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Império Maia 2.0

O fotógrafo guatemalteco Juan Brenner retrata conflitos geracionais, tensão racial e o comportamento de uma nova geração indígena em seu trabalho

por Ricardo Ampudia Atualizado em 17 dez 2021, 15h29 - Publicado em 29 jul 2021 00h12
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(Clube Lambada/Ilustração)

Guatemala é o quinto país mais pobre da América Latina e Caribe. Viveu uma guerra civil violenta entre 1960 e 1994, com o envolvimento da CIA. Em 1976, um grande terremoto matou 23 mil pessoas e destruiu a infra-estrutura do país, que hoje, em paz declarada, vive em guerra com o narcotráfico. A essa complexidade, soma-se uma tensão racial. A população indígena no país, que já sediou o império maia, é de 44%. Destes, 75% estão abaixo da linha da pobreza, que no país afeta 49% da população total.

É esse caldeirão que o fotógrafo guatemalteco Juan Brenner retrata em seu trabalho, percorrendo o interior do país fotografando bocas cheias de ouro, conflitos entre o tradicional e o moderno e uma nova geração indígena – que ele diz que será a nova elite do país.

Juan Brenner

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Brenner começou a carreira como fotógrafo de moda em Nova York, assinou grandes campanhas, fez sucesso, mas se perdeu no caminho. Voltou à Guatemala e passou sete anos sem fotografar. Em seu primeiro livro, Tonatiuh (Editorial RM), seguiu o caminho do conquistador da Guatemala, o espanhol Pedro Alvarado, para ver como os efeitos da colonização, muito presentes, começam a se dissipar. Em Genesis, ainda em andamento, ele retrata o nascimento de uma nova geração, que mescla o global ao tradicional.

Brenner conversou com a Elástica para falar sobre a repulsa pela fotografia latino-americana, poderio indígena, violência e ouro, muito ouro.

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(Juan Brenner/Fotografia)

Como foi sua volta à fotografia, e retratando as raízes da Guatemala?
Estava trabalhando como fotógrafo de moda em Nova York entre 1998 e 2010. Foram anos muito complexos e intensos, onde, para resumir, joguei minha vida pela janela. Me dei muito bem como fotógrafo de moda. Para mim, em especial, o que me completa, que faz meu motor funcionar, é o reconhecimento. Eu sou viciado em reconhecimento, ver que as pessoas gostam e conhecem seu trabalho. Todo fotógrafo é. Mas o problema é que eu também sempre gostei demasiadamente de festa, foi aí que eu perdi meu caminho. Decidi voltar para ficar quieto um tempo, ficar limpo e encontrar de novo meu caminho. E aí encontrei e me reencontrei aqui. Estou há 12 anos limpo, vivendo na Cidade da Guatemala.

Assim que retornei montei, um estúdio de design gráfico com minha sócia, que também é minha companheira, e nos demos muito bem, com clientes no mundo todo. Nesse período, fiquei sete anos sem fotografar, dedicado só ao design. Até que eu não me aguentei, porque era mentira, eu não queria parar, só precisava encontrar um caminho. Minha vida funciona por ciclos. Em 2017, sabia que precisava fazer algo, um projeto, e esse projeto era Tonatiuh

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(Juan Brenner/Fotografia)

De que Guatemala você partiu e para qual Guatemala voltou?
Parti de uma Guatemala que estava em um momento cinza, intenso, porque a guerra havia terminado em 1994. Haviam se passado quatro anos de uma guerra que durou 36. Eu, com 20 anos, não entendia nada da Guatemala, vivia em uma bolha, que é o mesmo que não viver. Naquele momento, eu achava a Guatemala entediante, plana, um país que acabara de sair de uma guerra e ficava mentindo a si mesma que as coisas seriam melhores. Voltei para uma Guatemala muito pior no aspecto de injustiça social: o pobre está mais pobre, e o rico, ainda mais rico, é quem manda. Bom, isso é América Latina, vocês devem saber. Mas era também uma Guatemala muito mais interessante no sentido sociopolítico e artístico. Existe um caldo cultural cozinhando no underground guatemalteco, as coisas estão mais efervescentes.

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“Com 20 anos, achava a Guatemala entediante, plana, um país que acabara de sair de uma guerra e ficava mentindo a si mesma que as coisas seriam melhores. Voltei para uma Guatemala muito pior no aspecto de injustiça social, mas muito mais interessante no sentido sociopolítico e artístico”

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(Juan Brenner/Fotografia)

Com Tonatiuh, você faz um salto da fotografia de moda para a fotografia documental, em temas que exigem muita imersão. Como foi esse processo de pesquisa?
Quando comecei a pensar em Tonatiuh, eu queria fazer um projeto sobre poder indígena, falar sobre o poderio indígena no altiplano guatemalteco. Viajei muito pela América do Sul e vi que se sente muito esse poder no Peru, mais ainda no Equador e muitíssimo mais na Bolívia. Em El Alto, na Bolívia, você tem 95% da população indígena e vê casas de mais de três milhões de dólares. Então, comecei a fazer a pesquisa. Nunca me graduei em nada, conclui o ensino médio apenas. Então, essa parte da pesquisa é algo importante, que me dava base e segurança para o projeto, mas difícil. Fiz muitas entrevistas, com historiadores, sociólogos, etc. Numa delas, com um antropólogo indígena no Equador, ele me disse: “Brother, você tá mal. Você não vê que sim, temos muito poder indígena na Bolívia e Equador, mas percebe que é o poder que o branco nos deixa ter?”.

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Isso mudou minha vida, mudou tudo. Obviamente destruiu meu projeto, mas eu ainda queria muito fazer algo no altiplano guatemalteco, esse lugar tem uma energia e uma tensão indescritíveis. Comecei a perceber que a conquista das Américas é um dos projetos de maior sucesso no mundo. Foquei na figura de Pedro Alvarado [conquistador da Guatemala] e percebi que não sabemos nada sobre o quão dramática e terrível foi a colonização da Guatemala. Tonatiuh e toda a pesquisa foram a faísca da aventura. Percorri mais de 70 povoados, milhares de quilômetros no interior do país. Me abriu muitas portas para os projetos futuros.

Dentes de ouro são algo muito presente nos seus retratos. Me explica um pouco sobre o papel deles na sociedade indígena guatemalteca.
Tudo é sobre ouro. Imagina que a Espanha precisava sair da Idade Média, superar a peste, gente morrendo de fome na Europa toda. Aí vem Cristóvão Colombo e, por pura casualidade, encontra um continente que tá cheio até topo de ouro. Isso muda a história do mundo. Então, o ouro é poder. Eu gosto muito de hip hop e imaginava em Tonatiuh fazer fotos parecidas com as capas de discos, com indígenas cheios de cordões de ouro e anéis.

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(Juan Brenner/Fotografia)

Acontece que, no Altiplano, não se usa ouro dessa forma. Nas culturas maia-descendentes, o ouro se bota na boca e eu me dei conta disso por puro acidente. É também uma história circular. Há dois mil anos, somente a realeza maia poderia adornar seus dentes com jade, concha e ossos. Séculos depois, seus descendentes estão fazendo o mesmo, não para honrar seus ancestrais, mas para mostrar que têm mais dinheiro. Não é uma retomada, é uma continuação. Já em Genesis, a mensagem é outra. Eu coloco esse tema de outra forma. Durante a investigação, descobri que 80% das pessoas com metal na boca, na verdade, não usam ouro, mas ligas de metais importadas da China. Os casos de câncer de esôfago e estômago triplicaram nos últimos anos no Altiplano. Percebe a dicotomia?

“Há dois mil anos, somente a realeza maia poderia adornar seus dentes com jade, concha e ossos. Séculos depois, seus descendentes estão fazendo o mesmo, não para honrar seus ancestrais, mas para mostrar que têm mais dinheiro. Não é uma retomada, é uma continuação”

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(Juan Brenner/Fotografia)

Um dos principais problemas da Guatemala é a violência do narcotráfico, mas isso não aparece explicitamente no seu trabalho. Por quê?
Aparece de uma forma muito leve, porque me matariam. Sério. Quando estava fazendo Tonatiuh, tive um encontro com traficantes nas montanhas. Estava fotografando uma montanha quando chegou uma caravana de camionetes, com fuzil e tudo, me perguntando o que eu estava fazendo ali. Por sorte, levo algumas polaroids sempre comigo. Mostrei meu trabalho, expliquei. Disseram: “Não queremos mais te ver aqui, da próxima vez não seremos tão educados”. A violência do narcotráfico está por todo lado. Eles te queimam vivo e ninguém fica sabendo de nada. Nas fotos em que retrato cordões de ouro de AK-47, que aqui são chamadas de “chifre de bode”, estou falando do narcotráfico. A figura do galo também, as rinhas de galo são muito associadas ao narco. Com estes símbolos em anéis, cordões, as pessoas querem dizer que trabalham para o tráfico, que são amigos dos narcos. Isso me interessa muito fazer com meu trabalho. As fotos são, sim, interessantes, mas elas têm muitas camadas de leituras. Para mim, isso é fascinante.

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(Juan Brenner/Fotografia)

O mais óbvio que um fotógrafo da Guatemala é retratar o êxodo, já que é um dos países com mais emigrantes no mundo. O que você queria retratar com Genesis?
A gênese da nova geração que terá poder no altiplano guatemalteco. Essa região nos define como nação, define todas as características importantes dessa sociedade, uma caixa de Pandora. É aí que aconteceu todo o processo de invasão e conquista, onde estavam os impérios, onde estão as terras mais férteis e a maioria dos vulcões do país.  Nos últimos 700 anos, o altiplano esteve em guerra. Antes de os espanhóis chegarem, os caqchiqueles e os quimchés, dois impérios, guerrearam por 200 anos, inclusive havendo um genocídio com meio milhão de mortes. Chegam os espanhóis, 350 anos de guerra. Em 1970, a guerra civil na Guatemala, que durou até 1994, começa lá. No meio disso tudo, em 1976, um grande terremoto destrói tudo na região. É um lugar tenso. Quero mostrar como a nova geração está transcendendo certas regras e arquétipos que foram criados no momento em que a Espanha invade o território. Hoje, os jovens têm smartphones, sabem inglês, não existe pobreza extrema. 

“Quero mostrar como a nova geração está transcendendo certas regras e arquétipos que foram criados no momento em que a Espanha invade o território. Hoje, os jovens têm smartphones, sabem inglês, não existe pobreza extrema”

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(Juan Brenner/Fotografia)

Como suas fotos são recebidas na Guatemala e pelo mercado de arte local?
Ninguém conhece nada. A elite me odeia por completo, porque sou muito aberto com as coisas que digo. E para eles não importa qual é o fotógrafo, querem fotos simples, a moda é outra. Isso vale para toda a América Latina, na verdade. Se você não faz fotos que não se parecem com as que o Anthoine d’Agata [fotógrafo francês que especializou seu trabalho em clicar dependência de drogas, sexo, obsessões pessoais, escuridão e prostituição] fez há vinte anos, ninguém se importa.

Se suas fotos não têm alguém fumando crack, uma prostituta com os peitos de fora e um cachorro de rua todo fodido, ninguém se importa. Anthoine d’Agata cagou com a fotografia latino-americana, man. Eu vivo aqui, mas não foco meu mercado na Guatemala, eu viso a Europa e os Estados Unidos.

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(Juan Brenner/Fotografia)

Suas fotos mostram o que é a Guatemala e de onde ela veio. A pergunta é: Para onde vai a Guatemala?
Lamentavelmente, eu sou fotógrafo, não Nostradamus [risos]. Não posso adivinhar o futuro, mas especular. Pessoalmente eu digo que vêm por aí momentos muito duros. O caldo de tensões sociais e raciais na Guatemala está cozinhando, e as elites não sabem o que as espera. Vai ser como uma guerra entre galáxias, como nos filmes de super-heróis. E o mais lindo é que não vai ser violento, vai ser cultural, energético, econômico. Vai ser um renascimento das culturas descendentes dos maias, que vão retomar tudo aquilo que lhes foi roubado há 1500 anos. E isso deve acontecer nos próximos 25 ou 50 anos. Agora é o momento crucial, o detonante.

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“Se suas fotos não têm alguém fumando crack, uma prostituta com os peitos de fora e um cachorro de rua todo fodido, ninguém se importa. Anthoine d’Agata cagou com a fotografia latino-americana, man”

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(Juan Brenner/Fotografia)

Em que você está trabalhando agora?
Precisei parar Genesis durante a pandemia e comecei a fazer fotos da Cidade da Guatemala, que era o que tinha à mão,. Queria entender a capital. Já estive em cidades densas como Nova York, Cidade do México, São Paulo, mas nada é como isso aqui. A cidade foi completamente mal projetada, para 300 mil pessoas, e já somos quatro milhões. O terremoto de 1976 destruiu tudo o que tinha de bom. Em um ano, fotografei 120 rolos de filmes que acabaram virando o livro The Ravin, The Virgin and The Spring (Pomegranate Press), que publiquei em dezembro de 2020. Agora, estou fotografando um projeto muito, muito pessoal, investigando multiversos e memórias de família, que chamei de “This Universe”. Nele, faço uma metáfora da memória, onde se visita um outro universo para relembrar. É muito pessoal, me emociona muito fazê-lo.

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