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As trovas da filha de Iansã

Aos 70 anos e com toda obra poética reunida em um volume inédito, Miriam Alves tem muito a dizer sobre o Brasil

por Artur Tavares 24 jul 2022 22h01
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(Arte/Redação)

força das palavras de Miriam Alves parecem vir de um espírito guerreiro. Embora a pancada seja pesada, ela não vem desacompanhada de ternura e muita sabedoria. Tendo escrito poesia sem parar pelos últimos 40 anos, a paulistana conversa com a mesma emoção com que vem transmitindo seus sentimentos em palavras há quatro décadas. Revezando entre o riso, a ironia, o carinho, a paciência e o choro emocionado de ver sua obra reunida em um único volume, Miriam soa renovada para continuar entoando em versos seus desejos por uma sociedade melhor.

Assistente social, militante do movimento negro, mulher integrante dos principais coletivos de literatura negra brasileira, pesquisadora e professora, Miriam Alves viu seus Poemas Reunidos serem lançados pela editora Círculo de Poemas no começo deste ano. Agora em junho, a Fósforo lançou Miriam Alves: Plural, livro com ensaios teóricos sobre sua obra, curados pela própria poeta. “Amei o resultado. Como iam falar de mim, só valia falar bem. Se falasse mal, estava fora!”, ela conta entre gargalhadas.

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Plural tem textos de 14 mulheres e um homem acadêmicos, além de um ensaio de Zula Gibi, um heterônimo da própria Miriam. Já Poemas Reunidos apresenta seus textos publicados em mais de 20 anos de Cadernos Negros, livros solo, além de outras coletâneas, zines e muito mais. Neste ano, Miriam ainda foi a homenageada na Bienal do Livro de Brasília.

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Ela falou sobre como se sente celebrada agora, aos 70 anos de idade: “Vou dizer para você exatamente como me sinto, porque tive uma empatia com você, viu! O reconhecimento, invariavelmente, está ligado a me colocar nos aparelhos ideológicos do estado. Tô fora dessa vaidade de dizer: ‘ó, você me reconheceu’. Agora você está vendo minha existência? Mas eu já existia independente de você.”

A autora continua: “Então agora a Miriam está na revista, na Globo. Já discutíamos isso em 1985. Quando a mídia branca vai perceber que o que estamos fazendo é revolucionário, dentro desse sistema vai pinçar um de nós para negar o conjunto. O que faremos? Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz e eu respondemos: somos consequência de um coletivo que vem de antes. Os indivíduos Carolina Maria de Jesus, Machado de Assis ou Lima Barreto não serão pinçados e triturados, ou então branqueados.”

Miriam conta que, assim como sua mãe de cabeça, Iansã, ela carrega uma espada de madeira por onde vai. A sabedoria e o peso da idade, no entanto, fizeram-na ponderar melhor a hora de desembainha-la: “Tenho usado minhas palavras com sutileza”, ela diz.

Em nossa conversa, ela ainda falou da potência de manifestações como o slam e de que maneira as rodas de poesia de hoje estão absolutamente ligadas à época em que Miriam começou a escrever, em 1982, sobre racismo, mercados e bolhas literárias, e sobre sua própria obra.

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(Editora Fósforo/Divulgação)

Os lançamentos de Poemas Reunidos e Plural refletem um momento de mercado em que pesquisas mostram mais mulheres do que homens lendo e dentro do campo acadêmico, com editoras e lojas completamente focadas em uma diversidade dentro do mercado?
Sem desconsiderar as pesquisas, porque como escritora e acadêmica acho que desconsidero o viés da pesquisa, por onde elas começam. Elas já começam tentando afirmar uma máxima, a de que os brasileiros não leem. Havia também a máxima de que os negros não liam e que não escreviam. Parte para firmar uma máxima, não para questionar essa máxima. Quando comecei lá atrás, há quarenta anos, fazia parte dessa máxima de que os negros não leem e escrevem.

Nós quebramos um paradigma, uma máxima. No evoluir da minha vida e da minha militância, sempre coloco uma pergunta: a população brasileira não lê o quê? Não lê Camões, lógico, e nem Guimarães Rosa. Mas essa população que não lê, o que ela lê? Parto de outra premissa, por quê? Faço parte de um movimento literário, de literatura brasileira, que provou que negro lê e escreve também. Eles leem um lugar onde estão refletidos, onde são vistos. E onde são vistos? Na literatura que outro viés de escritores está fazendo? Qual? Uma literatura negra, que se vê.

Mas isso tem importância? Não é dividir o Brasil, que já é dividido? Então somos 55% da população. Se você fala que 55% da população não lê, atinge a mim. E se você fala do que eu não leio, não está falando do que eu leio. Tanto que houve um grande susto do mercado editorial branco durante a Flip de 2018, quando houve uma invasão de população negra em Paraty. De onde saiu tudo aquilo? Enchendo auditórios querendo ver Conceição Evaristo e a Grada Kilomba. Aquilo bagunçou um pouco a situação, aquela grande feira da literatura brasileira foi questionada em público como sendo o arraial da branquitude. E percebe que é o arraial da branquitude, mas que tem outro viés fazendo literatura e arregimentando aquele pessoal que não lê? Como assim? Se não leem, como estão aqui?

Na mesma época, no mesmo momento, no mesmo fato e coincidência histórica de tempo, as livrarias brancas começam a quebrar. Ninguém percebe quando as placas tectônicas começam a se movimentar, só quando há tremores nas casas. E houve tremores.

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(Poema de Miriam Alves/Arte/Arte)

Logo depois, o governo aumentou os impostos dos livros sob o pretexto de que só o rico lê.
Estamos em um país esquizofrênico, e agora a esquizofrenia saiu do hospício e foi para o Palácio. Parece um conto do [Edgar] Allan Poe. Saíram os loucos de tudo que é lugar, ninguém sabia que tinha tantos. Mas ela sempre atuou no Brasil. Porque nós somos criados, eu e você, para sermos malucos. Você foi criado para dizer que a escravidão foi uma coisa bondosa. Só tinha o senhorzinho mal, mas todo resto era bonzinho. Aí te mostram nos livros aqueles negros amarrados, aquele suplício todo, mas aqueles negros eram maus. Mas cadê os brancos bonzinhos que faziam isso? Você tem uma legenda e outra iconografia na sua cara, e não vê.

É como dizer que ninguém vê a violência contra negros no Rio de Janeiro. Ninguém vê o negro sendo amarrado no poste. Eu e você somos criados para não ver. A diferença é que você não vê e não passa por isso. E eu, que diferente de você sou mulher e negra, sou educada para não ver e passo por isso, e sou obrigada a dizer que não existe. Mas está me machucando, me mata, me corta, me estupra. Mas… percebe que fazemos um país esquizofrênico?

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Para mim, tudo que vocês dentro da cultura hegemônica me contam, não é novidade nenhuma. São vocês que não sabiam. Porque nós sabíamos, e tanto sabíamos que estávamos, estamos e estaremos atuando nisso. E vocês precisam fazer pesquisa para saber isso. Eu sei porque vivo isso. E além de viver, atuo, e sempre reivindiquei e sempre fui questionada por isso. Há quarenta anos, quando começamos a falar de literatura negra, do protagonismo dentro dos textos, da questão cognitiva, abríamos a boca e o que vinha de agressão não era fácil!

Antes do mundo ter acabado em 2019, uma das coisas que mais me emocionava era que a plateia, a maioria branca, chorava. Quando falávamos coisas mais contundentes, dava pra ver uma lágrima escorrendo. Principalmente as mais novas, até 30 anos. Choravam como se fossem elas que pegaram o chicote e bateram nos meus antepassados. Acho isso uma catarse, muito bom.

A mudança, para mim, é essa. Antes me xingavam, agora choram. Quero saber qual vai ser a próxima mudança, mas talvez não esteja viva para ver. Não me xinguem e não chorem.

“Há quarenta anos, quando começamos a falar de literatura negra, do protagonismo dentro dos textos, da questão cognitiva, abríamos a boca e o que vinha de agressão não era fácil!”

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(Poema de Miriam Alves/Arte/Redação)

Os Cadernos Negros são a publicação mais longeva em atuação no Brasil hoje, enquanto não há, comparavelmente, longevidade igual no mercado editorial branco. Mas, os Cadernos Negros não vêm desse espaço mercadológico, e sim de resistência, criação de pensamento, de difusão de ideias. O branco se esgotou na profusão das novas ideias?
Não. Não sou tão radical assim, só que existe um esgotamento na proposta mercadológica, porque sua seletividade não é apenas para narrar, e sim colocada para barrar o que na minha época se chamavam de ‘ideias arrojadas’. Segundo o julgamento mercadológico branco, não tem valor de compra e venda. Não tendo um valor de compra e venda, não vou publicar. Sem publicar, evito que isso chegue às pessoas, que se difunda como ideias. Nós, negros, somos mercado. O mercado negro. Que é uma outra visão e atuação de mercado.

Para simplificar, digo que sou descendente da negra do acarajé. Como faço romances com vieses históricos, estudo a questão dos mercados daquela época, dos tabuleiros, dos peixes, dos acarajés, das cocadas, de todas as comidas do santo que viraram guloseimas. Aquilo ali era um mercado muito promissor. De tal modo que aquelas negras e aqueles negros trabalhavam de ameia com os escravocatas. As relações escravistas, ali naquele mercado, já estavam em mudança. Com esse pouco que os negros ficavam, compravam a alforria do outro, que também passava a fazer o mercado. Então, eu também sou mercado, porque enquanto acarajé, libertei muitos braços das correntes e tirei muitos chicotes de costas.

Nós fizemos um mercado, fomos a lugares onde o mercado branco não ia. Porque quando íamos às livrarias, éramos perseguidos pelos seguranças. Até hoje sou perseguida por seguranças em livrarias. Só que agora o carinha negro da porta me reconhece, cara! [ela ri] É legal isso, você sente um treco, uma mudança! O segurança não compra os livros, ele rapta da livraria. Ele confessou para mim, roubou o livro da Eliana Alves Cruz no dia do lançamento e foi lá pedir autógrafo. São estratégias que o branco não percebe, porque não precisa perceber! Não precisa se movimentar dessa forma. Eu preciso me movimentar dessa forma para garantir minha existência, e o segurança também!

Esses 40 anos de formação de um movimento literário são a fundação sólida para que suas obras e de seus colegas estejam hoje nos melhores espaços das livrarias?
Então, eu percebo mudanças, é lógico. Mas fico esperto com elas justamente por causa desse tal de mercado, que é uma figura alegórica, para mim. É a hegemonia das coisas que funcionam nesse país, que está atrelada a uma ideologia de formação de nação que se propõe a isso. Então agora a Miriam está na revista, na Globo. Já discutíamos isso em 1985. Quando a mídia branca vai perceber que o que estamos fazendo é revolucionário, dentro desse sistema vai pinçar um de nós para negar o conjunto. O que faremos? Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz e eu respondemos: somos consequência de um coletivo que vem de antes. Os indivíduos Carolina Maria de Jesus, Machado de Assis ou Lima Barreto não serão pinçados e triturados, ou então branqueados. Nós viemos de uma consequência.

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Dentro da negação, existem teóricos da literatura dizendo que desde o Movimento Modernista não houve no Brasil nenhum outro movimento literário que se imaginava no coletivo. Mas pera aí! Quarenta anos de Cadernos Negros, longevo desse jeito. Todo o tremor que fez não só na questão canônica, acadêmica, e agora no mercado. Isso não é movimento? Se não é movimento literário, meu amor, o que é? O bumbum da Gretchen? Não sei, entendeu! [risos]

“Nós fizemos um mercado, fomos a lugares onde o mercado branco não ia. Porque quando íamos às livrarias, éramos perseguidos pelos seguranças. Até hoje sou perseguida por seguranças em livrarias. Só que agora o carinha negro da porta me reconhece, cara! [ela ri] É legal isso, você sente um treco, uma mudança! O segurança não compra os livros, ele rapta da livraria. Ele confessou para mim, roubou o livro da Eliana Alves Cruz no dia do lançamento e foi lá pedir autógrafo. São estratégias que o branco não percebe”

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(Poema de Miriam Alves/Arte/Redação)
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Você falou de pinçadas, e outros dois tipos de pinçadas negativas me vêm à mente. A primeira delas é o revisionismo que muitos autores brancos estão fazendo hoje em dia, de escrever sobre negras que tinham escravas; como Leandro Narloch e outros idiotas que têm colunas em jornais, são best-seller no mercado, mas tem também o revisionismo de gente como o Sérgio Camargo, da Fundação Palmares, de descreditar o que é feito, dizendo que negros são racistas, que determinado negro ou sua produção intelectual não representa os negros. A reação da hegemonia é muito forte e perversa…
Lembra que falei que somos um país de esquizofrênicos? Você deu dois bons exemplos. Eu conheci o Serginho quando ele tinha 14 anos. Se eu soubesse que viraria isso, teria dado uns bons petelecos na orelha dele! ‘Para menino, larga de ser trouxa!’ [ela ri]. Serginho… já tá um homão, aquele chato!

É muito complexo. Essa questão complexa vem da forma que somos formados, eu e você, todos eles, o Serginho, o Narloch e os outros babacas – eu sou babaca, para eles, e eles são babacas para mim – de negação de um fato que é verdade. Por exemplo: na cultura americana, ninguém nega o fato. Não nega o fato. Em outras culturas, como a inglesa, nega o fato. A cultura brasileira nega o fato. A francesa sai à francesa do fato. Então assim.

Existe um fato. Ele não é pontual. Não aconteceu no Brasil. Ele não aconteceu na Inglaterra ou na China, e sim no mundo. Esse fato mundial foi uma economia da mais perversa. Se chamamos de capitalismo selvagem, o início foi o mercantilismo selvagem, que é mercadejar carnes humanas. É como um canibalismo de trabalho. Só que, para isso, como vou justificar esse canibalismo? Dizendo que não são humanos. Toda ideologia criada nesse momento universal de mercadejar aconteceu no mundo inteiro. Naquele momento, no século 17, o mundo viu pela primeira vez a criação de uma economia global. E foi a mais perversa. Não que o capitalismo não seja, mas quem eram as máquinas? Se, atualmente, meu computador está ultrapassado, eu jogo fora. Mas os humanos também foram usados em um sistema de gerar coisas. É terrível pensar dessa forma, principalmente para mim que sou negra, para conseguir sair do bonzinho, do mauzinho, do não eram pessoas porque andavam de tanga, não eram seres humanos porque não usavam veludos, tinham arco e flecha. Para sair desse pensamento que ainda reina mundialmente.

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E aí falam dos negros que tinham escravos. A escravidão sempre foi um sistema utilizado pela humanidade. Se eu gosto ou não gosto, é outra coisa. A escravidão não começa com a escravidão negra, e sim muito atrás. Mas, ela assume uma versão mercantilista a partir de quando o homem começa a, entre aspas, evoluir com seus aparatos de conquista e de maquinário. Os navios foram foguetes para a Lua! Você começa a ver essa perversidade, que não era perversidade no sentido mercadológico, quando se criam as teorias de bom e mau, de como se via ou não se via.

“Essa questão complexa vem da forma que somos formados, eu e você, todos eles, o Serginho, o Narloch e os outros babacas – eu sou babaca, para eles, e eles são babacas para mim – de negação de um fato que é verdade”

Agora, vou te falar uma coisa. Se você não gosta do capitalismo, sai do seu apartamento, fecha seu computador e vai embora. Você consegue viver longe disso? Não, porque o sistema está todo montado para isso.

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Para você entrar no sistema de produção, tem que usar o que tem. Mas quando esse sistema é feito por seres humanos da sua cor, você não pode. Mas o outro pode. Aí falam que o negro tem um Mercedes. Ele não pode! Esse pensamento de que negro não pode já estava lá. Negro só pode ser escravo, não pode ter escravo. Não estou dizendo se é certo ou errado, estou colocando dentro de um sistema mercadológico.

‘Negro não pode ser patrão. Negro não pode ser racista.’ O Serginho é, porque ele está em um sistema racista. Para ele se distanciar – no caso dele é diferente do mercadológico… Para eu ser aceita, lá atrás, tinha que comprar minha alforria, depois ter possibilidades, tive que usar os instrumentos e maquinarias que tinham na época. E como aquele barão ia gerar o engenho dele? Com o quê? Ele vinha no século 20 pegar tratores do agronegócio para botar lá? Não tinha. Quais eram as máquinas mais modernas naquele momento? Negros! É horrível o que estou falando. Quero que seja horrível o que estou falando. Mas sem essa de negro bonzinho ou mal. Quero que vocês entendam o mecanismo do capitalismo de acumulação que entrava ali.

Quando esses babacas falam que negro tinha escravo, se é no Brasil, falo que sim, negro tinha escravo. Uma brasileira me perguntou, nos Estados Unidos, se eu não ficava brava que na África os negros escravizavam negros? Vou ficar brava com o quê? Negros não escravizavam negros os bantos que escravizavam os zulus, eram os espanhois que escravizavam os portugueses. A Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França. Os turcos que mataram os otomanos. Dá pra entender que você fala isso com um olhar escravocrata? Adoro ver filmes históricos para assistir as carnificinas dos brancos! Para ser rei tinha que estuprar a mãe, assassinar o pai. Ninguém fala que eles não são civilizados. Aqueles são os humanos.

O Serginho é fruto dessa porra toda, faz parte dessa esquizofrenia. E vemos que esse hospício no Planalto colocou todos os esquizóides nas pastas para negá-las. O negro nega o negro, a mulher nega a mulher; uma Tereza Cristina para negar as florestas… Então, ele só está porque existem essas figuras e essa ideologia de destruir por dentro.

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O rap, o slam, os saraus e o funk também são literaturas que não estão contabilizadas nas pesquisas de mercado.
Isso! O pessoal fala que slam não é literatura. Pô, vai começar de novo com esse negócio? Quem te deu esse direito de dizer que slam não é literatura? Porque eu também não era literatura. Hoje dizem que meu poema revolucionou… mas eu nem era literatura para essa hegemonia. Como assim? [risos] Conceição Evaristo nunca foi literatura!

Na Freguesia do Ó, em São Paulo, tem um slam no Largo da Matriz. Minha filha ia lá às sextas-feiras, me convidava para acompanhar toda semana. Um dia, tinha um cara lá declamando um poema, disseram que era dele. Gritei que era de Miriam Alves! São 2 mil negros ali, cara! Causando, né? Com aqueles cabelos, aquelas roupas… Se é branco, está rebelde, se é negro, cuidado que vai te assaltar. Você vê um monte de negros declamando poema, cara! E a polícia ali do lado, lógico. Eles poderiam estar falando qualquer coisa.

Dizem que o slam não é literatura porque trata de coisas pontuais. Mas a literatura é feita de coisas pontuais, imaginárias, e não é só isso. É tudo isso! Se o slam faz isso, cabe. Literatura não é só o que eu faço, o que a Conceição faz, a Geni [Guimarães] faz. É tudo isso! Mas literatura é só o que a Clarice [Lispector] fez, o que a Rachel [de Queiroz] fez. Não é o que a Miriam faz. Literatura é só o que essas senhoras fazem.

E o que fazemos? Literatura de autoria negra. Porra, meu! Para com isso, caralho!

Agora veja: “Dizem-me as rosas. Mas que bobagem, as rosas não falam. Simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti. Queria ver, para ver seus olhos tristonhos, mas, quem sabe, sonhava meus sonhos, enfim.” Ainda fazem seminários para questionar se Cartola tinha a capacidade de escrever essas letras.

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(Poema de Miriam Alves/Arte/Redação)
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Como se manter, ao longo de 40 anos, fazendo poesias que tratam com muito lirismo e delicadeza até os problemas sociais mais urgentes?
Não é assim, mesmo! Eu amo o curador dos meus Poemas Reunidos porque ele me revelou para mim mesmo. Revelou até que eu mentia, porque dizia que comecei em Cadernos Negros, e não em Axé.

Eu passei por várias evoluções, e continuo passando, tanto como pessoa como em amadurecimento poético e de escrita. Tem poemas meus que não são nada sutis, querido. Atualmente, ando declamando, mas tinha os deixado de lado em um momento de me questionar porque falava só daquilo.

Eu falo sobre preconceito e racismo, assim como falo de tudo. Porque faz parte da vida de todos os brasileiros, brancos e negros, cada um em suas posições. O racismo afeta toda uma nação de brancos e negros, que mata suas mentes brilhantes, porque nem sabem o que estão matando. Estou falando de vida, da flor e do tiro da bala perdida. Vou ler um brabinho aqui para você:

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(Poema de Miriam Alves/Arte/Redação)
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Isso não é leve, está longe de ser. Essa é a diferença entre a poesia e a palavra de ordem. A poesia pode conter palavras de ordem. Mas as palavras de ordem nunca serão poesia.

Eu sempre carrego uma espada de madeira comigo, mas quando chegamos a uma certa idade ela tem que ficar na cintura, porque para levantá-la o braço pode bambear. Então, atualmente tenho usado muitas sutilezas. Quando escrevi Mareia, usei de todas as sutilezas para matar. E quando me perguntaram porque matei tanto, ainda disse que acho que não matei tanto quanto nos mataram.

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(Editora Fósforo/Divulgação)

A sua geração, você, Sueli, Conceição, é a primeira a alcançar um reconhecimento…
…em vida, né? [ela me interrompe] Carolina Maria de Jesus não teve, Lélia Gonzalez não teve, Beatriz Nascimento não teve. Vou dizer para você exatamente como me sinto, porque tive uma empatia com você, viu. O reconhecimento, invariavelmente, está ligado a me colocar nos aparelhos ideológicos do estado. Tô fora dessa vaidade de dizer: ‘ó, você me reconheceu’. Agora você está vendo minha existência? Mas eu já existia independente de você.

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É muita prepotência dessa hegemonia branca achar que passa a me reconhecer quando me acha, aos 70 anos. Com quarenta anos de carreira! Estou em quarenta antologias brasileiras e internacionais, fora os Cadernos Negros, que são 20. Sou lida nos Estados Unidos, na França e em Amsterdã! E aí você diz que está me reconhecendo?

Vai tomar no teu cu, tá? Só que não vou falar isso em público, dessa forma. Meu reconhecimento é pelo livro e pela história. Porque o que eu tinha que ser reconhecida dentro desse sistema, eu fui. Sou assistente social há 30 anos, é o que me dá o direito de estar em Maricá falando, podendo abrir as janelas, ver o pôr do sol e escrever um livro por ano. Esse é meu reconhecimento.

O resto, para mim, é ônus do trabalho. Não posso dizer que é frescurada porque quero um prêmio. O prêmio te joga para outro patamar. Não tem graça receber o diploma de funcionário do ano sem ter aumento salarial. Se acha que me conhece, e me reconhece tardiamente, depois de 40 anos de profissão, e 70 anos nas costas, acho que está um pouquinho atrasado, sabe? E não vou me gabar que foi antes de eu morrer.

A única coisa que fiquei muito satisfeita, que chorei muito, foi a publicação dos Poemas Reunidos ainda em vida. Quantos autores brancos ou negros podem dizer que têm suas obras completas até aqui? Apesar de que o Leonardo [Gandolfi, da Círculo de Poemas] disse que achou um poema dentro de um outro livro lá.

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Quando esse livro chegou, eu chorava muito. Pensava na Carolina Maria de Jesus [começa a chorar], na Auta de Souza, e acho que isso aqui eu mereço, isso sim. Para mim, olho e penso: ‘não esperaram eu morrer, cara!’.

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