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Me olha de novo?

Esse é o convite que Linn da Quebrada faz ao público. Conversamos com ela sobre o novo álbum, corpo, a indústria musical e representatividade

por Alexandre Makhlouf Atualizado em 21 jun 2021, 18h21 - Publicado em 17 jun 2021 23h30
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(Clube Lambada/Ilustração)

assar uma tarde ao lado de Lina Pereira, 30 anos, pode ser uma experiência transformadora. Ouvir sua risada que contagia, prestar atenção em seu discurso, admirar a combinação de palavras que, sem nenhum esforço, vira rap e poesia. O jeito calmo de projetar a voz, o tom firme na hora de dar explicações e a serenidade para falar de assuntos sérios como a transformação do próprio corpo, a cooptação da indústria em cima de pautas LGBTQIA+ e o domínio dos novos ritmos que ela está colocando em seu novo álbum, no entanto, são novidade para quem estava acostumado a escutar a Linn da Quebrada falar. “Foi muito importante ter gritado, ter cantado, ter feito o Pajubá como eu fiz. Mas eu não quero mais gritar. Eu quero cantar, quero outras frequências, outras sonoridades”, ela diz.

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Linn e Lina são a mesma pessoa, se isso ainda não ficou claro, e coexistem nesse corpo potente que você vê aqui, ao longo de toda essa entrevista. Nesta sexta-feira, 18, vai ao ar em todas as plataformas de streaming seu novo single, “I Míssil”, primeira faixa divulgada do novo álbum, Trava Línguas (Natura Musical). O disco, que deve chegar no segundo semestre, vem depois de quatro anos do icônico Pajubá, álbum de estreia da cantora que foi premiado e levou-a aos holofotes da indústria musical. Com letras explícitas, combativas e militantes, tornou-se um manifesto, um símbolo de resistência e uma esperança para muitos artistas que não encontravam lugar na indústria para suas vozes. Linn virou um símbolo de representatividade – e, se para muitos isso é o lugar mais alto do pódio, ela vem, mais madura do que nunca, propor que a gente repense esse conceito..

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“A representatividade tem servido como um pula-pula que nos mantém no mesmo lugar, para que você continue sendo vista, apareça de novo. Mas, na verdade, ela deveria servir como trampolim, que você conseguisse alcançar outros lugares, se movimentar, criando uma rotatividade, um movimento. O pula-pula te mantém presa no mesmo lugar, um lugar de eterna representação, você tem que representar a si mesma, ser fiel a si mesma”, explica.

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Em uma conversa tranquila, entre maquiagens e poses para as lentes de Camila Tuon, conversamos com Linn sobre a nova fase, os 30 anos, o álbum que está em finalização e o que ela, hoje, pensa sobre seu lugar no mundo. Falamos sobre música, sobre ser LGBTQIA+, sobre encontros e desencontros. Mas, mais do que isso, escutamos. Tudo que ela tem pra falar sobre suas transformações e sua eterna busca por se encontrar. “Sinto que, nesse momento, consegui fazer esse giro comigo mesma. Não o que o mercado espera, mas o que eu precisava fazer. Descobri, mais uma vez, quem sou eu, quem sou eu nesse momento. Redescobri porque que eu faço arte independente da venda, das etiquetas. Vai ser uma nova relação com o público, quase como se fosse um pedido: me olha de novo? Me ouça de novo, como se você não me conhecesse, porque eu mesma não me conheço.” A gente olha e a gente te ouve, sim, Linn. E é um prazer fazer isso.

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Queria começar essa entrevista falando sobre uma coisa que você sempre falou e sinto que tem falado ainda mais recentemente: mudança e transformação. Você está sempre se encontrando, reencontrando, desencontrando. Como você alimenta e celebra isso no seu dia a dia?
Mais do que a transformação, o que eu prezo muito no meu trabalho e na minha trajetória é o movimento. E o movimento é uma conquista diária, porque é o que me mantém viva, buscando novas relações, me faz olhar pra mim mesma, pro meu trabalho, pras pessoas que estão ao meu entorno com curiosidade. É o que faz com que eu continue com vontade de trabalhar, de criar. Tenho voltado muito meu trabalho para o movimento de vida e morte, compreendendo que, dentro dessas transformações, é necessário ter a coragem de matar e morrer, de ser livre. Tenho pensado muito nisso porque é uma pergunta que sempre é trazida para mim. Entendo que ser livre também significa se livrar de alguma coisa, pode e deve ser se livrar de si mesma, abandonar aquela que você já foi, estar disposta à dúvida. Porque é essa dúvida como motor que te leva, te impulsiona para outros lugares. Acredito que, dentro disso, tenho entendido que pausa também é movimento. Nem sempre é preciso estar em deslocamento. Outra coisa que tenho pesquisado muito é sobre repetição e diferença. Quando estamos sempre impulsionadas por um mercado e por uma indústria que nos coage sempre ao movimento, essa constância se torna repetição. O que eu tenho me provocado como movimento agora é a possibilidade da pausa, do pouso. É nessa transformação que eu tenho me encontrado. 

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Como você sente que funciona essa coação do mercado?
O mercado espera uma única coisa de nós, e todas somos muitas. Você é um com seus parceiros e parceiras sexuais, mas você é outro na sua relação – e dependendo de com quem você trabalhar. Eu sou uma nesse set, mas sou outra em outro set, porque isso depende das pessoas e das relações que terei com elas naquele lugar. A relação que construímos com o público da nossa geração é a da representatividade, e isso é uma desgraça. Carrega em si bênçãos, mas tem muitas maldições. A representatividade tem servido como um pula-pula que nos mantém no mesmo lugar, para que você continue sendo vista, apareça de novo. Mas, na verdade, ela deveria servir como trampolim, que você conseguisse alcançar outros lugares, se movimentar, criando uma rotatividade, um movimento. O pula-pula te mantém presa no mesmo lugar, um lugar de eterna representação, você tem que representar a si mesma, ser fiel a si mesma. E eu me traio a todo momento. É importante que a gente se traia para pensar diferente do que você já pensa. A representatividade cria conforto na relação porque, se eu te represento, eu tenho uma responsabilidade com você, com muitas outras pessoas, e eu não quero e não posso representar uma comunidade inteira. É importante que eu esteja desapegada, inclusive, da minha própria imagem, porque meu compromisso não é com o sucesso, é com o fracasso. É isso que eu me lembrei com o disco novo. Meu único compromisso é com o fracasso. Fracassei com o gênero – não pude, nem quis, ser homem; não pude, nem quis, ser mulher. Inventei um outro lugar de identidade que foi a bixa travesty, daí isso foi categorizado, e eu me tornei travesti. Fracassei na raça perante à cisgeneridade branca. Me reivindico bixa preta e faço disso um orgulho. Foram os fracassos que me moveram. Eu estava com medo de errar. Logo eu, que não sou filho, nem sou filha, sou falha desse sistema e que cresci errando muitas vezes. Nessa última parte da minha trajetória, surgiu esse medo de errar. E isso faria com que eu não pudesse fazer do erro, acerto. Nem surto. Nem fazer do meu surto dar certo. Então, acho que eu relembrei esse compromisso com a falha, com o erro, que é com a experimentação, com a vida.


“A representatividade tem servido como um pula-pula que nos mantém no mesmo lugar, para que você continue sendo vista, apareça de novo. Mas, na verdade, ela deveria servir como trampolim, que você conseguisse alcançar outros lugares, se movimentar, criando uma rotatividade, um movimento. O pula-pula te mantém presa no mesmo lugar, um lugar de eterna representação, você tem que representar a si mesma, ser fiel a si mesma. E eu me traio a todo momento”

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Me fala do Trava Línguas, então. O que a gente pode esperar desse novo álbum?
O Trava Línguas surge na experimentação. Desde que eu estava fazendo o Pajubá, já estava escrevendo coisas novas e comecei a experimentá-las. Trava Línguas surge como performance junto com um DJ – o Pininga, a BADSISTA ou os dois – que propunham um set e eu experimentava pequenas células de composição, brincando com elas em sua ordem e desordem, formando, em cada show, uma coisa nova. Fizemos turnê fora com o Trava Línguas antes de ter o álbum. Era uma das coisas que o pessoal mais gostava, porque era uma experimentação. Agora, o Trava Línguas foi se cristalizando e virou uma outra coisa completamente diferente. As letras que ficaram, as novas composições que vieram, são todas em que eu me sinto madura, tendo experimentado. São sonoridades que minha mãe gosta de ouvir – e essa foi uma coisa muito importante, o vínculo com ela que tem se estabelecido cada vez mais. Eu queria fazer algo que a minha mãe quisesse e gostasse de escutar, para me comunicar com ela. Fazer coisas que se conectassem com outras pessoas também, buscar outras sonoridades. Tem carimbó, tem cumbia, mas do nosso jeito. Tem muitos instrumentos orgânicos – guitarra, baixo, percussão, trompetes. Queria trazer instrumentos de sopro para que eu pudesse me dar respiro, para que eu pudesse voltar à superfície. Tem piano e voz – estou experimentando minha voz em outros lugares.

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Como assim?
Além da cirurgia do peito, também passei por uma cirurgia nas cordas vocais. Fui adoecida também por esse mercado de uma certa forma. Falei em acesso, mas falei em excesso. Sinto que meu corpo mental e meu corpo físico não estavam preparados para esse volume de trabalho. Isso tudo causou um pólipo nas cordas vocais, que eu retirei. Então, estou reaprendendo a usar minha voz, e foi um momento íntimo e emocionante no estúdio, aprender outras possibilidades e outras frequências. Foi MUITO importante ter gritado, ter cantado, ter feito o Pajubá como eu fiz. Mas eu não quero mais gritar. Eu quero cantar, quero outras frequências, outras sonoridades. A maioria das composições do disco novo são minhas. Tem uma da Castiel Vitorino – psicóloga, macumbeira, minha amiga, minha parceira –, é a música que abre o disco. E tem uma composição que é da Stela do Patrocínio, uma poeta que foi psiquiatrizada em algum momento, e ela é uma pessoa que me atravessa há muito tempo, desde quando eu fazia teatro. Acho curioso como muitas pessoas brancas se apropriaram da história dela, das entrevistas, e eu não tinha visto até agora pessoas pretas que falassem desse lugar, na loucura que os outros vêem em mim. Os textos dela são lindíssimos. Essa é uma canção que já foi musicada pelo Mauricio Pereira, mas acho que a história da Stela precisa continuar sendo contada. Esse também é um resgate importante que eu faça, que a gente faça, que diz muito respeito a esse lugar em que eu me encontro. 

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Você mencionou a cirurgia do peito, que é mais transformação do seu próprio corpo. Queria que você me falasse sobre ela.
Acho que o corpo está sempre em transformação, independente da mudança do peito. É importante dizer que não coloquei o peito por falta de. É o desejo que me move, o desejo da transmutação, de sentir no meu corpo o processo e o movimento, de ser atravessada por mim mesma. O peito, nesse sentido, vem como um deslocamento, porque eu sempre fui apaixonada pelo meu corpo. Não é o peito que faz a travesti, mas a travesti que faz o seu peito, independente do tamanho que ele tiver, da forma, seja ele pequeno, médio, enorme, de pitomba, de tábua, um peito de hormônio ou de silicone. É a travesti que faz o seu peito. Nesse momento, sinto que o peito é uma conquista. Me sinto de peito aberto para todo esse novo momento em que eu me encontro, de aproximação comigo mesma. O peito me aproxima de mim, como se eu tivesse um segredo guardado no peito que nem eu sabia e, quando coloco a prótese, eu descubro.

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)


“Não é o peito que faz a travesti, mas a travesti que faz o seu peito, independente do tamanho que ele tiver, da forma, seja ele pequeno, médio, enorme, de pitomba, de tábua, um peito de hormônio ou de silicone. É a travesti que faz o seu peito” 

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Você fala sobre a paixão que sempre teve pelo seu corpo. Você acha que agora, um pouco mais do que antes, ele está num lugar de atender mais às expectativas da sociedade em relação à mulher, à travesti, ao ideal de feminilidade?
Qualquer transformação que a gente faça, se você mudar esteticamente seu corpo, isso vai ser revelado nas relações. Se você tem cabelo comprido e cortar, vai ser diferente. Quanto mais o feminino está expresso no seu corpo, mais isso fica evidente nas relações. Acho que um peito com certeza modifica, também por isso quis colocar. Não foi só pela sensação de mim para mim mesma, mas também porque gostaria de causar, de provocar algo na minha relação com meu corpo, e entre meu corpo e os outros corpos. Não acho que colocar silicone seja o mais esperado, porque acho que, quanto mais expressamente um corpo é ou se transtorna travesti, mais isso incomoda o entorno. Acho que o peito é um símbolo, carrega uma feminilidade muito forte, mas acho que eu mesma sou o símbolo mais forte que carrego. Com tudo que eu penso, que digo, que canto. Com a minha trajetória. Eu sou o símbolo mais forte da minha total complexidade. O peito vem como uma parte desse símbolo agora, num momento muito importante da minha vida, independente da Linn da Quebrada e da carreira. É uma conquista pessoal, um presente. 

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Aproveitando: tem alguma diferença entre a Linn e a Lina?
Com certeza. A maioria das pessoas conhecem a Linn da Quebrada, são poucas pessoas que conhecem a Lina Pereira. A Linn é parte de mim, ela também sou eu, mas eu também sou a Lina. Na verdade, acho que as duas convivem e, nesse momento, mais do que nunca, tenho feito um ritual de incorporação. Para além da corporação, ou da instituição Linn da Quebrada, que eu inventei para que eu pudesse ter forças. Eu inventei Linn da Quebrada não só como projeção, que acabou se tornando como parte pública de mim, enquanto a Lina Pereira eu poderia dizer que é a parte íntima. Mas também tem uma parte da Linn que é muito íntima, um núcleo em que as duas se conectam, que é o corpo, onde eu estou. Sinto que, por mais que elas sejam partes que tenham as suas diferenças, elas têm seus pontos em comum. Seus pontos incomuns e em comum.

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E quais são esses pontos em comum?
O corpo, a vontade, o desejo, a fragilidade, a potência, a voz, a dúvida. São nesses pontos que a gente se encontra. 

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Falando em paixão, você tem um relacionamento há algum tempo com a Cais, uma pessoa que está com você para te apoiar e para dividir, faz parte da sua rede de apoio. Em Bixa Travesty, a Jup fala que seu “ponto fraco” é querer casar. Queria que você me falasse sobre esse sonho, se ele sempre existiu, como seria o casamento ideal da Lina.
Estamos há dois anos juntas e… acho que não tenho mais o sonho do casamento, sabia? A gente está casada, eu e a Cais, mas acho que o sonho do casamento se dilui, de alguma forma, na minha vida e na minha experiência por entender… [pausa e olha para o nada] Eu nem me lembro, pra ser sincera, de como eu falo isso no filme. Mas acho que a experiência da relação ultrapassa o casamento nesse sentido, do casamento como instituição e como ritual. Acho que a relação, o cotidiano e a intimidade se tornam muito mais vivas e pulsantes em mim do que a necessidade que eu sentia anteriormente. 

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Junto com o processo de transformação do corpo, acredito que a gente passe também pela transformação e desconstrução do nosso desejo. Você viveu esse processo ou explorar sua sexualidade e seu tesão sempre foi um lugar em que você se sentiu confortável para ir e vir?
Acho que não é necessariamente um lugar de conforto, é um lugar de movimento também. O desejo com certeza muda, nosso tesão se desloca e se transforma, mas a gente tem que estar disposta a isso – e não necessariamente é uma certeza. Costumo dizer que nossos afetos e nossos desejos são como um rio. Eles fluem, têm um fluxo, uma correnteza que vai para determinados lugares. É possível desviar o curso de um rio? Sim, mas não é certeza de como isso vai funcionar. Depende das condições do solo, qual investimento de energia estamos dispostas para isso? Pensando em todas essas questões, acho que tenho buscado ser cada vez mais acolhedora comigo e com os meus desejos, inclusive os desejos para além do que é sexual. Do que eu gostaria de falar, de cantar, onde eu quero estar. Para além de sexualidade e de gênero. Em que outros rios e outros rumos eu posso fluir?


“Tenho buscado ser cada vez mais acolhedora comigo e com os meus desejos, inclusive os desejos para além do que é sexual. Do que eu gostaria de falar, de cantar, onde eu quero estar. Para além de sexualidade e de gênero. Em que outros rios e outros rumos eu posso fluir?”

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Faz quase 4 anos que você lançou o Pajubá e, de lá pra cá, a gente viu muites outres artistes queer, não-bináries e que desafiam uma visão mais limitada de gênero surgirem. Agora, vem aí o Trava Línguas, que vai trazer outros ritmos, outras sonoridades, num cenário musical que está – ao meu ver – um pouco mais preparado para receber a potência que é a sua música. Está mesmo?
Toda a descoberta de construção de identidade, de abertura de caminhos, me proporcionou chegar do outro lado do mundo, conhecer e chegar em outros lugares. Mas, ao mesmo tempo, eu enviadesci, fui bixa preta, mulher, bixa travesty, e chego aos meus 30 anos me perguntando quem sou eu. Para descobrir isso, precisei voltar um pouco atrás e entender que, para enfrentar, é preciso resgatar memórias que me foram proibidas. Entender qual posição eu ocupo nesse tabuleiro do mercado. Entender quem sou eu é principalmente quem sou eu dentro desse mercado. Que eu não sou mais a bixa preta, a bixa travesty, não sou mulher… e quem sou eu como representação desse mercado, que não sou eu também. Eu sou o atrito dessa representação que o mercado usa pra vender. O mercado quer que eu seja empoderada o tempo todo, que a gente corresponda a uma imagem que não diz mais respeito a mim, quer que eu continue falando sobre as mesmas coisas. Traz as mesmas perguntas e espera as mesmas respostas. Quando isso acontece – se você está em outro lugar, mas te questionam sobre onde você estava antes –, você tem que voltar e dar conta de uma representação. Então, sua posição não muda. O mercado faz isso para que consiga nos capturar, que aquilo consiga ser capturado, porque aquilo vende. É um esgotamento da sua imagem e uma preservação do espaço que você ocupa, assim eles conseguem prever os nossos movimentos. É como se dissessem “aqui é o espaço da sua revolta, milita aqui dentro”. Quando nos definem – definir, gosto de entender essa palavra como “o que dá fim – dentro desse espaço de militância, estão nos limitando e limitando nossa relação com o público. Por exemplo, quando falam em “música de militância”, “música LGBT”. Não é isso, gente. Como se eu, Liniker, Pabllo Vittar, Gloria Groove, Jup do Bairro e tantas outras estivéssemos no mesmo lugar, fazendo a mesma coisa, sendo que nossas produções são muito diferentes. O que a gente está fazendo é múltiplo. Você não fala “música heterossexual, música cisgênera”, fala? Isso só demonstra que nós somos uma exceção dentro do babado todo. É claro que falar sobre direitos LGBTQIA+, pautas da comunidade negra, tudo isso está na minha música, mas não precisa ser sublinhado. Quando você sublinha, isso dificulta que o público entenda o que é que você está propondo ali naquela relação. Vão pensar que entenderam, mas não.

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Não atrapalha que não exista esse entendimento?
Eu venho da performance e, quando eu propunha algo, as pessoas não esperam, não sabem como se relacionar com aquilo. Você vai olhar com estranhamento e vai ficar um tempo tentando entender o que é que está na sua frente. Vai criar uma relação com aquela relação. Isso aconteceu com o Pajubá. As pessoas não estavam preparadas para aquilo e se relacionam com o álbum até entender e formar uma relação, o que leva um tempo. Agora, o mercado já quer definir aquilo que eu faço, esperam que eu faça novamente música de resistência, esperando o empoderamento. Isso limita a nossa relação, o que ela poderia ser. Sinto que, nesse momento, consegui fazer esse giro comigo mesma. Não o que o mercado espera, mas o que eu precisava fazer. Descobri, mais uma vez, quem sou eu, quem sou eu nesse momento. Redescobri porque que eu faço arte independente da venda, das etiquetas. Vai ser uma nova relação com o público, quase como se fosse um pedido: me olha de novo? Me ouça de novo, como se você não me conhecesse, porque eu mesma não me conheço. 


“Sinto que, nesse momento, consegui fazer esse giro comigo mesma. Não o que o mercado espera, mas o que eu precisava fazer. Redescobri porque que eu faço arte independente da venda, das etiquetas. Vai ser uma nova relação com o público, quase como se fosse um pedido: me olha de novo? Me ouve de novo, como se você não me conhecesse, porque eu mesma não me conheço”

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Você iniciou um movimento na música e no comportamento, trouxe pautas que a mídia não estava preparada e que inspiraram muitas pessoas. Depois de você, muitos outros artistas queers, travestis, trans vieram à tona. Isso já tem impacto em uma nova geração LGBTQIA+?
Essas pessoas sempre existiram e sempre estiveram criando. Só foi possível que eu criasse essas coisas porque sou fruto do meu tempo. Antes de mim, tiveram todas aquelas pessoas, desde Marsha P. Johnson, Silvia Rivera, Jorge Lafont, Lacraia e milhares de outras que foram cruciais para construir o que estamos construindo hoje. Que, através de seus corpos, construíram fissuras em fissuras. O corte na repetição, no vício desse pacto narcísico da cisgeneridade normativa e branca. Isso eu digo do meu corpo e da minha voz enquanto travesti, negra, periférica, que veio da Fazenda da Juta. Percebo, sim, que há um impacto em todas nós, porque a gente consegue tensionar o presente com outra força. Nossa comunidade já está mais articulada e, por isso, a gente consegue minimamente construir caminhos um pouco mais seguros. Tantas outras me acompanham desde sempre e produzem esse pensamento comigo. Além de mim, temos muitas outras aqui no Brasil construindo seus pensamentos e narrativas através da música, do cinema, do audiovisual. Com certeza, os meios de comunicação e a indústria não estavam preparados – assim como ainda não estão. A indústria nos coopta e tenta cooptar nosso pensamento para transformá-lo em produto e nos esgotar nessa competição de mercado. É um fluxo de trabalho que se repete há muito tempo, é como se eles compreendessem que o que nós trazemos são temas a serem esgotados. Mas eu acredito que não são temas, são as nossas vidas. A nossa identidade não caracteriza o nosso trabalho. Ela caracteriza o momento no tempo em que estamos vivendo, por ter artistas trans, travestis, drag queens ou queers que estão produzindo e, a partir disso, somos catalogadas a partir das nossas identidades e etiquetadas assim. Mas isso não necessariamente diz respeito à nossa arte.

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Por quê?
Pessoas heterossexuais sempre falaram a partir de seus desejos, das suas relações. Falaram da vida sexual que tiveram – já víamos isso no funk, no cinema –, as pessoas cis-heteronormativas retratando suas narrativas sexuais, seus amores e desamores. Quando isso acontece com a gente, parece que isso se torna o objeto. Saímos de um corpo abjeto para nos tornarmos um corpo objeto. Isso nos caracteriza como uma exceção, que eu entendo que é quase como colocar o olhar da diversidade sobre nós mesmas.

Você é um símbolo para pessoas trans e travestis, um ícone quando a gente fala sobre gênero no Brasil na nossa época. Isso te incomoda em algum momento?
Acho que é um lugar que não me representa. Sei o quanto tudo que eu construí é importante, mas, como disse, entendo a representatividade como bênçãos e maldições. Ela é importante se não a enxergarmos como objetivo final, mas como um processo, um caminho para chegar a outro lugar. Existem pessoas que me representam, que nos representam, mas são muitas. Não acredito numa representatividade una, que também é construída a partir de um viés do mercado. Construo meu trabalho, tudo que eu faço, não para ser representativa, ou para um lugar de representação. Acredito em um lugar de apresentação. Estou apresentando minhas ideias, meus pensamentos, meus movimentos e, conjuntamente, estamos construindo um movimento, um fluxo que é feito por muitas pessoas, que são importantes para uma cena. Ela não pode nos deixar confortáveis – nem eu confortável com representar uma comunidade, porque isso não acontece e nunca vai ser possível, com meu corpo, minhas fragilidades e potências, representar toda uma comunidade. Acho que temos que entender, cada vez mais, que todas nós somos corpos políticos e temos um papel crucial de responsabilidade pelo momento histórico que estamos construindo. É o presente. Esses termos acabam ficando caducos porque vão sendo esgotados pela mídia, pela gente mesmo, porque usamos eles quase como memes, hashtags. Assim como é importante construí-los, também é importante saber a hora de abandoná-los.

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)


“”Construo meu trabalho, tudo que eu faço, não para ser representativa, ou para um lugar de representação. Acredito em um lugar de apresentação. Estou apresentando minhas ideias, meus pensamentos, meus movimentos e, conjuntamente, estamos construindo um movimento, um fluxo que é feito por muitas pessoas”

Assim como mais artistes queer dentro da música, a gente vê também um espaço se abrindo, ainda que menos do que o desejável, para ritmos que antes eram mais restritos à periferia. O funk, o 150 bpm, uma mistura disso com o rap – tudo isso tem se tornado mais mainstream e mais pop. O que a sociedade – e a branquitude – têm a aprender com os saberes e a cultura da periferia?
Acho que todas nós temos muito a aprender com todo o saber da cultura periférica, com toda uma produção de saber a partir das nossas experiências, mas também a partir de tudo que a gente tem construído. São muitos anos, muitos corpos, e é o saber da rua, do encontro, da vida, da vivência. Assim, eu acho que a cisgeneridade branca pode absorver um pouco disso, um saber que tá fora do seu umbigo, para além desse pacto estabelecido com o espelho, de olhar só para o igual. É a cultura da diferença mesmo, entender que todas nós somos diferentes, sim, mas, apesar de tudo isso, ainda temos muita coisa em comum. Todas temos a absorver desse encontro, mas principalmente a cisgeneridade branca, que precisa abrir os olhos para outros mundos marginalizados e minorizados, que têm muito a oferecer.

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

Na pandemia, você voltou a morar com sua mãe, né?
Não, minha mãe veio ficar comigo um tempo, quando fiz a cirurgia do peito, e ficou três meses comigo. Quis que ela ficasse comigo até ela se vacinar – e, ainda bem, ela se vacinou.

A relação de vocês sempre foi super próxima?
Fui morar com minha mãe quando tinha 12 anos. Antes disso, eu era criada pela minha tia. Assim como muitas outras histórias que se repetem, quando eu nasci, meu pai sumiu, desapareceu, nos abandonou, e ela teve que trabalhar para conseguir me manter, mesmo que a distância. Voltei a morar com ela aos 12, então as primeiras memórias que tenho com a minha mãe são de construção de intimidade a partir daí. Sinto que, na adolescência, foi um período de ir me aproximando dela, em que ela entendia, assim como muitas outras mães, que carinho é ter comida dentro de casa, é conseguir possibilitar a manutenção da minha vida, e que eu tivesse saúde, alimento, um mínimo de dignidade. Quando saio de casa e vou morar sozinha, nossa relação passa a ficar cada vez melhor. Acho que vou compreendendo ela como mulher, além de vê-la como mãe, e isso se torna crucial para que a gente construa uma relação mais complexa, onde eu consigo vê-la – e ela consegue me ver também para além de filha, mas também como uma pessoa, com desejos, vontades, movimentos. Cada vez mais, a gente tem se aproximado, tem ficado mais próxima, mesmo que a distância. Fiquei muito apegada a ela nesse momento que ficamos juntas por três meses. Ela é muito carente, eu também sou, mas nossa relação está ficando cada vez mais saudável. Fiquei mais apegada do que eu imaginaria nesse período, chorei horrores quando ela foi embora [risos]. Foi difícil essa separação, ainda tá sendo, mas foi importante também. Ela queria voltar pra casa dela em São José do Rio Preto e eu entendo isso.

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)

A gente na Elástica fala muito sobre afeto, sobre fazer jornalismo que toque as pessoas e sobre o quanto estamos carentes disso nos últimos tempos – e parece que só piora. E falo isso de um lugar cis, um lugar masculino. Por isso, essa minha pergunta é sobre afeto, especialmente para as pessoas trans e travestis. Como é que a gente pode combater essa falta de afeto para vocês, para elas, e tornar o lugar que a gente vive mais justo, decente e igual?
Acho que é voltar essa pergunta para si mesmo. Quando a gente se pergunta isso, temos que olhar em volta e entender quais são os vínculos afetivos e efetivos que estão sendo construídos. Quais são os laços que vocês têm estabelecido, inclusive materialmente, entendendo onde estão as pessoas trans e travestis na sua vida. Quantas pessoas trans e travestis vocês conhecem? Com quantas tem vínculos? Com quantas vocês trabalham, com quantas vocês se importam? Esses são os afetos que nos interessam, os que realmente movem as estruturas e que salvam nossas vidas.

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(Camila Tuon (CeGê)/Fotografia)
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Ficha técnica

DIREÇÃO CRIATIVA
Kareen Sayuri

FOTOGRAFIA
Camila Tuon (CeGê)

STYLING
Gabiru (CeGê)

BELEZA
Amanda Pris

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AGRADECIMENTOS
Escola das Piores (locação) e Teatro de Sanidades

CeGê é um duo criativo de artistas visuais independentes. Conheça mais do trabalho delas aqui.

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