Prestes a ocupar o palco do Primavera Sound SP, a artista conversa conosco sobre processo criativo, carreira e política
por Beatriz Lourenço e Alexandre MakhloufAtualizado em 11 out 2022, 17h08 - Publicado em
10 out 2022
10h38
ossa entrevista com Jup do Bairro durou pouco mais de meia hora. Mas foi o suficiente para ela comentar sobre o caminho de sua arte, a cultura da periferia e as expectativas de participar da primeira edição do Primavera Sound São Paulo. “Uma das coisas mais legais desses festivais é se deparar com um público diversos e apresentar seu trabalho”, afirma.
Jup começou sua trajetória na arte ainda na adolescência, época em que sentimos a necessidade de pertencimento e da busca pelo nosso lugar no mundo. “Era uma espécie de terapia barata. Escrevia para me ouvir e, com isso, fui entendendo que corpo era mente e que, a partir dali, poderia me sentir pertencente a algo”, revela. O sonho cresceu e, ao se juntar com a artista Linn da Quebrada, nasceu o disco “Pajubá”, que rendeu sua primeira saída do país e o filme “Bixa Travesty”.
Mas só em 2020 é que nasce seu primeiro álbum solo, “Corpo Sem Juízo”, que além de contar sua vivência como mulher trans da periferia, questiona o lugar de corpos dissidentes na sociedade. “Um exercício que tenho feito com meu público é trazer a importância da construção de pensamento conjunto. Não trago verdades absolutas, mas pensamentos que precisam ser construídos”, diz. “Se a gente falar a fundo sobre representatividade, não represento ninguém além de mim mesma. Não falo por todas as travestis, nem por todos os corpos pretos. Isso também é uma forma de o capitalismo desumanizar a gente.”
Ao falar sobre política, a cantora acredita que tem experimentado a raiva e ela, diferente do ódio, pode ser transformadora. “Isso porque ela é gerada a partir da revolta, da não contemplação e da insatisfação. Acredito que estamos vivendo tempos pessimistas, e acho que está tudo bem. Mas não podemos ser derrotistas”, reflete. “Precisamos voltar a falar e pensar o futuro como extensão do presente, mas sem entregar os pontos.” Abaixo, confira o papo completo.
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O que te fez artista e como você acredita que a música e a performance podem transmitir para o outro o que você sente e acredita?
Costumo dizer que sou mais arteira do que artista, entusiasta da principal ferramenta da arte e talvez a mais profunda: o corpo. Comecei a escrever sem muita pretensão, se ia ser composição ou poesia, era uma espécie de terapia barata. Escrevia para me ouvir e, com isso, fui entendendo que corpo era mente e que, a partir dali, poderia me sentir pertencente a algo. Comecei esse processo com 13 anos, na adolescência. É daí que nasce Jup do Bairro! Inclusive, como uma grande desculpa para ser quem eu sou.
Lembro que, quando criança, era muito sonhadora. E comecei a me questionar quando parei de ser assim, quando a sociedade começou a me tornar uma pessoa imediatista. Acaba sendo super comum que crianças da periferia, principalmente pretas e com recortes de sexualidade e gênero divergente, se sintam pressionadas a esse lugar de pensar qual é o papel que se deve assumir. Com a arte, voltei a sonhar e, principalmente, me sentir ligada ao presente. A partir daí, passo a projetar uma noção de futuro e isso vai para além do meu corpo – não acaba em mim.
Você e Linn da Quebrada tocaram juntas por bastante tempo. Ao passar para a carreira solo, rolou um processo de reinvenção do seu lado artista?
Eu já tinha trabalhado com a música anteriormente, antes da Lina começar. Tinha até um disco pronto. Mas passei a explorar a performance e investir no meu trabalho com a moda. A Lina começou a compor e me mostrar – e eu falei que aquilo era música e poderia ser algo bem legal. Como eu estava nesse intervalo de mudar a carreira, ela pediu para que eu fizesse o primeiro show com ela porque eu sabia as músicas de cor. O público ficou muito feliz com a nossa sintonia e passamos a caminhar juntas. Criamos o “Pajubá” – que rendeu nossa primeira saída do país e o filme “Bixa Travesty”. Esse encontro se deu de uma maneira muito intensa. Foi uma parceria de cuidado, de uma protegendo a outra.
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Na música “Luta por mim”, você diz: “Agora morto eu tenho mais voz do que vivo, parece comédia!” Essa letra cabe a todos os corpos marginalizados e é mais atual do que nunca. Como transformar a narrativa social para que essas vozes sejam, de fato, ouvidas?
Compus a minha parte de “Luta por mim” com 15 anos, em parceria com Mulambo – que colaborou na interpretação e na composição. Era um pedido de como a gente consegue pensar nesses corpos de uma maneira não só afetiva, mas efetiva. A ideia era pensar como precisamos usar nosso local de fala como um local de efeito.
Lugar de fala virou carta curinga que as pessoas usam para se eximir de falar sobre assuntos. Qualquer pessoa pode falar sobre qualquer assunto. A transfobia não é assunto exclusivo de pessoas trans ou travestis. O racismo idem, não é exclusivo de pessoas racializadas. Nós precisamos entender o quanto esses corpos estão cansados de reduzir a existência a isso. O papel é extremamente plural e de responsabilidade de todos e todas nós. Um exercício que tenho feito com meu público é trazer a importância da construção de pensamento conjunto. Apesar de trazer muitas exclamações e pedidos com a arte, não quero só isso. Não trago verdades absolutas, mas pensamentos que precisam ser construídos de forma conjunta.
Lugar de fala virou carta curinga que as pessoas usam para se eximir de falar sobre assuntos. Qualquer pessoa pode falar sobre qualquer assunto. A transfobia não é assunto exclusivo de pessoas trans ou travestis. O racismo idem, não é exclusivo de pessoas racializadas.
Você tem preferido não falar sobre temas LGBTQIA+ em suas entrevistas mais recentes. Como você equilibra a importância da representatividade com a necessidade de alcançar novos espaços e não se reduzir à pauta do gênero?
Penso nisso como estratégia de fuga, não quero ser reduzida ao meu corpo. É nítido que sou travesti, preta, gorda. Não quero ficar justificando minha existência a todo momento, quero falar também sobre produção musical, sobre minhas composições, sobre psicologia… Posso falar sobre inúmeras coisas como qualquer outra pessoa. Acredito até que a gente ter a humildade de trazer num diálogo o “eu não sei o que é isso” também faz parte de um diálogo rico.
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A representatividade é uma faca de 3 gumes: muito boa porque representa pessoas e cria imaginários possíveis; também pode deixar pessoas estáticas, do tipo: “já tem alguém fazendo, então não vou fazer também”; e o terceiro gume é como o capitalismo torna esses esses corpos uma demanda. Eles pegam nossas narrativas individuais e as tratam como mercado. Mas, a partir do momento que deixar de ser interessante, ninguém fala mais.
Se a gente falar a fundo sobre representatividade, não represento ninguém além de mim mesma. Não falo por todas as travestis, nem por todos os corpos pretos. Isso também é uma forma de o capitalismo desumanizar a gente. Diversidade e inclusão não são a mesma coisa: incluir é conseguir trazer ainda mais profundidade aos corpos dissidentes e não usar isso só como slogan no mês de junho ou no dia da visibilidade trans.
Se a gente falar a fundo sobre representatividade, não represento ninguém além de mim mesma. Não falo por todas as travestis, nem por todos os corpos pretos. Isso também é uma forma de o capitalismo desumanizar a gente.
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O disco tem a ver com o ciclo nascimento-vida-morte. O que tem sido mais valioso na sua vida agora e o que você acredita que precisa morrer?
Acredito que parte de mim morre todos os dias, e que bom. A partir do momento que a gente consegue absorver novas informações e possibilidades de existência, a gente já não é mais a mesma pessoa. Lembro muito de uma entrevista que fiz com Antonio Pitanga que sempre ecoa na minha cabeça o que ele diz: não tem nada mais importante do que o exercício de você não caducar. Preciso que minhas ideias de hoje morram amanhã para continuar presente no amanhã também, não apenas no hoje. Quero movimento! Até porque, se as células do nosso corpo se regeneram a cada sete anos, quem dirá nossa mente e a sociedade.
Ao cantar sobre sua vida, você transforma seus sentimentos em arte – mas esse também pode ser um processo doloroso. Como cuidar da sua saúde mental para isso não te consumir negativamente?
Olha, terapia… Nós estamos saindo de um tempo em que quem entendeu o que rolou está com muitas sequelas. Saio calejada, manca, com feridas expostas e dores, mas não quero tratar o que passou de uma maneira vampiresca – de pensar “olha como essas dores estão em mim”. Quero mostrar essas cicatrizes, mas quero que as pessoas segurem nas minhas mãos e admirem as marcas que ficam.
A retomada aos palcos têm sido um movimento de cura porque é onde consigo canalizar as dores e angústias. Tem uma frase da Conceição Evaristo que me conforta muito: “enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando solução.” Acredito que, nesse momento, os encontros físicos têm sido muito mágicos e cheios de possibilidades de vida. Ver pessoas cantando minha música, letras escritas em momentos tão específicos da minha trajetória, tem sido muito importante.
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Você vem do Capão Redondo, mesmo lugar onde nasceu Racionais. Gloria Groove, por sua vez, vem da Vila Formosa. Isso mostra que a periferia tem muita cultura, mas ainda falta investimento. O que fazer para mudar esse cenário e como nosso voto nas próximas eleições podem influenciar isso?
Estamos em um momento delicado. Tenho acompanhado algumas pessoas falando que essa talvez seja a eleição que precisamos ter mais cuidado, mas acho que tem que ter sempre. Tenho pensado numa semiótica de como a gente pode fazer com que a nossa comunicação possa chegar a outras pessoas para além do uso da não violência, como diria Judith Butler.
Eu tenho muita raiva e acredito que ela pode ser transformadora. Isso porque ela é gerada a partir da revolta, da não contemplação e da insatisfação. Acredito que estamos vivendo tempos pessimistas, e acho que está tudo bem ser pessimista, tá? Mas não podemos ser derrotistas. Não devemos evidenciar o que nos faz mal. A eleição passada foi muito “Ele não”. Tá, mas quem sim? Além disso, não quero falar só pra quem já me conhece, quero atingir mais pessoas de maneira afetiva para minhas falas serem efetivas e transformadoras.
Em novembro, você participa da primeira edição do Primavera Sound São Paulo. Qual é a expectativa e o que você espera apresentar no festival?
Estou muito ansiosa! Participei do Primavera em Barcelona com Lina e Badsista anteriormente. Agora, com a minha carreira solo, estou muito empolgada! O line-up está incrível e ele poderia facilmente ter sido montado por mim! Será mais um show da da turnê de “Corpo Sem Juízo” com a minha banda e temos algumas ideias legais que queremos colocar em prática.
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Uma das coisas mais legais de festivais é você se deparar com o público de outras pessoas e apresentar seu trabalho. Principalmente nessa primeira edição do Primavera, vamos nos deparar com inúmeros outros públicos. Será um encontro mágico e uma construção de um momento muito verdadeiro e vivo, estou muito empolgada.
Na música “Resplandescente”, Ventura Profana canta: “Jup do Bairro com a faixa presidencial”. O que você faria no planalto?
Nossa, eu tacaria uma bomba e começaria do zero! Acho que minha única possibilidade de estar no planalto talvez seja essa.