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Todo dia é dia de reescrever nossas histórias. E para nós, mulheres negras, registrar nossas trajetórias é uma necessidade. É uma urgência que vem desde Xica Manicongo, condenada e morta pela inquisição no fim do século XVI por não aceitar a imposição social que lhe atribuía o gênero masculino e circular pelas ruas de Salvador como a mulher africana que ela realmente era. É a urgência de contar a história de Rainha Tereza, líder política e estrategista militar que administrou por 20 anos o Quilombo de Quariterê, na fronteira entre o Mato Grosso e a Bolívia.
Mas, para contar nossas histórias, primeiramente, temos que estar vivas. Não podemos continuar sendo as que não tem salário, as que mais são vítimas de feminicídio, as que são lembradas pelas ausências. Não podemos continuar sendo as que mais morrem de fome, de tiro, de covid. Não aceitamos ser alvo dessa política genocida (que não é de hoje, tá aí há séculos, mas agora tá aproveitando a pandemia pra economizar munição). Nós, mulheres negras, temos um outro projeto de mundo. Somos existência coletiva, somos Ubuntu, somos Bem Viver.
Neste mês – quando celebramos, no dia 25 de Julho, o Dia Internacional da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela – escolhi reverenciar uma ancestral que me inspira muito: Carolina Maria de Jesus. Escritora, compositora, multi-artista, mãe, favelada, catadora de materiais recicláveis. Carolina foi gigante. Aliás, ainda é. Foi com o seu axé que conseguimos a aprovação do primeiro projeto do nosso mandato: a criação de um prêmio na cidade de São Paulo que leva o nome dela, e que vai reconhecer a atuação de mulheres negras que desenvolvem trabalhos nas artes e nos Direitos Humanos.
É uma conquista para todas nós e a oportunidade de contar nossas verdadeiras histórias. São histórias que protagonizamos desde sempre, mas que são invisibilizadas pelo racismo, pelo machismo, pela transfobia. Pela visão deturpada e estereotipada que só admite a nossa presença nos lugares em que eles acham que deveríamos estar. Mas, insubordinadas e inconformadas, estamos aqui para provar com nossa (re)existência que sim, há outras possibilidades. Nós somos a outra possibilidade.
*Erika Hilton é vereadora e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo. Negra e transvestigênere, foi a mulher mais bem votada em 2020 em todo o país, a mais votada do PSOL e é a primeira mulher trans nominalmente eleita para o cargo, com mais de 50 mil votos. É ativista dos Direitos Humanos, na luta por equidade para a população negra, no combate à discriminação contra a comunidade LGBTQIA+ e pela valorização das iniciativas culturais jovens e periféricas.