Sempre gostei muito de festas de eletrônico, mas quando eu olhava ao redor, dava pra contar no dedo quantas pessoas negras tinham e quantas pessoas negras estavam tocando. DJs negros, alguns anos atrás, nem tinha’’, diz o carioca Miguel Arcanjo, 26 anos. ‘‘Rolava um conflito na minha mente: como eu posso gostar tanto disso, mas não ter representação nenhuma? Com a house e o techno é bizarro, toda uma história negra, só existe por causa de política segregacionista e hoje é totalmente embranquecido.”
Quer dizer que a house music, vertente pioneira da música eletrônica, é negra? Para entender melhor, precisamos fazer um vôo para os Estados Unidos, mais especificamente para Chicago, lar do club The Warehouse e do seu residente, o DJ negro Frankie Knuckles. Quando a house começou a dar seus primeiros passos, no início da década de 1980, era difícil prever o que o movimento se tornaria. O gênero, vertente da música eletrônica, surgiu na cena underground feita por e para pessoas negras e LGBTQ+ em Chicago. A mistura de soul, disco e outras vibrações eletrônicas antigas originou o estilo musical dançante, que proporcionou um espaço seguro para grupos minoritários se expressarem.
Anos depois, a house foi apropriada por pessoas brancas europeias que quase apagaram sua raiz. Baladas de house, como a Paradise Garage, em Nova York, frequentadas principalmente por negros, começaram a ser descobertas por DJs brancos, como o inglês Paul Oakenfold. O estilo caiu de vez no gosto da terra da rainha, quando Frankie Knuckles, Marshall Jefferson, Adonis e Larry Heard fizeram uma turnê pela Inglaterra, em 1987. Isso fez com que a house explodisse (e se tornasse branca) na Europa. Mas grupos de jovens negros estão lutando para manter a história de origem da house viva por aqui.
Em dezembro de 2018, os Djs Miguel Arcanjo e Quimera (nome artístico de Júlia da Costa), 24 anos, se conheceram em uma festa de uma amiga em comum na Lapa, no Rio de Janeiro. Era a primeira vez dos dois tocando juntos e logo se identificaram. A partir daí, passaram a trocar suas referências até que, no início de 2019, surgiu a ideia de formalizar a dupla, nascendo a Escola de Mistérios.
Em um pouco mais de um ano, eles organizaram oficinas e residências em algumas casas noturnas da cena experimental do Rio em parceria com outros artistas negros. Agora, aproveitaram a quarentena para criar uma plataforma de divulgação da cena a partir da perspectiva negra. ‘‘A maneira como tudo aconteceu que deu as pistas de como continuar e do que a Escola poderia ser. Quando criamos, o objetivo era mais assim ‘queremos aprender, vamos dar um nome pro nosso duo’. Mas, a partir do momento que fomos tendo as oportunidades de nos inserir, quisemos compartilhar cada vez mais o que sabemos, botar mais gente pra tocar com a gente, trazer o máximo de referências e pessoas que possam compartilhar dessa experiência’’, diz Quimera.
Fora do RJ
Foi também com esse princípio que nasceu a Ayô, um coletivo feito por pessoas negras envolvidas na música eletrônica de Belo Horizonte. ‘‘Até 2018, não tínhamos um coletivo de música eletrônica preta nesta cena. Resolvemos montar a Ayô porque, convenhamos, é um grande absurdo não existir uma representatividade negra forte numa cena que foi criada por negros’’, explica Laryssa Braga (nome de DJ Larysss), 26 anos, uma das integrantes do coletivo.
Além de festas, a Ayô organiza debates sobre a população negra na sociedade e dá suporte para novos DJs negros. ‘‘Como uma artista sozinha, é difícil chegar lá e falar ‘quero tocar nessa festa, quero um equipamento emprestado’. Quando você tem um grupo de pessoas, pode chegar e falar ‘olha, nós somos nove pessoas que representam outras milhares que frequentam essas festas e a gente merece ter voz também’’, diz Laryssa. ‘‘A pista é o reflexo do line. Não adianta você colocar uma pessoa negra num line de dez pessoas esperando que aquilo seja suficiente para enegrecer o seu rolê, não vai ser suficiente’’.
Se no sudeste o movimento é embranquecido, no sul o desafio é um pouco maior, conta Suelen Melo, 24 anos, integrante do coletivo Turmalina. ‘‘Passamos por um recorte específico, somos produtores negres de música eletrônica no Rio Grande do Sul, estado que tem sua história escrita com base em muitas opressões e apagamentos da negritude. A gente se uniu por perceber que tocavam a nossa música nos eventos, mas quem dava o play não era a gente’’.
‘‘A pista é o reflexo do line. Não adianta você colocar uma pessoa negra num line de dez pessoas esperando que aquilo seja suficiente para enegrecer o seu rolê, não vai ser suficiente”
Laryssa Braga
Ela conta que, em um estado que tem o maior número de ocorrências de injúria racial do país (1.507 casos a cada 100 mil habitantes) e em um gênero embranquecido, o coletivo se tornou um marco. ‘‘Como o nosso lance é aquilombar, esse protagonismo nunca é de uma pessoa só. Quando conseguimos hackear essas estruturas, nos apropriar delas para nossa realidade, é uma vitória coletiva. Isso dá força, impulsiona e reflete em coletividades no mundo todo’’.
Faylon Lima, 28 anos, também integrante do Turmalina, argumenta que os novos coletivos de música eletrônica formados por pessoas negras são ‘‘um movimento de reapropriação daquilo que sempre foi nosso. A música faz parte da nossa ancestralidade, e o que é o grave senão um tambor?’’
Descolonizando a House
‘‘Hoje em dia, muitas pessoas incorporam diferentes elementos e particularidades na música. No Brasil, chamam de rave funk, que mistura funk com música eletrônica, tem gente que mistura o trap com funk, com house, com techno na mesma música’’, explica Miguel Arcanjo. “Muitos produtores africanos fazem uma música eletrônica com a pegada daquela região e constroem outro gênero. Dentro desse universo, vemos como está tudo conectado, uma linha que mistura tudo. No mesmo set, você consegue tocar house, techno, funk, afrobeat, afrohouse, várias coisas que não têm nem nome direito, mas tudo dialoga, porque a música dialoga. É uma troca constante, que não vem só da gente trazendo dos Estados Unidos, é gente trazendo da Europa, a galera na África pegando no Brasil e a gente pegando de lá, várias trocas’’, diz Miguel.
‘‘É um movimento de reapropriação daquilo que sempre foi nosso. A música faz parte da nossa ancestralidade, e o que é o grave senão um tambor?’’
Faylon Lima
Monica de Oliveira, que pesquisa no seu mestrado a música eletrônica da diáspora africana, nome dado ao fenômeno histórico e social caracterizado pela imigração forçada de pessoas de países africanos para outras regiões do mundo, chama as semelhanças entre os gêneros de características diaspóricas. ‘‘Essa coisa de perceberem a unidade é uma coisa tão forte que ultrapassa as fronteiras. A música vai se desenvolvendo, ela vai lá e volta cá. Na Jamaica, tem uma história clássica que diz que o reggae eram os jamaicanos tentando tocar o jazz [dois gêneros desenvolvidos por descendentes de africanos na diáspora]. Essa ancestralidade está sempre presente’’.
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Enquanto a house começava a se espalhar na década de 1980 nos Estados Unidos, o que movimentava a cena eletrônica negra no Brasil eram os bailes de soul, funk e charme. Apesar dos quilômetros de distância, as características eram bem próximas. ‘‘Aqui começa com os bailes blacks, no final dos anos 70, que era aquela cena black que a zona sul do Rio não sabia de nada que tava acontecendo, era um baile do subúrbio total e completamente’’, explica Monica. ‘‘O espírito primeiro da house é você dançar. Nem era cultura das drogas, não, era a cultura da dança como uma igreja. A house surge dessa ideia, essa comungação de dançar junto e do experimentalismo com a música. E, aqui no Brasil, onde você vai ter essa cena, um espaço pra você dançar livremente, é nesses lugares de comunidade’’.
A pesquisadora conta que a história é tão pouco conhecida e valorizada por conta do mesmo problema que o Lundu, dança e canto de origem africana, teve na época da colonização, que a capoeira, o candomblé e o samba tiveram. ‘‘Toda produção afro sofre esse processo primeiro de negação absoluta e, depois, de uma apropriação. Com a house, aconteceu exatamente isso, pelo menos na chegada ao Brasil. Por isso, esses novos coletivos lembram muito a House old school dos Estados Unidos. Tem um monte de Djs novos na África do Sul e em toda diáspora. Ou seja, eles tentam tirar do povo preto, mas volta’’.
‘‘Toda produção afro sofre esse processo primeiro de negação absoluta e, depois, de uma apropriação. Com a house, aconteceu exatamente isso, pelo menos na chegada ao Brasil. Eles tentam tirar do povo preto, mas volta’’
Monica de Oliveira
Em Belo Horizonte, ainda existe um movimento chamado Quarteirão do Soul, que surgiu como uma forma de amigos que frequentavam os bailes black nos anos 1970 se reaproximarem. ‘‘São pessoas negras mais velhas, eles se vestem com aquele estilão de baile, aquele estilo disco music e é muito doido porque acontece na rua. É o DJzão lá na praça e a galera coreografando horrores, dançando. É um movimento que eu acho incrível, existe há muitos anos, e é o que temos de referência aqui em BH’’, lembra Laryssa.
Nas primeiras oficinas da Escola de Mistérios, Quimera estava animada com a pesquisa de Charme, movimento que iniciou nos anos 80 e segue até hoje forte no viaduto Negrão de Lima, em Madureira, no Rio de Janeiro. ‘‘Eu acho que o Charme, os bailes das antigas foram momentos muito importantes da música eletrônica no Brasil. Quanto mais estudamos música eletrônica, mais percebemos as diferentes facetas que ela tem – não só o house e o techno, mas os bailes das antigas influenciados por movimentos lá de fora.’’
Racismo, falta de grana e liberdade
Os diversos desafios enfrentados pelas pessoas negras no Brasil aparecem também na cena da música eletrônica. ‘‘Ser negro é um desafio em qualquer coisa que você vai fazer na sua vida. O acesso as coisas se torna mais difícil’’, diz Laryssa. Faylon conta que outro desafio está ‘‘na capacidade do pertencimento não ser questionado nesses espaços culturais’’.
A dificuldade no acesso também é um dos grandes obstáculos para as pessoas negras. ‘‘Quando pensamos em produzir e pesquisar música é indispensável pensar na estrutura que isso pede: um bom computador, um setup adequado, acesso à internet, tempo pra criar. Parece básico, mas tudo isso tem um custo que é muito distante das nossas realidades’’, diz Suelen. No Rio de Janeiro, Miguel conta que a situação é a mesma, ‘‘equipamento é uma coisa muito cara, é muito difícil fazer uma festa, é custoso, é muito difícil conseguir contornar isso. Essa dificuldade às vezes diminui o crescimento, não elimina, mas faz diminuir a velocidade que você cresce’’.
‘‘Eu já vi produtor ir embora de evento com cache da mina no bolso e ela não ter como voltar pra casa, por descuido do produtor. Tem evento que não leva em consideração essas coisas que sempre é maior para galera que tá vindo da periferia para tocar no centro. Uma coisa que percebemos na Escola de Mistérios são as mudanças estruturais que precisam acontecer na cena’’, diz Quimera.
Apesar de tudo, as festas de música eletrônica protagonizadas por pessoas negras seguem como um espaços de liberdade para corpos historicamente marginalizados. ‘‘Os primeiros DJs que tocavam house em Nova York eram homens gays que criaram aquele espaço para se sentirem à vontade de serem quem eram, então pra gente é importante manter esse legado’’, diz Quimera. ‘‘Acho que essa é a diferença que queremos trazer na cena, construir outros tipos de festa e de espaço de convivência onde a gente se sinta protegido, seguro e compartilhando essa energia boa que é estar dançando junto. É importante para nossa saúde mental e do corpo estar com pessoas que compartilham esse sentimento coletivo de que a gente não tá sozinha’’.
‘‘A sociedade impõe seus desafios, onde nem sempre é possível ser quem você é, mas nas festas, principalmente ao que a gente se propõe, é sempre um espaço para ser quem você é. Eu gosto das festas porque eu faço o que eu quero, gosto muito de dançar, as pessoas são livres, se libertam. A música eletrônica tem muito a ver com isso, nasceu nisso e acho que nisso ainda se mantém em muitos lugares’’, diz Miguel.