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Muito pano pra Manga

No Manga, restaurante de alta gastronomia em Salvador, ingredientes locais frescos são a estrela de um menu autoral, afetivo e muito bem feito

por Alexandre Makhlouf Atualizado em 2 Maio 2022, 11h13 - Publicado em 29 abr 2022 02h37
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(Clube Lambada/Ilustração)

m casarão vermelho de três andares no coração do Rio Vermelho, em Salvador, na frente da Casa de Iemanjá, abriga sabores surpreendentes, gastronomia de nível internacional e uma família que coloca todo o conhecimento e amor pela comida em seu cardápio. Sim, uma família, já que os chefs que comandam o Manga, o casal Dante e Katrin Bassi, moram no último andar do restaurante com seus três filhos, que podem ser vistos diariamente brincando no salão do restaurante ou sentados à mesa com alguns outros membros da família enquanto os pais criam maravilhas na cozinha.

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“Com nossa rotina, foi o único jeito de aliar família e trabalho. Para nós, tem muito mais lados positivos. Em qualquer pequeno intervalo na cozinha podemos subir e ficar com nossos filhos e, às vezes, durante o serviço, eles descem e ficam numa salinha ao lado da cozinha. Claro que tem essa coisa de quase nunca desligar 100% do trabalho, mas não nos afeta tanto”, explica o pai.

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Ostra, sorvete de pimenta de cheiro, gel de tomate e maionese de ostra – os chefs reproduzem a casca da ostra usando amido de milho, pó de ostra e outros ingredientes, criando uma experiência realista.
Ostra, sorvete de pimenta de cheiro, gel de tomate e maionese de ostra – os chefs reproduzem a casca da ostra usando amido de milho, pó de ostra e outros ingredientes, criando uma experiência realista. (Leonardo Freire/Divulgação)
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(Kafe e Dante Bassi, chefs e proprietários do Manga. Leonardo Freire/Divulgação)

Em um momento no qual se discute tanto o maternar, o paternar e as diversas vertentes possíveis para educar uma criança, Dante e Katrin fazem essa escolha que parece ousada e conta com um tempero adicional a essa dinâmica: as criações culturalmente diferentes dos pais. Ele, baiano nato, com vivência nos Estados Unidos e na Europa, filho de advogados; ela, alemã do interior do país, de uma família de fazendeiros. 

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“A decisão de morar aqui no restaurante foi justamente para tê-los [os filhos] por perto e manter uma rotina de cozinha profissional. Quando estamos só nós dois na cozinha, antes dos outros cozinheiros chegarem, eles ficam lá com a gente e, às vezes, até ‘ajudam'”

Kafe Bassi

Mas será que morar e trabalhar no mesmo lugar dá certo mesmo? Basta observar no dia a dia para entender que dá, sim, e é uma escolha que vem do mesmo lugar de amor do qual a maioria das decisões parentais vêm. “Eles estão sempre por aqui. A decisão de morar aqui no restaurante foi justamente para tê-los por perto e manter uma rotina de cozinha profissional. Quando estamos só nós dois na cozinha, antes dos outros cozinheiros chegarem, eles ficam lá com a gente e, às vezes, até ‘ajudam'”, complementa a mãe.

À esq., o Vermelho frito por inteiro; e o Crudo de Boi, gelatina de costela na brasa, crocantes de batata e picles de mostarda que faz parte do menu degustação de 12 etapas.
À esq., o Vermelho frito por inteiro; e o Crudo de Boi, gelatina de costela na brasa, crocantes de batata e picles de mostarda que faz parte do menu degustação de 12 etapas. (Leonardo Freire/Divulgação)
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Bahia contemporânea

A dualidade das criações culturais também se reflete no cardápio – e que cardápio, meus amigos. Enquanto Dante é responsável pela criação das entradas e dos pratos principais, Katrin – Kafe, para os íntimos – é a gênia por detrás das sobremesas e dos pães do cardápio. E, correndo o risco de fazer uma crítica gastronômica emocionada, vou contra todos os protocolos (e meu paladar habitual) para falar do menu de trás para frente, começando pelas sobremesas. 

Longe de ser um restaurante tradicionalmente baiano, o Manga usa toda a experiência dos chefs em restaurantes de renome como o Daniel, em Nova York, Schauenstein Schloss, na Suíça, e o D.O.M, em São Paulo, para aliar combinar criatividade ao respeito à sazonalidade de cada ingrediente. O resultado dessa equação? Criações deliciosas como o Jasmin Manga (sorbet de manga, parfait de jasmin, tagliatelle e espuma de manga verde, flor de jasmin manga, R$ 36), Pitaya com parfait de água de flor de laranjeira, sorbet e sagu de romã e crocante de hibisco (R$ 36) e a Tartelette de Cajarana, com parfait de chá Rooibos, sorvete de cajarana, mousse de samburá e crocante de cajarana (R$ 39). Os sabores são sempre equilibrados, a medida certa entre acidez e doçura, e explodem na boca e no visual – tudo é montado meticulosamente e a apresentação conta muito, já que a primeira bocada é dada com os olhos. 

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Impossível falar sobre apresentação e sobremesas, aliás, sem mencionar os picolés. Tome nota, tire print, guarde essa informação como quiser, mas guarde: ir ao Manga e não provar pelo menos um dos picolés, que têm a forma das frutas e não lembra em nada o sorvete de palito que você amava tomar na praia quando era criança, é praticamente uma necessidade. Destaque para o de caju – uma das frutas preferidas deste editor que vos escreve –, que têm formato da fruta e uma castanha de verdade acoplada ao palito de madeira (que você só descobre que está ali quando termina de comer). Uma crostinha doce e amarelada cobre um sorvete de castanha de caju saboroso que, por sua vez, envolve uma compota de caju que não é muito doce e te faz querer comer mais um (R$ 19). 

“Queremos sempre refletir o terroir da Bahia. Tentamos trazer os produtos únicos daqui de forma diferente, para desafiar e surpreender. A aproximação com os produtores é vital para termos acesso a ingredientes de qualidade e frescos. Demorou bastante para criar a rede de fornecedores que temos hoje e tivemos que correr atrás. Essa proximidade entre produtor e chef aqui na Bahia ainda está um pouco atrasada em relação a outros lugares, então essa iniciativa é importante para começar a mudar esse cenário”, os chefs explicam.

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(Os sensacionais picolés de caju – crosta doce amarelada que cobre um sorvete de castanha de caju, recheado com compota da fruta. Leonardo Freire/Divulgação)
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Produtores locais & degustação

Esse comprometimento com o frescor e a valorização dos ingredientes locais é coisa séria para Dante e Kafe, que têm uma rotina cansativa e regrada: quase que diariamente, um deles vai ao mercado ver os insumos disponíveis e conversar com os fornecedores para saber quais produtos estão em seu melhor momento. “Esse é o ponto de partida na nossa cozinha, o ingrediente. Uma vez que decidimos sobre os ingredientes, começamos a testar preparações e técnicas para apresentar esse produto de maneira nova e, principalmente, gostosa. A sazonalidade que dita quando um prato entra ou sai do menu, por isso o diálogo direto com os produtores é tão importante para a gente”, explica Dante. 

Alguns peixes, por exemplo, vêm da cooperativa de pescadores da Casa de Iemanjá, em frente ao Manga, reforçando o compromisso com a população local e, claro, que tudo chega à mesa quase que diretamente do mar. Caso do Vermelho frito por inteiro, que é servido com cabeça e tudo – , pendurado em uma estrutura de metal feita especialmente para o restaurante e acompanhado de batatas fritas, maionese e molho lambão (R$ 120, para duas pessoas). 

Crudo de cordeiro Dorper, queijo de cabra, água de levante, cebola e confit de laranja – parte do menu degustação
Crudo de cordeiro Dorper, queijo de cabra, água de levante, cebola e confit de laranja – parte do menu degustação (Leonardo Freire/Divulgação)

“Esse é o ponto de partida na nossa cozinha, o ingrediente. Uma vez que decidimos sobre os ingredientes, começamos a testar preparações e técnicas para apresentar esse produto de maneira nova e, principalmente, gostosa. A sazonalidade que dita quando um prato entra ou sai do menu”

Dante Bassi
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Agora, se você estiver em Salvador e disposto a viver uma experiência completa do Manga, não há pedida melhor do que o menu degustação. Os pratos podem variar conforme a sazonalidade e a disponibilidade, mas alguns estão sempre por lá. Caso da Melancia  prensada com vinagre de capim santo, algas, gelatina de pepino e ervas da horta (impressionante como visualmente chega a parecer uma carne, com interior rosada, mas a sensação na boca é de refrescância e doçura), o Consomé de galinha caipira com bouquet garni da horta da casa (a palavra-chave aqui é perfume e sabor intenso) e a Ostra, sorvete de pimenta de cheiro, gel de tomate e maionese de ostra. Essa última receita merece destaque especial: os chefs fazem a concha da ostra com maizena, pó de ostra e outros ingredientes que deixam a experiência ridiculamente realista – ainda mais que é um prato servido ao lado de conchas de verdade, para reforçar o quão bem feito é o trabalho feito nessa cozinha.

Agora que te deixamos com água na boca, completamos dizendo que é uma experiência de alta gastronomia que, como em todo lugar do mundo, demanda um investimento: o menu completo de 7 etapas custa R$ 195 por pessoa ou R$ 360 por pessoa com harmonização – ou seja, cada prato é acompanhado de uma taça de vinho, todos cuidadosamente selecionados pelo sommelier da casa, Jeferson Maia Timoteo, uma simpatia. Também há a versão estendida, com 12 etapas, que sai por R$ 290 por pessoa ou R$ 510 por pessoa com harmonização.

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A Janela do Manga, aberta para a rua.
A Janela do Manga, aberta para a rua. (Leonardo Freire/Divulgação)

Janela para o mundo

Nem todo mundo pode – ou quer – gastar tanto assim em um almoço e jantar, mas esse não é o único jeito de provar o que o Manga tem a oferecer. Desde o fim do ano passado, está aberta a Janela do Manga, um espaço mais casual, mais barato e diretamente conectado com a rua, como manda a tradição do Rio Vermelho. “Reativamos o nosso bar, que fica no andar térreo, integrando a rua através da abertura do janelão. A ideia é que as pessoas comam ali mesmo, na calçada, aproveitando desde o fim da tarde até a noite”, conta Dante.

O espaço tem cardápio exclusivo, com sanduíches, petiscos, sobremesas e drinks – a carta é a mesma do restaurante, com coquetelaria assinada pelo estrelado Jean Ponce). Tudo seguindo as diretrizes de excelência, frescor e execução do restaurante, claro. Aqui, você pode provar os croquetes de costela, a tábua de charcutaria (todos os embutidos são feitos no restaurante e são extremamente saborosos) ou se refrescar com um dos sensacionais picolés já citados.

“Além de nos possibilitar fazer um tipo de comida que também gostamos de cozinhar, mas não se encaixa na proposta de menu degustação, essa democratização diversifica e amplia nossa clientela. Temos muitos clientes que hoje frequentam o restaurante para fazer menu degustação, mas que nos conheceram através do café da manhã ou da janela lá embaixo”, explica Dante.

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Todos os itens da Janela do Manga serão servidos em embalagens descartáveis e biodegradáveis. “Para os drinks, oferecemos copo reutilizável, vendido à preço de custo, que pode ser trocado a cada bebida pedida e, ao fim da refeição, levado para casa. A nossa ideia é produzir o mínimo de lixo possível”, continua Kafe.

Se você chegou ao fim desse texto sem entender por que nunca tinha ouvido falar do Manga – o que era meu caso antes de conhecê-lo em uma ocasião criada para isso –, fica aqui o lembrete: existe muito mais comida boa, mais sabor e mais gente fazendo coisas incríveis do que o eixo Rio-São Paulo e o algoritmo das redes sociais nos reserva. Na próxima viagem a Salvador, ou a qualquer outro destino, procure pelos nomes e lugares que se dedicam a explorar o melhor da região. Dante e Kafe são especiais e, igual eles, acho difícil de encontrar. Mas tenho certeza que existem outros Mangas espalhados pelo Brasil que merecem ser descobertos e apreciados.

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Restaurante Manga
Rua Professora Almerinda Dultra, 40, Rio Vermelho – Salvador.
Quarta a sábado, das 17h30 às 22h30
mangamar.com.br

* Elástica viajou a convite do Restaurante Manga

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