Eita!” Exclamei à mesa. Os gringos me olharam, intrigados. Só eu de brasileira naquela roda de amigos recentes. Era maio de 2017 e eu tinha acabado de me mudar para cá. Na mala, trouxe o que deu. Passaporte, roupa de frio e sotaque. Quando se mora na gringa, a língua é a nossa bandeira. É o que a gente veste o tempo todo, querendo ou não. Acontece que Nova Iorque é a cidade mais multicultural do planeta. Tudo acontece aqui. Idiomas intersectam, emoções se traduzem e culturas se fusionam. Tudo no campo da língua é fértil. As rotinas, os dias e as pessoas.
“Mas Eita! é o que mesmo?”, quis saber John. (um disclaimer rapidinho aqui: John é um nome fictício). Respondi que era uma interjeição que expressa surpresa, que também pode significar frases inteiras dependendo do contexto. Daí, uma moça levantou da mesa para pegar mais cerveja e soltou um “Aqui a gente fala fuck pra tudo. É praticamente a mesma coisa!”. Primeiro, que fuck não é Eita. Segundo, que Eita não é palavrão, nunca foi e nunca será. É palavrinha, quatro letras só. Perguntei para ela, com um risinho sincero na cara, se a avó dela falava fuck, ao que ela respondeu que não. “Pois é, tá vendo só? A minha avó pode falar Eita sem pudor. As crianças também.”. O povo todo da mesa soltou uma risada. A moça terminou de levantar, meio sorriso na cara. Acho que vai pegar cerveja para todo mundo, menos para mim.
Tem muito brasileiro em Nova Iorque. Tem muito nordestino também, mas é uma ocasião rara a gente se bater. Os gringos dizem que aqui tem Nordeste também, mas quando solto uma expressão ou outra, eles ficam maravilhados. Querem entender, daí explico. Quando entendem, querem falar. Daí ensaio o sotaque, sílaba por sílaba. E quando eles reproduzem, o som do Nordeste soa bonitinho, até engraçado, mas a vida na gringa é dura. Solitária mesmo quando rodeada de tanta gente. A palavra estrangeira que sai da boca do gringo veste a cultura dele, o sotaque dele, mas, mesmo assim, toca o meu coração como se eu estivesse voltando para casa mais uma vez. Morar fora é lindo, doído muitas vezes, mas é uma experiência gratificante da gota serena. Cada pessoa que eu conheci revelou um novo mundo para mim. É mais um viajar na língua alheia do que traduzir-se dentro dela. A língua é uma porteira aberta para uma arena de novidades. Capiche?
Para quem fala Nordestinês desde que nasceu, Eita é um antigo conhecido. A gente não para pra pensar no significado porque o significado simplesmente é. Eita frase profunda da gota serena! Okay, agora voltando para aquela noite. John, cabra sensível da peste, quis saber mais sobre as expressões do nordeste brasileiro. Deliberamos acerca de quem tem ou não borogodó, pusemos em pauta o significado duvidoso (e psicologicamente problemático) de ser um cabra macho, estudamos minuciosamente as nuances acerca de xodó, identificamos um presepeiro aquela noite também, sentimos uma profunda leseira depois da terceira garrafa de vinho e descobrimos que todo ser humano na face desta Terra – seja ele nordestino ou não, quer mais é governos autoritários, conservadores, misóginos e de direita se lasquem. Oops!
Àquela altura da noite, resquícios do jantar repousavam sobre a mesa ao lado de garrafas meio vazias de cerveja. Um casal se aconchegou na cadeira almofadada no canto do ambiente. A noite ficou romântica, protagonizada por aqueles dois com cafunés. Cafu-what?! Cafuné. Singular ou plural, meu brother. Cafuné é mais que uma palavra, é dimensão das coisas. Basta uma mão a acariciar um rosto alheio e esse rosto alheio sorrir, quem sabe, cochilar. Os gringos soltaram um “oun”, que nem a gente digita no zap logo após soltar um sticker da cara de pidão do gatinho do Shrek. Puro love. Expliquei ainda que cafuné não é praticado somente pelos românticos, que pode ser também uma expressão de amor praticada por familiares e amigos. Fazer cafuné é se permitir cuidar incondicionalmente do outro, receber cafuné é obter o conhecimento tácito de que somos amados. Incondicionalmente. Cafuné é a língua não-falada entre aqueles que se importam uns com os outros. Outro “oun” veio na sequência do meu discurso. Fiquei rosada de timidez, pra te falar bem a verdade, mas também fiquei feliz ao entender que, às vezes, não dá para trazer o país todo na mala quando a gente muda de país, mas o pouquinho que a gente traz rende que só o cabrunco.
Voltei para casa à pé naquela noite, fazia uma meia lua bonita. A voz de Luiz Gonzaga me veio à mente cantando “Quando olhei a terra ardendo na fogueira de São João…”. O choro ecoante da sanfona rítmica ninava meu pranto também. Bateu uma saudade, sabe? Mas o sonho, que muitas vezes é maior que a dor do caminho percorrido, é também maior que meu choro. O céu da Cidade que Nunca Dorme é coberto de breu, diferente do céu da minha Aracaju de 1990, que era coberto com uma porção de estrelas, céu luminoso da gota serena. A saudade que bate quando se mora no estrangeiro é que nem a língua materna da gente, está sempre ali, antes do Sol acordar, vestindo a gente de existir.