da música. Ao lançar seu primeiro livro de poesias, Escoliose: paralelismo miúdo, que vem recheado também de gravuras e ilustrações suas, ela explica querer fugir da ideia da pintura como uma obra exclusiva, destinada a um único colecionador, e imagina novas investidas em formatos que possam ser adquiridos pelo maior número de pessoas. “O livro é bastante sobre isso, uma tentativa de deixar a poesia mais pop mesmo”.
Agora, enquanto espera a cerimônia de premiação do Grammy Latino, que acontece em novembro, Ana já se prepara para gravar um disco em Nova York no ano que vem a convite do selo JMI Recordings. “Gosto muito de gravar, pretendo gravar muito. Mesmo quando não tiver músicas, quero fazer regravações”, diz. “Quero levar a música a sério e fazer disso minha profissão. Meu sonho é continuar tocando. Também gostaria de ir para o Japão”.