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Novamente 22

MAM inaugura exposição “Moderno onde? Moderno quando?” questionando a importância de São Paulo para o Modernismo artístico brasileiro

por Artur Tavares 12 out 2021 00h45
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(Clube Lambada/Ilustração)

cidade de São Paulo tem vivido momentos incríveis para a arte desde que a reabertura dos museus e galerias de arte tem ganhado fôlego com a vacinação contra a covid-19. Apenas no Parque do Ibirapuera, o pavilhão da Bienal recebe a 34ª edição do mais importante evento artístico da América Latina. A poucos metros dali, o Museu de Arte Moderna (MAM) apresenta a fabulosa mostra “Moderno onde? Moderno quando?”, que vem para se adiantar à comemoração da Semana de Arte Moderna de 1922.

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Com curadoria de Aracy A. Amaral e Regina Teixeira de Barros, dois nomes de peso da história e crítica artística brasileira, a exposição tenta reverter a ideia dos livros de história de que o Modernismo foi fundado por Tarsila do Amaral, Oswald e Mário de Andrade, Candido Portinari e muitos outros em São Paulo naquele evento realizado no Teatro Municipal, jogando luz, ao contrário, em produções artísticas realizadas em outros lugares do Brasil e até mesmo em períodos anteriores a 1922.

“Quisemos mostrar que há uma continuidade, um desejo de renovação e que, pode ter surgido naquele intuito de fazer a Semana de 22, um foco muito forte em São Paulo, mas que isso não significa que o resto do Brasil não possuía inquietações e movimentos que tentavam se adequar a novas informações que surgiam por toda parte”, explica Aracy Amaral. Nós conversamos com ela e Regina Teixeira de Barros. Confira:

Fachada do Theatro Municipal, sem data. Valério Vieira
Fachada do Theatro Municipal, sem data. Valério Vieira (foto Coleção de arte da cidade - CCSP, secretaria municipal da Cultura - Prefeitura Municipal de São Paulo/Reprodução)

A exposição “Moderno onde? Moderno quando?” é aberta propondo uma reflexão crítica à produção Modernista da Semana de 22 sob a ótica de questionar se o evento foi a primeira e fundamental pedra na mudança de paradigmas sobre a arte no Brasil. Como foi estruturar a mostra ao mesmo tempo apresentando obras icônicas do período e criando provocações latentes nos espectadores sobre seus significados?
Aracy A. Amaral: A ideia foi mostrar que as coisas não são divididas de forma estanque. Não há 1922 e antes de 1922. É uma coisa fluida, o desenvolvimento da cultura de um país, de uma região, de um tempo. Quisemos mostrar que havia esse desejo de inovação e renovação, uma inquietação no Brasil inteiro. Tentamos mostrar que havia uma linha condutora que vai desde fins do século 19 até, digamos, pós 1930, com a presença do regime Vargas e a decretação do Estado Novo.

Quisemos mostrar que há uma continuidade, um desejo de renovação e que, pode ter surgido naquele intuito de fazer a Semana de 22, um foco muito forte em São Paulo, mas que isso não significa que o resto do Brasil não possuía inquietações e movimentos que tentavam se adequar a novas informações que surgiam por toda parte.

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(foto Isabella Matheus/Reprodução)

Regina Teixeira de Barros: Na verdade não estamos fazendo uma crítica à Arte Moderna, e sim repensando a questão da Semana de 22 como um divisor de águas.

Aracy A. Amaral: Sei que as novas gerações encaram o Modernismo coisas que vão até a década de 1950. Para mim, não. É o que ocorre no caso brasileiro até a década de 1930. Depois disso, ponho como um realismo social que vai surgir no regime Vargas, por razões óbvias, seja a crise da bolsa, a queda dos preços do café, fruto de todo esse debacle que vai se abater por todo mundo ocidental a partir da Crise de 1929.

“Não há 1922 e antes de 1922. É uma coisa fluida, o desenvolvimento da cultura de um país, de uma região, de um tempo. Quisemos mostrar que havia esse desejo de inovação e renovação, uma inquietação no Brasil inteiro”

Aracy A. Amaral, curadora
Coqueiros, 1930, Regina Gomide Grazjohn Graz
Coqueiros, 1930, Regina Gomide Grazjohn Graz (foto Isabella Matheus/Reprodução)

O Modernismo tem sido revisitado já há algum tempo por teóricos e historiadores da arte, e muitos críticos apontam o movimento como tendo sido completamente elitista e excludente, nunca tendo englobado culturas populares ou expressões criadas fora do contexto urbano paulistano, como por exemplo a obra literária de Lima Barreto ou o próprio samba. A que se deve essa celebração centenária tão crítica, ou, porque demoramos um século para rever questões tão íntimas e fundamentais do modernismo?
Aracy A. Amaral: Você fala sobre culturas populares, mas é o contrário. Mário de Andrade era um pesquisador de cultura popular. O samba surge com Donga, em 1917, ainda no fim da Primeira Guerra Mundial, e vamos ver que essa música popular vai permear todos os carnavais do Brasil. Portanto, não é uma cultura excluída, e sim absorvida. Havia um olho para o popular, para a música popular, que inclusive é exportada para Paris. Vamos ver que o popular está na mira dos modernistas, sobretudo de Mário de Andrade. Havia um grupo surgido na Suíça que, sim, era mais afrancesado, mas havia outro grupo muito mais com os pés na terra e nas nossas tradições populares.

Regina Teixeira de Barros: Talvez tenhamos que separar muito bem o que foi o evento no Municipal e o que foi o Modernismo. O evento tinha música clássica, e não samba. Mas, outras manifestações modernas, e mesmo Mário, como a Aracy lembrou, se interessam sobre o assunto, e cada vez mais vão absorvendo que a cultura popular é uma reserva de brasilidade, uma fonte de identidade nacional não contaminada pelos francesismos. Há que separar a Semana e vê-la dentro de um contexto maior. Nesse contexto, a cultura popular é muito importante.

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Mogi das Cruzes, 1932-1933, Alfredo Volpi
Mogi das Cruzes, 1932-1933, Alfredo Volpi (foto Romulo Fialdini/Reprodução)

Então os livros de história dão importância demais para a Semana de 22? Porque o que estamos celebrando é seu centenário, e não aquilo que surgiu a partir dele.
Regina Teixeira de Barros: Acho que esse ponto que você levanta, que aprendemos na escola que foi a Semana que traz o Modernismo para o Brasil, é uma construção. Logo que a Semana acontece, não há repercussão alguma. As primeiras reflexões vão acontecer 20 anos depois, com Mário retomando, e depois, em 1944, o Oswald fazendo movimento similar. Mas, a Semana de 22 se tornou um marco como entendemos quando ela fez 50 anos, quando o MASP fez uma grande comemoração, e tanto governo estadual quanto o governo municipal investiram nesses festejos, tomando para São Paulo uma liderança, cavando um lugar nessa história da cultura do Brasil. E aí isso vai se cristalizando. Nossa ideia foi justamente diluir essa cristalização e propor um pensamento mais diversificado, e não bitolado.

Aracy A. Amaral: Muito mais brasileiro, mostrando como o Brasil estava preocupado e inquieto. Isso não é uma coisa de 22, esse desejo de se inovar no Brasil, seja no contexto urbanístico do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Recife, de Belém, de Manaus. Havia um desejo, saindo do Império, de construir um país novo. Essas novidades, junto às novas tecnologias, como telefone, luz elétrica, carros, eram dados urbanísticos novos, que passam a dominar os meios culturais.

“Logo que a Semana acontece, não há repercussão alguma. As primeiras reflexões vão acontecer 20 anos depois, com Mário retomando, e depois, em 1944, o Oswald fazendo movimento similar. Mas, a Semana de 22 se tornou um marco como entendemos quando ela fez 50 anos, quando o MASP fez uma grande comemoração, e tanto governo estadual quanto o governo municipal investiram nesses festejos”

Regina Teixeira de Barros, curadora
Paisagem brasileira, 1925, Lasar Segall
Paisagem brasileira, 1925, Lasar Segall (foto Jorge Bastos/Reprodução)

Se os modernistas de 22 pleiteavam o futuro, porque não temos uma produção mais expressiva junto às novas tecnologias, como o cinema e a fotografia, havendo uma continuidade dos meios considerados clássicos, como a pintura e a música erudita?
Aracy A. Amaral: Nesse começo não há, mas “Limite”, o filme de Mário Peixoto, é um marco no cinema brasileiro. Se lermos os livros de Adhemar Gonzaga, veremos que ele traça uma história do cinema brasileiro a partir de salas de espetáculos no Rio de Janeiro e em São Paulo onde filmes do cinema mudo eram altamente frequentados, inclusive pelos próprios modernistas. Havia um interesse, sem dúvida, pelo cinema e pela fotografia. Fazia parte de uma vertente do movimento modernista.

Regina Teixeira de Barros: Talvez a fotografia não tenha sido usada experimentalmente, como foi com o Valério Vieira, que é quase uma exceção, mas era usada por pintores. Almeida Junior usava fotografias para pintar a partir de fotos. Era uma prática corriqueira já desde o fim do século 19, ela como instrumento auxiliar para a pintura.

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Aracy A. Amaral: A própria Tarsila, ou Portinari, utilizavam a fotografia quando faziam retratos encomendados. A fotografia se mantém como ferramenta. Mas, no caso do Valério Vieira, quisemos colocá-lo, e fiquei muito surpresa com a reação de muitos visitantes que já manifestaram que nunca tinham ouvido falar sobre seu trabalho, porque ele foi o primeiro. Mas, acontece que é uma arte que ao longo do século 20 teve um desenvolvimento incrível. Até que, no final do século, Belém do Pará tem uma repercussão incrível de seus fotógrafos.

Tribunal de justiça de São Paulo, 1902, Valério Vieira
Tribunal de justiça de São Paulo, 1902, Valério Vieira (foto Sonia Balady/Reprodução)

Qual a importância de fazer esse movimento e trazer nomes deixados de lado no passado para dentro de instituições consagradas como o MAM? Como isso pode beneficiar o cenário artístico e também a produção de artistas contemporâneos?
Regina Teixeira de Barros: O fato de apresentarmos artistas menos conhecidos, como Zina Aita, Wilheim Haarberg, Victor Dubugras, estimula novas pesquisas. E, nesse sentido, sai daquele discurso viciado que, de certa maneira, é o mais conhecido. Sabermos que fim levou a Zina Aita, se ela produziu ou não em Nápoles, isso tem que ser pesquisado. Acho que são estímulos. E mesmo isso que a Aracy mencionou, das pessoas não conhecerem Valério Vieira, pode instigar artistas a produzirem fotomontagens.

O violeiro, 1899, Almeida Júnior
O violeiro, 1899, Almeida Júnior (Almeida Júnior/Reprodução)

As discussões sociais contemporâneas sobre pós-colonialismo falam muito sobre o desejo de embranquecimento dos brasileiros durante o século XX mirando uma espécie de face do progresso – que sabemos que não se realizou até hoje. Quando Portinari pinta “O Mestiço”, Tarsila pinta os “Operários”, entre muitas outras obras do período, sabemos que a contribuição da elite paulistana nesse aspecto tão horrível do racismo brasileiro não foi intencional. Mas, como essas noções de brasilidade foram distorcidas também na arte para a preservação de um status quo?
Regina Teixeira de Barros: Eu acho que os “Operários”, como a própria Aracy já analisou muitas vezes, tem um discurso ali mais sobre os imigrantes, e não sobre os afrodescendentes, os ex-escravizados ou os indígenas. Naquele momento, os imigrantes eram uma população importante nas capitais e também no interior de São Paulo. Agora, é fato que esse racismo estrutural foi reforçado ou continuado ao longo do século 20. Se formos pensar em Di Cavalcanti, que pinta “As Mulatas” – que já é um nome complicado de usar -, as mulatas não são negras, são mestiças. Acho que havia mesmo uma vontade de encontrar uma síntese do que seria o homem brasileiro, uma mistura do negro e do branco. Então, Di Cavalcanti, que estava em busca dessa identidade brasileira, buscava uma síntese. É uma síntese do branqueamento? Sim. Mas é uma coisa de época, que não temos como reverter. E sim como olhar, pensar e analisar quanto isso afetou nosso modo de raciocinar.

Ferreiro, 1910, Artur Timótheo da Costa
Ferreiro, 1910, Artur Timótheo da Costa (foto Jaime Acioli/Reprodução)

Aracy A. Amaral: Paralelamente aos casos de Tarsila, Portinari e Di Calvalcanti, eu citaria o caso de Arthur Timótheo da Costa, artista acadêmico negro que está na exposição e que pinta o negro com dignidade. É um artista que hoje está no Museu Nacional de Belas Artes, e que foi um dos raros artistas negros que teve acesso a prêmios de viagens à Paris etc.

No caso de Di Cavalcanti, Tarsila e Portinari, além desse ponto que a Regina levanta, eu diria que todos os três foram militantes socialistas. Di e Portinari eram do Partido Comunista Brasileiro e, como tal, dignificavam o povo brasileiro em sua expressão máxima. O próprio Di Cavalcanti era mestiço, e por toda sua carreira ele gritou por essa personagem mulata, que é a musa de toda sua obra. Ele foi fiel, mesmo depois de ter deixado o partido, às suas raízes. No caso de Portinari, ele foi deputado pelo Partido Comunista durante o regime Vargas, inclusive bastante respeitado. Seja nos painéis que fez para o Ministério da Cultura ou para a Biblioteca do Congresso, em Washington, ele sempre exaltou o homem brasileiro, e o homem brasileiro mestiço.

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Que bobagem falar de pureza! Como é que vamos falar de pureza em um país como o Brasil? Não tem cabimento, realmente. Nós não temos pureza alguma, nem no chefe de governo, nem em ninguém. Nem nas ideias, nem nas pessoas.

“Di Cavalcanti, que estava em busca dessa identidade brasileira, buscava uma síntese. É uma síntese do branqueamento? Sim. Mas é uma coisa de época, que não temos como reverter”

Regina Teixeira de Barros, curadora
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(foto Romulo Fialdini/Reprodução)

“Moderno onde? Moderno quando?” acontece ao mesmo tempo e ao lado da Bienal de São Paulo, que nessa edição mira para uma ressignificação artística através da inclusão – o MAM inclusive está com sua outra galeria reservada para um recorte de artistas indígenas que também estão na Bienal. Quais as contribuições que “Moderno onde? Moderno quando?” trazem para o debate da contemporaneidade não apenas das artes, mas do estado das coisas no Brasil?
Regina Teixeira de Barros: As exposições não foram pensadas para acontecer juntas. Talvez, lá atrás, a diretoria do MAM tenha pensado nisso conjuntamente. Mas elas funcionam como exposições isoladas. Claro que a exposição indígena faz parte da Bienal. No entanto, nós não estávamos olhando para isso, e sim para esse centenário que está por vir. E, a ideia inicial, era fazer essa exposição em fevereiro de 2021, mas a pandemia foi prorrogando, por isso nos tornamos contemporâneos da Bienal.

Aracy A. Amaral: Também acho que a Bienal é ventilada por toda uma onda informacional que está atualmente em voga, que são os negros e indígenas. Tanto que qualquer galeria de arte, hoje, tem a presença desses dois contingentes de criadores.

Regina Teixeira de Barros: Acho que é um movimento que tem que vingar. O florescimento desse movimento está muito evidente, mas acho que é por uma razão benéfica. Me parece que isso será absorvido e diluído com naturalidade.

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Mas, a confluência entre exposições foi benéfica. Nós vemos o Modernismo como o passado, mas é importante pela confluência de pessoas mesmo, de gente que visita a Bienal e tem o MAM em sua frente, e certamente vai passar lá para ver esses primeiros momentos desse Modernismo.

Homens trabalhando, 1922, Zina Aita
Homens trabalhando, 1922, Zina Aita (foto Jaime Acioli/Reprodução)
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