Acompanhamos a exibição de 'Marighella' na ocupação do MTST Carolina Maria de Jesus e vimos que a luta do guerrilheiro está mais viva do que nunca
por Beatriz Lourenço
18 nov 2021
23h20
ontar a história de Carlos Marighella é uma grande responsabilidade. Com garra, muito suor e dedicação, o jornalista Mário Magalhães o fez ao lançar uma biografia em 2012. Agora, o ator Wagner Moura, que estreia na direção cinematográfica, faz uma adaptação do livro-reportagem, um filme aplaudido nos maiores festivais do circuito internacional que estava embargado numa espécie de censura em sua terra natal.
A jornada contou com diversos percalços, como a falta de financiamento, troca de protagonista e atrasos no lançamento. Ao todo, dois anos se passaram desde a finalização do longa. As justificativas são de ordem burocrática, mas o próprio diretor diz que o impedimento foi ideológico. Isso porque dois pedidos da produtora, O2, para a estreia foram recusados pela Ancine. Na época, Jair Bolsonaro falava abertamente no controle do órgão e no impedimento de obras com algum viés social.
Sem desanimar com o caminho tortuoso, Wagner Moura afirma que a trajetória trouxe diversos aprendizados. Durante as gravações, a equipe do filme fez um trabalho de campo na ocupação do MTST Povo Sem Medo, localizada em São Bernardo do Campo, a fim de entender o legado de luta do grande guerrilheiro. “O que eu tenho visto nesses lugares por onde passei é que, se por um lado estamos vivendo um momento distópico, por outro, a luta está cada vez mais forte”, comenta.
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Já na semana que deu um show no Roda Viva, da TV Cultura, Wagner compareceu a uma exibição histórica na ocupação Carolina Maria de Jesus, Zona Leste de São Paulo (SP). Humberto Carrão, Bella Camero e Pastor Henrique Vieira estiveram presentes durante a sessão. Lideranças do movimento negro e o coordenador da Frente Povo Sem Medo, Guilherme Boulos, também compareceram.
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Herói da democracia
Carlos Marighella foi um dos nomes mais importantes do último século no Brasil. Nascido em 5 de dezembro de 1911, em Salvador, é descendente dos haussás — povos africanos trazidos do Sudão. Foram eles que protagonizaram a Revolta dos Malês, um dos maiores levantes de escravos contra a opressão. Isso é importante porque a sede por justiça foi herdada por Carlinhos, como o revolucionário era chamado pelos entes queridos.
“O que eu tenho visto nesses lugares por onde passei é que, se por um lado estamos vivendo um momento distópico, por outro, a luta está cada vez mais forte”
Wagner Moura, diretor
Ele tinha paixão pela leitura e pelo conhecimento, tanto que escreveu poemas, livros e ingressou no curso de Engenharia da Escola Politécnica da Bahia. No entanto, a notoriedade veio pela vida política, que inspira até hoje aqueles que defendem um mundo melhor, com igualdade social, educação e direitos civis. O baiano foi um dos responsáveis pela criação da Ação Libertadora Nacional, a principal organização de guerrilha com o objetivo de acabar com a ditadura militar. Até então, ele era dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas sua carta de demissão mostrou que as divergências com o partido eram sobre o modo de fazer a revolução.
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Preso, torturado e vivendo na clandestinidade, o militante conseguiu chamar a atenção para os horrores da repressão. Em seus textos, sempre deixava claro que o compromisso com a liberdade da população era sua prioridade. No meio tempo, amava, ria, chorava e era um amigo leal. Após anos de luta, foi pego em uma emboscada planejada pelo delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), Sérgio Paranhos Fleury. Morreu com cinco tiros no peito, mas sua memória ainda vive dentro daqueles que têm os mesmos ideais.
Da adaptação do trabalho de Magalhães vêm os detalhes sobre a vivência que Marighella tinha na luta armada, sua relação com a companheira Clara (no filme, protagonizada por Adriana Esteves) e com o filho Carlinhos (Matheus Araújo), além da perseguição travada pelo delegado Lúcio (Bruno Gagliasso) — inspirado em Fleury.
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“Marighella” já é o filme brasileiro mais assistido de 2021, com mais de 216 mil espectadores e R$ 4.2 milhões de arrecadação durante os primeiros 15 dias em exibição. Só no feriado da Proclamação da República levou 75 mil pessoas aos cinemas.
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Terra: um direito garantido por lei
Ao todo, mil cadeiras foram distribuídas pela ocupação Carolina Maria de Jesus, no Jardim Iguatemi. Muitos chegaram cedo para conseguir assistir de perto. Outros, se contentavam em ver a tela grande pela primeira vez. “Com Bolsonaro no governo, seu autoritarismo e intolerância, a gente relembrar a história de Carlos Marighella é fundamental para o nosso país”, discursa Guilherme Boulos. “Marighella lutava para que seu povo não fosse massacrado. Ele representava a democracia”, completa Claudia Garcez, líder da ocupação.
No espaço reservado, uma confeiteira orgulhosa exibe um bolo com uma foto das gravações para o elenco. “Receber todos aqui dá visibilidade para o movimento”, dizem os acampados em conversa com nossa reportagem. Por dois momentos durante o filme, eles aplaudem em sinal de reconhecimento de que suas histórias estavam sendo encenadas diante de seus olhos.
Me assusto quando vejo repercutir não os sentimentos de união e força desse momento, mas uma foto do diretor comendo uma quentinha de camarão. As redes sociais se inflamaram com a dissimulação dos setores mais podres da sociedade denunciando uma suposta hipocrisia entre um movimento de sem-teto e um acarajé bem montadinho num prato de plástico, um carinho dos moradores dali com a terra natal do diretor.
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“Com Bolsonaro no governo, seu autoritarismo e intolerância, a gente relembrar a história de Carlos Marighella é fundamental para o nosso país”
Guilherme Boulos, líder do MTST
O terreno que abrigou o evento foi ocupado na madrugada do dia 15 de maio deste ano por cerca de 600 famílias. Hoje, segundo Claudia, mais de 4 mil já reivindicam o espaço. “Recebemos pessoas todos os dias, gente que não tem onde morar e que precisa de casa. Essa é a nossa forma de denunciar as terras paradas e a falta de auxílio do Estado para os órgãos competentes”, diz. A militante conta que a cada dia chegam mais e mais pessoas. E espera-se que o número aumente, já que a taxa de desemprego atinge 14,4 milhões de brasileiros. “Quem chega aqui é porque perdeu o emprego, está sofrendo com o fim do auxílio emergencial ou não conseguiu se estabelecer após chegar do interior em busca de sustento”, afirma.
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Na área de 62 mil metros quadrados, os 16 “bairros” são conhecidos como Grupos. Já as tendas, de dois por dois ou três por três metros, são feitas de lona ou folhas de madeirite fincadas na terra — insuficientes para barrar as intempéries, como o frio e a chuva que daquela noite. Apesar de muitas, é possível identificar quem é quem, já que o número de cada “G” é estampado de forma visível.
Os três “Gs” com moradores são localizados próximos da cozinha central, que oferece cerca de mil refeições solidárias por dia — essa é a única região com energia elétrica. Logo ao lado fica o palco, que abriga eventos, assembleias e debates sobre os próximos passos de cada um. “Estamos lutando pela liberdade e pela garantia dos nossos direitos. O que queremos é viver em um país que escuta as necessidades de todos e dá moradia, além de garantir a alimentação e a educação de qualidade”, reivindica a moradora Larissa Rebeca.
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“Estamos lutando pela liberdade e pela garantia dos nossos direitos. O que queremos é viver em um país que escuta as necessidades de todos e dá moradia, além de garantir a alimentação e a educação de qualidade”
Larissa Rebeca, moradora
Segundo o Plano Diretor de São Paulo, o terreno está em uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), e portanto deveria ser destinado à construção de moradias populares, suprindo o déficit habitacional na região. Além de não ter nem matrícula nem proprietário, o imóvel não consta recolhimento de IPTU desde 2006 em sua certidão de débitos municipais, acumulando uma dívida de quase 3 milhões de reais. “Essa é uma disputa legítima. Nós vamos fincar o pé aqui e não sair até que sejamos atendidos. Fazemos disso uma trincheira e é assim que sobrevivemos”, diz Claudia.
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Ao atravessar a rua, vê-se o fim de outra ocupação — essa, sem a liderança do MTST. O que sobrou são restos de lixo e madeira que relembram as 300 famílias que moravam ali. A reintegração de posse ocorreu em agosto e contou com 200 policiais militares, 25 viaturas e diversas retroescavadeiras. Os moradores atearam fogo em barracos e todos ficaram sem ter para onde ir.
“Eu fui uma vez até a Palestina e visitei uma comunidade no vale do Rio Jordão que tinha sido derrubada várias vezes pelo exército israelense. E cada vez que era derrubada, o pessoal reconstruia. Montaram até uma pequena fábrica de blocos dentro do lugar para isso. Aí eu li em um muro uma frase escrita: ‘existir é resistir’”, conta Boulos. “Só o fato deles estarem lá existindo já era um ato de resistência. No Brasil de hoje, esse povo que está aqui lutando para ter um teto cria uma das formas mais importantes de resistência.”
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Existir é resistir
No começo do longa, Chico Science & Nação Zumbi cantam que o homem coletivo sente a necessidade de lutar. Não há lugar mais apropriado para tal constatação senão uma ocupação do MTST. “São milhões de pessoas com fome, ruas cheias de gente morando e milhares de mortos pela falta de saúde. Resistir faz muito sentido quando temos um governo particularmente hostil às minorias”, relata Wagner Moura.
No dicionário, resistir é um verbo sinônimo de conservar-se firme, não sucumbir, não ceder. Para alguns, ele quer dizer lutar pela própria vida. Para outros, se traduz na denúncia pública das mazelas do Estado. Uma delas é o racismo, que ainda está impregnado em nossa sociedade e divide quem tem dinheiro e quem não tem. Durante a pandemia da covid-19, por exemplo, as mulheres negras foram as que mais perderam postos de trabalho (16,7%). “Para nós, mulheres negras e periféricas, resistir é ocupar mais espaços sociais e manter o povo unido e indo para a rua. É, durante esse governo, lutar contra a fome e pela moradia digna”, explica Gilvânia Reis Gonçalves, coordenadora estadual do MTST.
“Para nós, mulheres negras e periféricas, resistir é ocupar mais espaços sociais e manter o povo unido e indo para a rua. É, durante esse governo, lutar contra a fome e pela moradia digna”
Gilvânia Gonçalves, coordenadora do MTST
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No país que mais mata pessoas trans, resistir também significa manter-se de pé e buscar por mais representatividade. Em 2020, 175 travestis e mulheres transexuais foram assassinadas. A alta é de 41% em relação ao ano anterior, quando o registro era de 124 homicídios. “Para mim, que saí aos 17 anos de casa quando me entendi como travesti, essa é uma palavra que tem muito conteúdo. Sabemos que existe uma repressão muito grande a qualquer coisa que muda a ordem do sistema existente — é o que mostra a história desde a ditadura militar até a morte da Marielle Franco”, discorre a artista Zara Dobura. “É por isso que nós precisamos ser vistas nas telas, no roteiro, na produção… Se a gente não aparece, o nosso corpo não é humanizado.”
No caso da luta por moradia, resistir é um ato diário. Isso porque o MTST age diante do número de ações com pedido de despejo no estado de São Paulo, que aumentou 79% no primeiro trimestre de 2021, mesmo quando milhares de pessoas estavam em situação de vulnerabilidade. “Estamos falando sobre isso no lugar mais apropriado possível. São Paulo é uma cidade que tem mais apartamentos vazios do que gente que precisa de uma casa para morar. Resistência é a ação conjunta de todas essas pessoas que trabalham pelo país, mas que não recebem dos que dizem amá-lo o respeito que deveriam”, diz o ator Humberto Carrão.
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“Estamos falando sobre isso no lugar mais apropriado possível. São Paulo é uma cidade que tem mais apartamentos vazios do que gente que precisa de uma casa para morar. Resistência é a ação conjunta de todas essas pessoas que trabalham pelo país, mas que não recebem dos que dizem amá-lo o respeito que deveriam”
Humberto Carrão, ator
A cena mais icônica da narrativa mostra uma entrevista de Marighella à revista francesa Front em 1964, na qual declara que não teve tempo para ter medo. A frase, que agora estampa sua lápide, se aplica a todos aqueles que ainda lutam por seus direitos básicos, como terra, alimentação, educação e saúde.
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“Resistência é não naturalizar a desigualdade, a violência e a opressão. É não permitir que o coração fique apático diante da dor do mundo”, afirma o pastor e ator Henrique Vieira. “O primeiro ato de resistência é salvar o coração da indiferença. Logo depois, agir coletivamente para transformar a realidade em prol da dignidade humana e da liberdade. É se colocar em movimento para construir um futuro de paz, justiça e liberdade.”
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__ As fotografias que acompanham esta matéria são de Caio Guatelli. Saiba mais sobre seu trabalho aqui.
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