
scalado para a 32ª Bienal de São Paulo, que ocorreu entre setembro e dezembro de 2016, o artista plástico Jorgge Menna Barreto resolveu criar um trabalho que discutisse o quanto as florestas são afetadas pela nossa alimentação. “Mas não há nada mais oposto a elas do que o pavilhão modernista da exposição, de vidro e concreto”, acredita ele, que ainda não grafava o primeiro nome com um segundo “gê”, incorporado no ano passado. Descartado o plano de reproduzir artisticamente alimentos e afins no edifício projetado por Oscar Niemeyer, Barreto tirou do papel um “restaurante-obra”, apelidado de “Restauro”.
Em resumo, ele ocupou o refeitório da Bienal para servir receitas com ingredientes cujo plantio favorece a biodiversidade e ajuda a regenerar o solo. O projeto foi desenvolvido em parceria com a banqueteira Neka Menna Barreto, sua prima, e uma escola de gastronomia com forte preocupação ambiental, a Como Como. Os visitantes puderam provar, por exemplo, um purê de mandioca com cobertura de salada de couve-flor enquanto ouviam sons captados nas chamadas agroflorestas, as matas nas quais são adotadas práticas extrativistas sustentáveis, além de entrevistas com agricultores preocupados com o meio-ambiente.
A bem da verdade, boa parte da “clientela” do restaurante-conceitual matou a fome sem ficar a par das reflexões que deram origem a ele — propositalmente, não havia fotos ou textos explicativos. “As pessoas não se dão conta de que estão interagindo com a floresta toda vez que comem, mas queria que os alimentos fossem os protagonistas, por isso achei válido rebaixar a dimensão discursiva”, justifica o artista, que se refere aos participantes do experimento na Bienal como integrantes do que chamou de escultura ambiental.

Para ajudar quem não entendeu o que uma coisa tem a ver com a outra, Barreto tem uma série de raciocínios na ponta da língua. “Se a gente pedir para uma criança desenhar uma árvore frutífera, ela vai escolher uma macieira e não uma de araticum”, começa, citando uma espécie comestível do Cerrado pouco conhecida. “Só que, para produzir maçã por aqui, são necessários pelo menos sessenta banhos de pesticidas e maquinário pesado, porque estamos forçando a terra a produzir algo para qual ela não tem necessariamente vocação. E tudo por conta de uma internacionalização do gosto.” Conclusão: “estamos substituindo uma paisagem florestal por uma paisagem de lavoura”. Dito de uma maneira, digamos assim, mais artística, “nos habituamos a alterar o nosso entorno a partir do sistema digestivo”. Mais uma reflexão de embrulhar o estômago: 70% da nossa alimentação é composta por cinco plantas — milho, trigo, feijão, cana-de-açúcar e soja —, sendo que há 25 mil plantas comestíveis no planeta. Sim, 24.995 espécies ficam de lado.
“Se a gente pedir para uma criança desenhar uma árvore frutífera, ela vai escolher uma macieira e não uma de araticum”

Toda a conceituação de “Restauro” foi mantida nas entrelinhas com segundas intenções. Foi guardada para o projeto que ele desenvolveu em parceria com o artista plástico Joélson Buggilla durante a residência da dupla na academia Jan van Eyck, na Holanda, encerrada em maio. A ideia inicial era produzir um livro, logo substituído por uma revista. “Foi um aprendizado difícil, mas me dei conta do quão insignificante em termos de impacto ambiental é trazer a ecologia para as artes plásticas dentro de uma exposição que dura três meses”, diz Barreto, que acredita que a publicação poderá atingir bem mais gente que os frequentadores da Bienal.
Lançada em março com 200 exemplares, a revista ganhou o nome de Enzyme. “O corpo humano produz até 1.300 enzimas diferentes, que catalisam mais de 5.000 reações químicas”, diz o editorial da publicação. “Elas nos permitem ver, ouvir, sentir, mover, escrever, digerir alimentos e pensar”. Outro trecho diz o seguinte: “A comida sozinha não dá conta do recado, nem as enzimas. É o entrelaçamento que torna possíveis as reações de suporte à vida. Afinal, você não é o que você come. Você é o que você absorve”. No artigo principal, Barreto e Buggilla relatam um encontro com Wouter Van Eck, um dos grandes nomes da agricultura sustentável na Holanda. Em tempo: a segunda e a terceira edição de “Enzyme” já estão em produção (os interessados em receber uma cópia precisam mandar um e-mail).
Vida de artista
Barreto não gosta de ser classificado como um artista ligado à gastronomia. “Não recorro aos alimentos por questões estéticas, só os enxergo como mediadores de nossa relação com o território em que vivemos”, argumenta. Seu primeiro trabalho que reflete sobre os impactos da alimentação chama “Sucos Específicos”. Foi desenvolvido em 2014, em Florianópolis, e se resume a vidrinhos com ilustrações de autoria do artista Bil Lühmann. Os recipientes contêm sucos feitos com plantas comestíveis não convencionais colhidas na ilha de Anhatomirim, no litoral catarinense. Como “Restauro” e os textos da revista Enzyme, os líquidos convidam a refletir, embora de maneira mais hermética, sobre como escolhas alimentares sempre terão peso na transformação de alguma paisagem.

Ele também não gosta muito de ser associado aos antepassados ilustres, como João de Deus Mena Barreto (1874-1933), o general Mena Barreto, um dos membros da junta provisória que governou o país após a deposição de Washington Luís da presidência, nos anos 30. “Morro de vergonha”, assume o artista, ao ouvir o nome do ascendente distante. Nascido em Araçatuba, no interior de São Paulo, há 50 anos, ele passou a infância e a juventude em Porto Alegre. Radicado no Rio de Janeiro, é professor adjunto no Instituto de Artes da UERJ e representado pela galeria paulistana Carbono.

Instigado a refletir sobre o impacto do novo coronavírus em seu meio, se diz otimista. “Especulo que as obras mais mercantilizadas serão as mais afetadas e aquelas que não se preocupam tanto com a materialidade, e sim em propor leituras críticas do mundo, ganharão mais importância”, afirma. “Vivemos também uma crise de valores e o papel da arte é ajudar na leitura do mundo sob outras perspectivas”. Digerido com a ajuda da arte, defende, o mundo pode ficar mais palatável.







