primeira vez que eu ouvi o nome de Hélio Menezes foi durante o ciclo de exposições Afro-Atlânticas, do MASP – Museu de Arte de São Paulo, em 2018. Eu ainda não sabia direito quem ele era exatamente, mas já imaginava ser alguém de muita potência, já que foi o curador convidado para preparar essa mostra tão fantástica. Logo depois disso, no Festival da Imagem Valongo, que acontece em Santos, no litoral paulista, lembro de ouvir e ver o Hélio pela primeira vez em um palco.
Ele falava com uma voz calma, um sotaque baiano leve e com muita firmeza sobre a importância da curadoria de arte feita por corpos negros. Ficou em mim, a partir desses encontros, a vontade imensa de conhecê-lo. Então, quando pedi para entrevistá-lo, e a Elástica topou em me dar esse espaço, parece que estou unindo em mim pela primeira vez aquela pessoa importante do MASP com o rapaz de sorriso lindo e falas importantes que vi em Santos. Além disso, tive a oportunidade de fotografá-lo (ele me disse que fui a primeira fotógrafa a fazer um retrato “oficial” dele) dentro de sua casa, em contato com o universo do Hélio: seus quadros, seus livros, seu sofá, seu aconchego.
Agora, como de praxe, conto para vocês que Hélio Menezes também é antropólogo, internacionalista e curador de arte responsável por muitas mostras e exposições importantes aqui do Brasil – hoje, ele é o curador do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Nessa conversa, Hélio fala de sua trajetória e da sua relação com a ancestralidade de sua família que o acompanha desde sempre: “Nasci e cresci em Salvador, com o contato sagrado de antepassados, entidades, orixás, caboclos e guias, que desciam e descem ainda hoje, para se comunicar através do corpo de algumas pessoas de minha família.”
Pensando na sua própria trajetória, quem é o Hélio? Como ele se construiu?
Olha, eu não consigo falar de mim sem falar primeiro que meu nome é Hélio Santos Menezes Neto. E que eu sou filho de Sônia e Hélio. Neto de Teresa, José, Marlene e de outro Hélio. Então, eu sou o terceiro Hélio Menezes na linhagem da família. Com um pai e um avô advogados, eu fui para um outro caminho. Cresci com uma espécie de destino quase traçado, ou pelo menos esperado, em ser advogado. Mas achei que não era por ali o meu ofício. Nasci e cresci em Salvador, com o contato sagrado de antepassados, entidades, orixás, caboclos e guias, que desciam e descem ainda hoje, para se comunicar através do corpo de algumas pessoas de minha família.
Como foi essa mudança de rota profissional?
Quando eu vim prestar vestibular para Relações Internacionais na USP, mudei de cidade, saí de Salvador e vim pra São Paulo, onde moro até hoje. Lá se vão quinze anos. Isso era, e ainda é, um projeto individual, mas também é um projeto familiar. Sou fruto de um investimento contínuo, de muito afeto, e também de muito sacrifício, desde a mais pequena idade. Na minha educação, na possibilidade de aprender outras línguas, de ter acesso a livros, ser incentivado a isso, de modo que eu fui o primeiro da minha família a entrar em um curso de pós-graduação. Chegando em São Paulo, a minha vida se transformou em várias dimensões. No meu último ano de faculdade, comecei a estagiar para o Fórum Social Mundial. Após seis meses depois de concluir meu curso, fui contratado definitivamente pelo Fórum. Eu ainda era muito jovem, e assumi a coordenação do escritório mundial deles. E foi aí que comecei a viajar e descobrir lugares que, ainda hoje, acho que eu não iria por outro meio. Tipo Curdistão, Bangladesh, Marrocos, Tunísia, até eu ir morar no Senegal, também por conta do trabalho. Ficava indo e vindo, até que eu me mudei de vez pra lá para ajudar a construir o Fórum Social Mundial.
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Qual dessas experiências mais te marcou?
Eu fui muito impactado por Dacar, e pela sua produção artística e cultural. Em Dacar, tem um mercado chamado Marché Kermel, e lá tem um sujeito chamado Pacor. Espero que ele ainda esteja lá. Pacor tem um muro que se chama Mur de Pacor. Nesse muro, ele exibe e vende estatuária talhada em madeira africana de várias partes da África, não somente da África Ocidental. Me despertou muito o que eu vi nessa feira – eu trouxe duas de lá na mala. Uma delas é a de Xangô, que é idêntica a uma que tem no quarto do santo, que é o local da prática domiciliar de culto às almas e de culto aos ancestrais, entidades, caboclos e orixás que minha vó Teresa pratica. Lá no quarto tem esse mesmo Xangô e aquilo me tocou. Eu precisava entender como aquela forma saiu da África Ocidental, atravessou quatrocentos anos de opressão colonial escravista e racista, e continua tal e qual dos dois lados do Atlântico. E esse foi o começo de uma longa pesquisa que me levou e muitas transformações até as “Histórias Afro-Atlânticas”.
Sua ancestralidade está viva dentro de você. E você me disse que ela é cultivada, e é uma tradição da sua família que já vem de séculos. Me fala um pouco sobre isso?
Para mim, sempre foi uma coisa muito próxima, e eu sei que esses relatos que começam com “sempre”, quase sempre trazem uma dose muito grande de romantização. Mas, permita-me te contar uma história para tentar justificar esse “sempre”. Primeiro porque eu sou nascido em 30 de setembro, com muita proximidade ao dia de Cosme e Damião. E, desde que eu sou pequeno, os meus aniversários se confundem com a promessa de um banquete para os Ibejis. Minhas festas são caruru, vatapá, xinxim de galinha, feijão fradinho, pipoca sem sal para Omolu. Quando eu tinha os meus 10 anos, lembro muito vivo em minha mente quando conheci o meu avô. Meu avô materno tinha morrido há alguns anos antes de eu nascer. Mas aí eu o conheci, quando ele veio em um encontro familiar religioso por meio do corpo de uma outra ancestral minha para conversar comigo. Entende? Eu conversei com meu avô por meio do corpo de uma outra pessoa de minha família, que é uma ancestral direta, fazendo intercessão para um ancestral também direto que eu não havia conhecido. Então, a minha ancestralidade é uma coisa do dia a dia, quando me pego passando café do mesmo jeito que minha mãe passa, que é o mesmo jeito que minha vó passa, e que ela conta que é do mesmo jeito que Isabel, que foi uma espécie de“ mãe preta”, passava. As relações raciais e de classe na Bahia são bem complexas. Isabel eu tenho nitidamente em minha memória. Esse modo de passar café não é meu, é o modo de família, que vai passando de geração a geração.
“Minha ancestralidade é uma coisa do dia a dia, quando me pego passando café do mesmo jeito que minha mãe passa, que é o mesmo jeito que minha vó passa, e que ela conta ser o mesmo jeito que Isabel, uma espécie de ‘mãe preta’, passava. As relações raciais e de classe na Bahia são bem complexas”
Como é esse jeito de passar café?
Você ferve a água e quando ela está naquele ponto que começa a subir, você joga o pó de café, desliga e mistura com a colher. E aí você vai passar aquele café no filtro de pano. Se você não tiver um filtro de pano, pode ser papel, mas não é o modo de passar café que pra mim quer dizer ancestralidade. A ancestralidade não é grande coisa. Claro que no plano conceitual teórico, sem dúvidas, mas aí podemos fazer uma tese inteira sobre como a ancestralidade atua a partir de tecnologias ancestrais que nos foram passadas de geração em geração para lidar com as adversidades que ainda temos hoje. De nossas técnicas de aquilombamento às nossas folhas de banho, nossas redes de proteção, aos nossos referenciais que foram deixados de estética preta. Tudo isso é tecnologia ancestral que atua na vida social de modo a nos inspirar, nos resguardar e a nos fortalecer. Mas se você me pergunta da ancestralidade do ponto de vista da primeira pergunta que você me fez sobre “quem é o Hélio?”, a minha ancestralidade é o modo como eu passo café.
Você se lembra da sua primeira memória?
Quando eu tinha doze anos, comecei a sentir os primeiros sintomas de uma enfermidade autoimune. E foi um momento de um impacto grande no começo na minha transição da infância para a adolescência. De modo que eu, durante muito tempo, apaguei ou bloqueei da minha cabeça memórias anteriores a essa idade. Ao longo dos anos, fui reconstruindo essas memórias a partir de fotografias, e de muita conversa em casa e com três amigas de infância que me foram fundamentais. A minha irmã também foi fundamental para rememorar histórias de nossa infância. Faço esse prólogo bem pessoal, na certeza da privacidade, porque para eu te contar uma primeira memória vai ser sempre uma memória inventada, nesse sentido de reconstruída. Uma delas é a que eu me vejo muito com a minha irmã, pequenos, na sala de TV do nosso primeiro apartamento no bairro do Rio Vermelho. A gente era muito moleque, de brincar, mas também éramos muito estudiosos. Eu me lembro de nós dois, pequenos, naquela salinha do Rio Vermelho em Salvador.
“De nossas técnicas de aquilombamento às nossas folhas de banho, nossas redes de proteção, aos nossos referenciais que foram deixados de estética preta. Tudo isso é tecnologia ancestral que atua na vida social de modo a nos inspirar, nos resguardar e a nos fortalecer”
Qual é o nome dela?
Camila. Camila é minha irmãzinha, ela é dois anos mais velha do que eu, mas parece mais nova. E é de uma sabedoria ímpar na minha vida.
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Fico pensando aqui sobre o que você falou de memórias inventadas. Qual é para você o poder dessa imaginação?
Eu acho que é algo curativo. No meu caso é curativo. Não ter memória ou ter dificuldade de acessá-la é algo que tira raízes. E fabular a sua própria história, reconstruir a sua memória é algo que dá chão. Eu penso que memória é sobretudo um balanço entre o que a gente quer esquecer, e aquilo que a gente quer guardar. Onde a gente fundamenta o nosso próprio pertencimento e identidade. À medida em que a gente vai revisitando ou reconstruindo as memórias, a partir dos fragmentos que a gente tem acesso, vamos redescobrindo quem somos, e o que colocamos fora do círculo da lembrança, mas que também constitui o universo da memória. Que só está no lugar do esquecimento temporariamente, até que você retoma, recria, revive, a partir dessa fabulação de memória. E entendo que talvez o seu caminho não era aquele pelo qual você está vendo, mas é isso que você está de alguma maneira recalcando, apagando e agora acessando novamente. Essa tem sido uma tecnologia ancestral, sobretudo entre pessoas pretas. Do ponto de vista pessoal, familiar, de parentesco e também social. Pessoas da minha geração com muita força conseguem retroceder a duas ou três gerações que lhe antecederam na família. Não dispomos de álbuns de fotografia antigos. Não sabemos os nomes e sobrenomes, as datas de nascimento dos nossos bisavós. De modo que reconstruir essa história que nos foi mutilada, cujo acesso nos é dificultado, não é tarefa fácil.
Empreender, sem dúvidas para aqueles que podem, tem fôlego e condições a esse empreendimento intelectual, de pesquisa analítica, de ir atrás de documentos e de fazer pesquisas históricas, e aplicar também a partir das histórias que temos, dos ensinamentos orais. Criar memórias com nossos avós, avôs e bisavôs. Eu tenho poucas, mas tenho algumas fotografias desse meu avô que eu comentei antes, não tenho registro de sua voz, a não ser o dia que ele se comunicou através do processo de incorporação. A partir da fotografia dele junto da conversa que tive com ele, junto das histórias que minha mãe conta, e as memórias da minha vó, eu o tenho. Eu não preciso de documento empoeirado nenhum para que ele possa existir ativamente em minha vida. Na ausência de documentos da história que nos foi tomada, a gente fabula. Essa fabulação é curativa do ponto de vista pessoal e coletivo. Porque, afinal de contas, quando se é uma pessoa racializada no Brasil, essa dupla dimensão da vida é uma fronteira muito tênue.
“Não ter memória ou ter dificuldade de acessá-la é algo que tira raízes. E fabular a sua própria história, reconstruir a sua memória é algo que dá chão. Penso que memória é sobretudo um balanço entre o que a gente quer esquecer e aquilo que a gente quer guardar”
Tem como pensar em uma relação direta entre esse imaginário e a política?
Para mim, isso é política com P maiúsculo a todo tempo, porque essas pessoas e essas vozes que reclamam por justiça – para usar uma expressão do José Fernando Peixoto, “essas vozes que voltam por incorporação reclamam por justiça”. Essas presenças que aparecem em sonhos, em relatos de família, esses ancestrais que a gente fabula, eles não estão nas galerias, pinacotecas, em museus, espaços de prestígios, na história da arte ou nos manuais de fotografia. O retrato do meu avô, os sorrisos das minhas avós, não estão nas paredes dos museus; tampouco vejo sorrisos parecidos com os delas nas paredes dos museus. Ir atrás dessas imagens, revivê-las, trazê-las ao nosso cotidiano e relembrar que há outras historias não contadas nos dá raizes, mas também imediatamente se torna faca afiada na luta politica por um novo imaginário, por uma nova narrativa visual, sobre o que é familia, sobre o que é ser negro, o que é ser baiano, o que é ser bicha, o que é ser candomblecista, ou umbandista, o que é ser várias outras coisas que se veem tão mal representadas em nossos espaços e publicações de prestígio sobre arte. Quando a gente vai em um museu e vê corpos negros reincidentemente apresentados dentro da chave do anonimato, da hipersexualidade, do trabalho escravo, da subalternidade, a gente não se identifica neles. Então, mergulhar nos registros da família, visuais ou imaginários, essa busca pessoal vira uma mola política imediata.
Pensando nesse momento que estamos, dessa pandemia, a pergunta sobre o futuro é latente. O que é urgente para você?
A coisa mais urgente se a gente quer continuar vivo nesse planeta é ouvirmos, aprendermos com aquelas e aqueles que vêm sobrevivendo ao fim do mundo há muito tempo. Ao fim dos seus mundos. A gente habita vários mundos, vários deles vêm acabando faz muito tempo, e várias pessoas vêm sobrevivendo a esses fins. Temos que recorrer e perguntar para eles, mesmo. Como as populações indígenas, apesar do genocídio, da fome, da doença, do garimpo, do apagamento epistêmico, seguem vivas? Como que os quilombolas e os terreiros de candomblé continuam vivos, apesar de mais de trezentos anos de escravismo, de colonialismo e mais cem anos de racismo institucional, de Estado e estrutural? Como eu posso chegar em Salvador e ainda ouvir Iorubá nas ruas? Como essas coisas sobreviveram aos fins de seus mundos? O mais urgente é perguntar sobre isso aos especialistas de fim de mundo. E eles não estão na academia. Se um dia a minha vó parar de rezar por mim, o que será de mim?
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O que é a palavra?
Palavra é instrumento. É criação de mundo, é transmissão de afeto, mas é faca amolada para quem quer me tirá-la de mim.
E o tempo?
O tempo é senhor de tudo. Nos precede, nos atravessará. Para mim, tempo também é uma coisa muito próxima, porque eu vejo tempo no Iroko. Tempo é um Deus. Gosto também de pensar o tempo com uma imagem que James Baldwin me ensinou, quando ele fala que o tempo é que nem o oceano. Posso pegar esse trecho para te ler?
Claro que sim.
Eu não vou encontrar o trecho aqui agora, mas a metáfora que ele faz está no O Quarto de Giovanni, que é um livro muito importante para mim. Entre o tempo e o oceano. Ele fala que, dentro do oceano, tem os peixes grandes e o peixes pequenos, e o tempo é a água que envolve todos eles. Dentro do oceano, os peixes grandes só querem saber de abocanhar os peixes pequenos, e os pequenos de tentar fugir dos grandes, e a água que cerca eles, é indiferente ao que se passa. Essa água é o tempo.
Qual é o livro que você acha que vai reler a vida inteira?
Difícil escolher um. Eu diria O Quarto de Giovanni, de James Baldwin, que foi o livro que eu mais reli. E foi uma explosão de exuberância dentro de mim quando fui convidado a posfacear a edição desse livro aqui no Brasil. Você pode imaginar como eu fiquei… Um outro livro que eu li quando tinha dezesseis anos, eu nunca voltei a ele, mas não preciso porque ele me mudou radicalmente, é o O Evangelho Segundo Jesus Cristo, do José Saramago. Ali, a educação cristã católica que eu recebi na escola se liquefez em absoluto. O poder da escrita como criação de um outra narrativa que contradiga aquela que o oficialato, o cânone, nos empurra goela abaixo, se fez possível com o Saramago, se fez materializado com esse livro. Para usar uma expressão do Baldwin, aquilo realizou em mim “transformações oceânicas”. Meu avô era muito malandro. Ele tinha uma estante com muitos livros, na minha imaginação de criança, ao menos. E eu sempre pedia livros emprestados para ele. Eu disse que queria esse livro, e ele disse que eu não tinha maturidade para lê-lo, então eu o peguei escondido. Só depois fui perceber que ele sabia de tudo, negou de propósito, porque sabia que aí é que ia pegar pra ler mesmo…
Você lembra de alguma música que já te fez chorar?
Sim. Algumas músicas me fazem chorar. Mas “Beira-mar”, de Gilberto Gil, é uma canção que sempre que toca, e eu não estou à beira do mar de Salvador, vai me fazer chorar.
E filme?
Pina, do Wim Wenders.
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Tem alguma imagem que você tenha visto e que mudou sua vida?
Vou ser fiel à primeira que me veio à mente. É uma tela de Sidney Amaral, que se chama “Mãe Preta ou a Fúria de Iansã”. Primeira vez que eu vi essa tela foi um “uau!”. Sem ela, eu não ousaria achar interessante ou viável ter a curadoria como ofício.
O que é a curadoria?
Essa pergunta rende uma tese. Eu penso curadoria sobretudo como pesquisa, fruto de um envolvimento profissional mas também pessoal, detido, com os artistas e os temas que você investiga.
“Eu penso curadoria sobretudo como pesquisa, fruto de um envolvimento profissional mas também pessoal, detido, com os artistas e os temas que você investiga”
Li uma entrevista sua onde você fala do uso da máscara e do celular como escudos no mundo de hoje, como se fossem extensões ciborgues nossas. Você tem medo da tecnologia?
Acho que tenho, porque sou um tanto analógico. Até aprendo rápido quando tenho que utilizar toda essa nova parafernalha que surgiu em tempos pandêmicos. Mas não tenho vontade de me digitalizar. Até essa relação com as redes sociais é muito nova para mim. Quando eu falo da gente ser “ciborgado”, estou me referindo ao Manifesto Ciborgue, de Donna Haraway. Esse texto é fundamental para mim. Eu, tendo uma doença autoimune, tenho a sustentação do meu corpo estruturada por um produto da indústria farmacêutica e por, inclusive, incursões metálicas no corpo. Nós somos ciborgues, na medida que vivo hoje e o meu celular se tornou uma espécie de extensão metonímica da minha mão. Eu trabalho com ele, eu me comunico com ele, estou falando com você através dele. Inclusive pensando que estamos em uma sociedade violenta, não ter um celular hoje pode ser um risco para alguém que é abordado na rua, que é um corpo alvo da mira de letalidade do Estado. Eu sou obrigado a me relacionar com ela, mas entendendo que somos todos ciborgues.
As imagens devem se ressignificar conforme o tempo? Por exemplo, imagens que explicitaram o racismo antigamente, podem servir, hoje, para denunciar o racismo?
Isso já vem acontecendo, à revelia da nossa vontade ou falta dela. Já é um gesto, sobretudo numa produção artística negra, indígena e dissidente de um modo geral. Nos últimos vinte anos, esse tem sido um mote frequente, de retomada, reavaliação, releitura, reanálise de imagens do passado, sobretudo de imagens do século XIX. O Brasil nos relegou uma produção muito grande de imagens fotográficas, iconográficas e em tela, de corpos negros, de corpos indígenas, em situações coloniais. Muitos artistas vem há algum tempo retomando estas imagens, criando novas em cima delas. A disputa política também se dá no cerceamento da circulação dessas imagens, e para cerceá-las é necessário criar alternativas a elas, por exemplo, nos nossos livros didáticos. Por que para falar do período da escravidão, se ilustra com imagens de tortura de corpos negros, mas não se traz imagens de quilombos?
O quilombo é uma realidade absolutamente inseparável de uma sociedade do escravismo. E como podemos reduzir a dimensão do sistema escravista à punição, mas não ao agenciamento negro, não à colaboração negra, não aos filósofos, os deuses, os laços de parentesco, de sociabilidade, as inovações estéticas que atravessaram o Atlântico? Olhar para esses sujeitos negros e indígenas como meras mãos-de-obra, não como criadores, é ceder à violência dessas imagens, que os reduz justamente a essa uni-dimensão da vida. Então, a necessidade de criar novas imagens e contextualizar essas antigas, quem sabe a ponto de torná-las obsoletas, a ponto de termos um volume de material que nos permita recontar nossa própria história. Essas imagens, um dia espero que elas se tornem objetos de interpelação de especialistas e que saiam das prateleiras dos mercados, que saiam das capas dos livros, que saiam dos quadros que enfeitam pousadas e cafés em nosso país.
“A disputa política também se dá no cerceamento da circulação dessas imagens, e para cerceá-las é necessário criar alternativas a elas, por exemplo, nos livros didáticos. Por que para falar da escravidão, se ilustra com imagens de tortura de corpos negros, mas não se traz imagens de quilombos?”
Como é ser um corpo negro dentro da curadoria e da arte?
Estou ainda descobrindo.
Às vezes você tem que fazer uma força extra? Isso te cansa?
A força extra está dada no começo de nossa trajetória, né? Se a gente não é quatro vezes melhor que o colega branco, a gente não é visto, ainda que saibamos igual ou mais. Então, fazer um esforço extra faz parte de um processo tão antigo quanto adoecedor de qualquer pessoa negra no Brasil que queira algum protagonismo, que ouse ter liberdade de pensamento e de atuação no meio acadêmico, no meio curatorial. Isso evidentemente me traz um cansaço, um cansaço à moda de Fernando Pessoa: “um supremíssimo cansaço, íssimo, íssimo, íssimo, cansaço…” Mas, ao mesmo tempo, hoje a gente vai aprendendo estratégias de como entrar, permanecer e transformar esses espaços de exclusão. Que hoje ainda são espaços legitimadores do campo da arte, mas de uma arte que está caducando. De uma arte que por não abrigar a pluralidade no horizonte do seu interesse e continuar mirando tal como se fez ao longo do século 19, na tentativa de uma arte brasileira que mimetizasse a Europa, que a replicasse, macaqueando o que vem de fora, fechando os olhos para a produção de pluralidades ditas marginais, ditas dissidentes, indígenas, negras, das mulheres, dos quilombolas. Esse campo da arte não me interessa, então pra mim estar nesses lugares é encontrar quem não compactua com reprodução de um lógica eurocêntrica e colonial. E que, assim, a gente possa abrir espaço para outros e outras, para que eles possam entrar nestas instituições e questioná-las. Nisso, o cansaço rapidamente se converte numa matéria-prima interessante de fermentação da mudança.
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Você disse que constrói seus sonhos junto com a sua família. Você está em um lugar que você já esperava ou as coisas foram fluindo?
Tem muito de acaso e tem muito de timing. Para usar palavras legíveis, eu entendo como caminhos traçados em diálogos com os meus guias e ancestrais. Eu jamais desenhei e jamais imaginei. Eu venho da cidade do Salvador, de uma família que não teve acesso e que não disponibilizou tanto acesso a esses meios formais da arte. Só depois, na adolescência. Então a minha arte sempre foi outra, era a arte que eu via acontecer diante de meus olhos na rua, nas imagens que eu vi daspequenas esculturas que estão nas casas das minhas avós, no quarto de santo. Então, quando você tem essa configuração de vida que é a minha, você não almeja e nem está no seu horizonte de possibilidades ser curador. Então não foi um projeto desenhado. Eu diria com muita certeza, eu sou fruto do meu tempo, e o meu tempo também tem me trazido os caminhos da vida.
“A força extra está dada no começo de nossa trajetória, né? Se a gente não é quatro vezes melhor que o colega branco, a gente não é visto, ainda que saibamos igual ou mais”
Você acredita em dom?
Definitivamente não, acredito em um cultivo de habilidades. Acredito em socialização que fornece os instrumentos e os degraus para se construir um lugar no mundo.
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As imagens que acompanham esta entrevista foram feitas por Pétala Lopes, veja mais do seu trabalho aqui.