Tome um tempo para si. Tire as crianças da sala. Sente-se confortavelmente. Se puder, sem pudor, deite-se. Sozinha ou acompanhada. Coloque um fone. Abra os primeiros botões da camisa. Ou o zíper que te aperta. Faça uma inspiração lenta, profunda. Inspire e dê o play. Desnude-se. Desvele-se. Deleite-se. Está no ar o primeiro capítulo dessa opereta serial sensorial sinestésica e intersemiótica.”
Recebi essa mensagem no celular no dia do lançamento de Afrodisíaca I, primeiro EP de uma série que vai culminar no próximo álbum da cantora, compositora e instrumentista Iara Rennó, previsto para setembro. O álbum é inspirado na poética do amor e da sexualidade – atributos de Afrodite – e reúne gravações de diferentes épocas criadas a partir de seu livro de poesia erótica (ou seria afrodisíaca?) chamado Língua Brasa Carne Flor (2015, Ed. Patuá).
Sigo as orientações que me foram passadas para uma “melhor experiência sonora” e aperto o play. Sou imediatamente atravessada por vozes profundas e ao mesmo tempo próximas, que parecem sair de dentro de mim. A primeira faixa se chama “Língua Brasa” e, nela, Negro Leo, Ava Rocha e Tetê Espíndola roçam, deslizam e atravessam meus poros, com graça e leveza. Então, inspira, aperta o play e vem comigo:
“Dois devassos
atrás dos prédios
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amassos
Mão nos meus peitos
e um dedo médio
Por baixo”
🎶 Língua Brasa – Iara Rennó
Em uma manhã invernal de sol, envolta por plantas e altas doses de vitamina D, Iara me conta sobre sua nova obra multidisciplinar que transa música e poesia com fotografia, videoarte e gastronomia. Afrodisíaca é o sexto registro fonográfico de sua carreira e tem participações de Camila Pitanga, Tulipa Ruiz, Ava Rocha, Anelis Assumpção, Fabrício Boliveira, Negro Leo, Arrigo Barnabé, Alice Ruiz e Arnaldo Antunes.
O que é Afrodisíaca?
É como o orgasmo da mulher: crescente. Em ondas. É um movimento. Um estado de espírito, um estado de conexão com a existência. Um movimento de estar vivo e de ter prazer. Sinto que é um estado que precisa ser invocado nesse momento em que vivemos, de tanto medo e morte.
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Como nasceu?
Foi nesse período de isolamento, quando eu mexi em gavetas e HDs antigos e encontrei áudios com poemas e sessões de estúdio inéditas. Quando vi, tudo era sobre amor e sexo. Percebi que esse movimento vem me acompanhando durante toda minha vida.
Você sempre foi bem resolvida com seu próprio prazer?
Não. Nem sempre me senti livre em relação a minha sexualidade. Isso é um caminho, uma conquista. Desde as primeiras experiências de castração, onde aprendi que tinha que esconder meu desejo ou então fazer escondido, até esse amadurecimento que vivo hoje, foi um longo processo. Teve sofrimento, teve relacionamento abusivo, até eu entender – pra mim mesma – que não era pecado, não era proibido. Até eu entender que sou eu que mando nesse corpo, que eu que tenho que ser seletiva, foi um longo processo.
“Nem sempre me senti livre em relação a minha sexualidade. Isso é um caminho, uma conquista. Desde as primeiras experiências de castração até esse amadurecimento que vivo hoje foi um longo processo”
Como esse amadurecimento se deu na sua carreira artística?
Na época do Dona Zica [banda formada em 2001 com Anelis Assumpção e Andreia Dias], por exemplo, a gente já era contra essa visão estigmatizada, estereotipada, deturpada da mulher, que é extremamente castradora. Lembro-me de fazer escolhas bem conscientes em relação às letras, de não ter muita música falando do eu-lírico romântico. E essa atitude era um tipo de couraça, porque eu sentia que precisava ser respeitada como compositora e instrumentista. A gente usava coturno no show… Eram pequenos símbolos, sabe? Era o cuidado que a gente tinha pra não ser objetificada. Por outro lado, você vai matando uma parte de você mesma. Sim, porque eu quero fazer topless na praia! Todas nós estamos sujeitas ao desejo. Suscetíveis ao desejo. Passíveis do desejo. E desejando hoje o próprio desejo.
Quando você começou a escrever poesia?
Comecei na infância, com uns oito anos. Fiz um caderno que eu tenho até hoje guardado. Se chama “Meu Caderno de Desenhos e Poemas”. E foi nessa época – na verdade, um pouco antes disso, por volta dos seis anos – que eu vivi algo que me conectou muito com a música “Tara”, que o (Negro) Leo escreveu: “Nem um poço de petróleo em chamas é uma imagem tão absoluta do psiquismo da criança que fui”. Lembro de ser muito “foguenta” na minha primeira infância. Tinha uma curiosidade muito grande. Nessa época, eu morava em Campo Grande. Uma vez, estava na casa de um amiguinho e rolou aquele momento “vamos tirar a calça?”, coisa de curiosidade de criança. Acontece que a mãe do moleque entrou de repente e pegou a gente no banheiro. Depois daquilo, ela começou a fazer minha caveira, me tratar de vagabunda. Essa foi uma das minhas primeiras castrações. Me senti excluída e ofendida. Me senti a Madalena apedrejada – e eu só tinha seis anos de idade!
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Em que momento da sua vida você entrou em contato com a literatura erótica?
A primeira expressão erótica que conheci foi Milo Manara, na adolescência. Poesia erótica eu só fui ler adulta, quando comecei a escrever meu livro. Isso foi em 2013. Nessa fase, eu comecei a pesquisar e encontrei aquele livrinho do Drummond, O amor natural, sabe? Achei fantástico. Não está entre as coisas mais divulgadas dele, pelo contrário, é meio velada. A partir daí, comecei a encontrar mais poesia erótica. É um movimento natural: o artista tem isso de ser antena, de pegar as frequências que estão rolando no momento. E eu, particularmente, me sinto como uma ponta de lança: vejo uma faísca e logo as coisas vão acontecendo, outras pessoas começam a fazer algo sintonizado com aquilo e tal.
Como você disse, poesia erótica no Brasil segue sendo um assunto velado. O que você recomenda pra quem quer conhecer mais sobre o assunto?
É algo total velado. Para se ter ideia, só em 2016 foi lançada a primeira Antologia da Poesia Erótica Brasileira, com as principais figuras da lírica erótica do país desde o século XVII até os dias de hoje. São poemas de épocas, estéticas e contextos diferentes, de Gregório de Matos e Hilda Hilst a Vinícius de Moraes e Ferreira Gullar. É muito interessante.
Afrodisíaca dialoga também com gastronomia: chefs e artistas vão criar receitas exclusivas inspiradas pelas faixas. Fale um pouco da sua relação com a cozinha.
Minha mãe sempre cozinhou muito bem, então minhas primeiras referências vêm dela. Também morei uma época com meu pai e fiz aulas de macrô, lá no Kikushi (*importante referência da culinária macrobiótica em São Paulo). Minha família sempre gostou de uma comida mais natural, mas quem tinha dinheiro pra comprar arroz integral nos anos 80? Quando fui morar sozinha, comecei de fato minha aventura culinária. E ela é muito intrínseca à descoberta do prazer. Quando cozinho, não sigo receita, vou no instinto. Não gosto nem de provar. Vou pelo cheiro, mesmo.
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O seu paladar mudou desde quando você começou a cozinhar? O que não pode faltar na tua cozinha?
Na minha cozinha não pode faltar gengibre e shoyu. Mas tem coisas que vão mudando ao longo do tempo, sim. Coentro, por exemplo, é algo que eu não gostava de jeito nenhum – e hoje amo. Também gosto muito de brincar com o agridoce, fica muito bom na carne.
Quais são seus pratos de maior sucesso?
Olha, comida minha que o pessoal já comeu rezando é galinhada e moqueca de banana. Acho que são meus pratos mais famosos. Ah, teve também o carré de cordeiro, que eu recebi até pedido de casamento.
Cozinhar é um ato político. Pode envolver escolhas por alimentos da estação, a agricultura familiar e também a escuta ativa de seu próprio corpo. Essa escuta pode nos levar a experiências mais prazerosas?
Sim! Ouvir o próprio corpo é autoconhecimento, é conexão. O que meu corpo está pedindo? Mais açúcar? Pode até ser, mas pode ser também que a gente não esteja sabendo codificar a mensagem. Às vezes a ideia daquela comida é mais saborosa que a comida em si. A gente come algo que achava que queria e não sente prazer. Você precisa ouvir teu corpo, ele te fala o que está faltando. Comer é uma forma de acionar a memória do corpo. Se você precisa de ferro, por exemplo, ele vai te dizer, você vai sentir vontade, e se você colocar o que ele pede nas suas papilas gustativas, aquilo vai acionar toda uma cadeia perfeita de saúde no seu sistema. É um ciclo perfeito.
“Ouvir o próprio corpo é autoconhecimento, é conexão. O que meu corpo está pedindo? Mais açúcar? Pode até ser, mas pode ser também que a gente não esteja sabendo codificar a mensagem”
Falando em saúde, que práticas transformadoras você pode compartilhar no quesito prazer?
Tem a terapia tântrica, que teve um boom recente e que considero super importante. Geralmente, são mulheres que oferecem esses trabalhos de autoconhecimento, de liberação através do orgasmo. Para mim, foi e tem sido algo muito intenso porque vem junto com um processo pessoal. Passei por uma separação no ano passado e desde então tenho trabalhado muito internamente, através de diversas buscas espirituais e mergulhos de autocura. Tenho feito também a terapia dos Yoni eggs (medicina natural ancestral que usa cristais em formato de ovo para tratamento intravaginal). Assim como os outros órgãos do nosso corpo, a vagina e o útero também guardam memória. Através das pedras, você consegue limpar, equilibrar e reativar as forças e energias desses órgãos.
Uma dica para todas as mulheres do mundo sobre prazer.
Nosso próprio prazer não se negocia.