Headliner do MECA Inhotim, a cantora baiana fala sobre suas raízes, a relação com a música, a vontade de ser mãe e espiritualidade
por Alexandre MakhloufAtualizado em 29 jun 2022, 12h33 - Publicado em
28 jun 2022
21h01
ogo que Majur abre a câmera para começarmos nossa entrevista, pergunto da origem de seu nome: bonito, sonoro, incomum, único. Ela abre um sorriso e, com o vozeirão que conhecemos e que costuma embalar plateias cheias, ela começa a responder. “Dentro dos processos de encontro comigo mesma, uma das coisas que eu precisava entender era o nome que eu colocaria depois da minha transição. Não queria fugir do nome que o meu pai tinha colocado, porque era o mesmo que o dele. Então mantive o M inicial e fui criando o restante para transformar em um nome tão meu. Peguei todo o nome que eu tinha: MA são as duas primeiras letras do nome do meu pai, e JUR é uma criação minha para como se fosse ‘Júnior'”, explica. Brinco que, assim como Madonna, ela não precisa de um sobrenome. O sorriso vira gargalhada. “Mas quem precisa de sobrenome, se eu tenho esse tamanho todo? Um nome só está suficiente”, brinca, ressaltando seus inesquecíveis 1,93 m.
Nossa conversa com a cantora baiana de apenas 26 anos é como ver Majur num palco: meio hipnótico, meio transcendental e muito maravilhoso. Com uma estética bem definida e que faz parte do espetáculo que ela leva para os palcos, Majur faz parte de uma nova geração da música brasileira que chegou questionando o status quo – ainda bem. Antes de encontrar sua voz e sua potência musical, ela estudou design, apesar de a paixão sempre ter sido moda. “Entendi que estudar era um mecanismo para você se manter vivo. Na época, não tinha dinheiro para fazer moda. Aí entrei em design – e acho que uma das maiores influências foi De repente, 30, um filme que vi quando tinha nove anos e me despertou para a publicidade e a propaganda. Queria muito vender uma imagem, algo novo, e só depois eu percebi que eu queria construir a mim mesma”, ela lembra.
Foi na faculdade que ela enriqueceu o processo de criação de Majur. Tudo que a cantora faz é extremamente pensado, e o resultado que vemos é fruto de estudo e trabalho constantes. “É claro que tem fatores da minha vida, da minha etnia, da minha nacionalidade. Eu trago a brasilidade em muito do que eu apresento. A gente pega coisas e cria o novo – e por quê não? Eu sou de uma nova geração, que chegou para criar coisas completamente diferentes.”
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“Eu trago a brasilidade em muito do que eu apresento. A gente pega coisas e cria o novo – e por quê não? Eu sou de uma nova geração, que chegou para criar coisas completamente diferentes”
Mas o campo da imagem, cedo ou tarde, precisou dividir os holofotes com a vocação para a música. Não era paixão nova: desde os cinco anos, Majur cantava no coral do colégio e, quando entendeu sua verdadeira vocação, deixou a faculdade de lado e rumou para os bares boêmios de Salvador. Fez o que pouquíssimos artistas conseguiriam: levou centenas de pessoas para ouvir suas versões de músicas consagradas – e atraiu gigantes da música. Até que, em 17 de novembro de 2018, entendeu que estava pronta para mergulhar de vez na indústria musical. “Foi o meu primeiro show e também data do lançamento do primeiro EP, Colorir, de três músicas criadas com o Jaguar Andrade, grande guitarrista brasileiro – que eu conheci nesse bar onde eu cantava. Um mês depois, conheci Caetano num festival da Mídia Ninja. Estavam falando sobre mim, que eu poderia ser uma nova voz, e ele foi lá conferir. E aí aconteceu toda a magia”, ela lembra, sempre reforçando a gratidão pelo padrinho e pela madrinha na profissão, Paula Lavigne.
O restante dessa história a maioria de nós, felizmente, teve o prazer de acompanhar. Majur cresceu de importância, firmou-se como uma das mais novas e proeminentes vozes da música, cantou “Amar.Elo” no Theatro Municipal de São Paulo ao lado de Emicida e Pabllo Vittar, música que, para ela, é o start de uma revolução. À Elástica, Majur topou falar sobre tudo: das suas origens e raízes, passando pela relação com a natureza e os orixás, até deixar escapar que está noiva e, ainda em 2022, vai oficilizar sua união com Josué Amazonas, bailarino e coreógrafo de sua equipe. Sem deixar de lado, claro, sua primeira vez como headliner de um festival: o MECA Inhotim, que rola entre 12 e 14 de agosto. Confira a seguir o papo completo.
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Como é sua relação com a música? Estudo música desde os cinco anos. Minha mãe me colocou no Coro da Orquestra Sinfônica da Juventude de Salvador, e esse era um projeto social incrível que levava crianças carentes para a arte – e eu fui uma delas. Cantei nesse coral até os 14 anos, quando entrei no Colégio da Polícia Militar de Salvador. Lá, também tinha um coral, e eu permaneci cantando. A música sempre esteve presente, mas eu não compreendia que isso seria minha profissão, que me levaria aos lugares e me apresentaria o mundo. Em Salvador, a ideia de ser artista era praticamente sinônimo de ser pobre, a não ser que você seja algo surreal de famoso. Mas eu sempre quis vencer desafios, gosto de provar para mim mesma que é possível. Eu provo minha existência para o mundo diariamente, então por que eu não poderia fazer isso?
Foi quando eu saí de Design, pego tudo isso, crio a Majur e vou para os bares boêmios de Salvador cantar. Comecei meus shows com meus amigos, baixo, guitarra e bateria, e a coisa foi crescendo. Percebia que mais e mais pessoas vinham não só pelo jeito que eu cantava, mas pela minha performance, a imagem que eu passava, pelo jeito que eu usava minha voz para fazer versões diferentes das músicas que elas já conheciam. Isso me deu destaque porque me colocou no lugar de uma intérprete que fazia diferente com canções novas e antigas.
Qual você considera que foi o turning point da sua carreira, aquele momento que você olhou e pensou: “uau, tá rolando!” Lembro do último show que eu fiz ali na Barra, no La Bouche, conhecido por fazer apresentações um pouco mais sofisticadas. Um espaço completamente aberto em que eu consegui colocar 450 pessoas sentadas no bar. Foi ali que eu entendi. Comecei o show às 16h e fui percebendo onde a música que saía de mim poderia me levar. O bar lotou, ficaram até às 19h para me ver cantar. Ali que eu entendi que poderia ir para uma casa de show, cobrar entrada e saber que pagariam para me ver. 17 de novembro de 2018 foi o meu primeiro show e também data do lançamento do primeiro EP, Colorir, de três músicas criadas com o Jaguar Andrade, grande guitarrista brasileiro – que eu conheci nesse bar onde eu cantava. Um mês depois, Caetano conheceu Majur, num festival da Mídia Ninja. Estavam falando sobre mim, que eu poderia ser uma nova voz, e ele foi lá conferir.
E aí surgiu toda a magia desse encontro, que é a magia da música. A música tem esse poder de evaporar aquilo que é necessário para as pessoas. Esse momento de procura de quando você vai bombar, emergir para o grande público. Isso é necessário para essa mística do universo musical. No momento que eu apareci, sendo uma mulher trans, preta, no Brasil, junto a Caetano Veloso e Paula, tudo isso foi muito costurado para que a gente tenha um movimento revolucionário na música brasileira. Muita coisa nesse sentido veio depois daí, toda essa diversidade que entra no line-up dos festivais brasileiros é resultado de muito trabalho, atenção e foco.
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“‘Amar.Elo’ junta três pessoas potentes: uma mulher trans preta, um homem preto e uma pessoa que representa o movimento LGBTQIA+ no Brasil e no mundo. A junção dessas três imagens é poderosa para combater racismo, LGBTfobia, transfobia”
Falando nisso, queria te perguntar especificamente sobre sua participação em Amar.Elo, com Emicida e Pabllo. Como foi gravar com esses dois ícones e qual a importância de trazer as mensagens contidas na música e no sample do Belchior? Esse convite aconteceu no meu primeiro show em São Paulo. O Emicida chegou encapuzado, não sabia que ele estava lá, e eu fiquei sabendo depois que ele já tinha combinado com a Paula Lavigne essa surpresa para mim. Fiquei chocada! Pedi para ele subir no palco e fazer um freestyle comigo, e no final ele fez o convite de “Amar.Elo”. Essa música é o momento de start da revolução. Antes, eu ainda estava me construindo, precisava aprender muita coisa. Se hoje eu conheço o mercado da música, justamente é por ter passado por Caetano e Paula. “Amar.Elo” foi o momento de jogar pra fora, sair da caixa e do óbvio, encontrar pessoas. Foi meu primeiro feat realmente grande, falando de uma música atemporal que fala sobre a gente nunca se entregar à dor e lutar pelos nossos sonhos, que cada um de nós somos responsáveis pela realização do que a gente sonha. “Amar.Elo” junta três pessoas potentes: uma mulher trans preta, um homem preto e uma pessoa que representa o movimento LGBTQIA+ no Brasil e no mundo. A junção dessas três imagens é poderosa para combater tudo que acontece na nossa sociedade: racismo, LGBTfobia, transfobia, além de machismo e outras questões que nos atravessam. A gente estava junto, sem precisar dizer nada, apenas cantando com nosso corpo político. Foram nossos corpos que fizeram as pessoas se conectarem e se sentirem pertencentes. Não é à toa que “Amar.Elo” tem mais de 30 milhões de reproduções nas plataformas de streaming.
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Em “Flua”, você fala “se deixa viver, diversidade não tem refém, eu posso ser quem eu quiser ser”. Como você equilibra essa necessidade de alcançar novos espaços com a importância de, infelizmente, ainda ter que falar repetidamente sobre algumas coisas no campo da representatividade? Postei no Twitter recentemente que eu odeio esses dias de visibilidade. Dia da Visibilidade LGBTQIA+, Dia da Visibilidade Trans, porque é um dia que o mercado – econômico, social, todos – nos dão uma colher de chá nesse dia. Quase como quem diz “me perdoem por tudo porque hoje estamos falando de vocês, agora tá pago”. Sendo que não, nós existimos todos os dias. O que me motiva a continuar representando e porque consigo ir além disso, colocar outras pessoas comigo, fazendo os outros subirem junto, e é assim que a gente faz revolução. Também continuo porque represento uma construção, sou símbolo e construo um cenário para que outras como eu possam imaginar chegar nesse lugar. Eu, que estou lá na frente, sou a voz e consigo acessar agora – e só agora – esse espaço de visibilidade, tenho que falar para essas pessoas que é possível, que elas também podem.
Nossa política não deveria ser de representação, porque isso não é revolução, não muda nada. Nossa política tem que ser diária, de inclusão das pessoas em todos os lugares. A gente não quer ser representada só através da TV. Sabe uma coisa incrível que eu tenho visto recentemente? Travestis trabalhando. Em farmácias, mercados, no shopping – você entende o que é uma travesti trabalhando num shopping em Salvador? Esse é o movimento que a gente cobrou muito na internet durante a pandemia, quando estamos debatendo os temas raciais e de gênero. Foi através da união que a gente conseguiu fazer esse movimento de ter a população e os consumidores cobrando, envergonhando as empresas que não tinham diversidade no quadro de funcionários. E, é claro, ainda estamos aprendendo, sempre juntas. Quando a gente se posiciona, é quando a gente sai desse pula-pula da representatividade e transforma ele em trampolim. Não é porque eu cheguei que acaba aqui. Ainda falta muita gente pra chegar.
“A gente não quer ser representada só através da TV. Sabe uma coisa incrível que eu tenho visto recentemente? Travestis trabalhando. Em farmácias, mercados, no shopping – você entende o que é uma travesti trabalhando num shopping em Salvador? Esse é o movimento que a gente sempre cobrou”
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Atualmente, temos uma profusão de talentos trans que ganharam espaço na indústria da música: você, Liniker, Lina… Na nossa perspectiva, a nova música brasileira é trans e é preta, finalmente. Mas ainda tem gente que coloca vocês numa nomenclatura “cantoras trans”, “cantoras de diversidade”, como se fosse um gênero musical. Qual seu recado para quem ainda insiste nesse erro? Amo que você falou sobre isso, porque eu comecei a agir de forma independente sobre essa questão. Comecei a não aceitar entrevistas sobre diversidade. Não me chame para falar sobre eu ser trans, sobre a minha experiência pessoal. Para além de você saber sobre a existência das pessoas trans, é preciso aprender a como lidar com elas. Em vez de saber o que, é hora de saber como. Falta educação – e eu não atendo mais entrevistas sobre isso, com raras exceções. Eu não posso pautar minha vida em cima do meu gênero. Eu não nasci trans, eu sou uma mulher trans e pronto. Meu nome não é “sou trans”, meu nome é Majur dos Santos Conceição. Ser trans é meu gênero, e isso é algo que compete a mim. Não sou uma fonte de pesquisa para seus problemas, como quando erram pronomes. Isso dói, acessar esses espaços machuca. Sou muito consciente e só topo falar sobre isso quando realmente enxergo que posso promover mudança ao endereçar essas questões.
Muitas das suas músicas usam palavras e fazem referências à cultura africana e a matrizes de religião africana. Gostaria que você me contasse sobre sua relação com a espiritualidade. Vou começar pelo nome do disco, porque Ojunifé significa “olhos do amor”, e é meu nome no candomblé. Eu fui feita no candomblé, faz pouco mais de um ano, Majur é feita de Xangô com Iemanjá. Digo que sou metade espiritual e metade humana. Minha vida só pode ser vivida de verdade quando encontrei a espiritualidade, que me deu forças para andar e respirar, pensar sobre os meus sonhos. Ninguém estava lá para me dizer se eu podia fazer ou não – pelo contrário, as pessoas só diziam o que eu não podia. A religião me deu algo a acreditar para que eu pudesse lutar. As pessoas acham que é motivo de orgulho dizer que lutamos, e claro, dá orgulho mesmo. Mas, meu amor, como é cansativo. Se você está sempre lutando, e você nunca descansa, as coisas são completamente diferentes. Acredito que as entidades, os orixás, as energias da natureza são algo que a gente pode e deve compartilhar. A natureza faz parte de mim assim como eu faço parte dela. Fiquei mais forte para ser, estar, cantar. Em “Agô”, digo que Majur chegou porque foi só depois de ter encontrado esse meu lado espiritual que eu cheguei de verdade.
“A natureza faz parte de mim assim como eu faço parte dela. Fiquei mais forte para ser, estar, cantar. Em ‘Agô’, digo que Majur chegou porque foi só depois de ter encontrado esse meu lado espiritual que eu cheguei de verdade”
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Agora em agosto, você é uma das headliners do MECA Inhotim. A Ojinufé Tour também está a todo vapor com a melhora da pandemia. Como tem sido essa experiência de turnê nesse momento de carreira? Como o público geral tem te recebido Brasil afora? Para uma cantora de MPB, cantar no MECA é o auge! Ser headline de um festival como esse é incrível. Estou orgulhosa do meu trabalho, eles provavelmente já viram uma montagem do show e por isso me convidaram para ocupar esse lugar. A gente lutou muito – eu, o Amazonas como coreógrafo, a banda comandada por Ziat. Nós oferecemos uma experiência visual e sensorial, como reproduzimos as canções. Eu não ofereço um show, é um espetáculo. As pessoas precisam desse momento de encontrar com si próprias, questionar sua própria autoestima, o amor que sentem por elas mesmas. Isso é o que eu produzo em cima do palco. E estou ansiosíssima para fazer isso em Inhotim.
Vou aproveitar que você falou do Amazonas e te fazer uma pergunta um pouco mais pessoal agora. a internet foi à loucura recentemente quando a Pepita compartilhou a primeira foto do filho e, na mesma época, com a gravidez e o parto do Roberto, homem trans que deu à luz ao Noah. Sei que você é jovem, mas você pensa em ser mãe? Como é a sua relação com a sua família? Olha, ainda estou na fase de “noiva”, vou me casar ainda esse ano – e acho que é a primeira vez que falo disso! Já estamos nos preparativos, em breve vou poder falar tudo: data, local… Construção de família é falar sobre apoio, sobre estar junto. Minha mãe, a maior do mundo, sempre esteve do meu lado, assim como minha irmã. Elas me ensinaram que família é base, e a família do Amazonas é assim também. E eu quero muito ser mãe. Imagina eu chegando na escola com as mochilinhas na mão?