1.
A primeira vez que vi os irmãos vrum vrum foi agachado atrás da mureta do portão de casa, por entre as estacas de ferro. Meu amigo Lucas também se escondeu. Uma pipa solitária cortava o céu sem nuvens, no horário em que as mães gritavam das janelas vou contar até três e ai do filho que não voltasse para tomar banho e jantar. Um bando de garotos descalços havia passado correndo alardeando, em meio a gargalhadas, as pessoas a tomarem cuidado. Foi na esquina do jardim da igreja, os dois desceram a rua tremelicando e, se não chegavam a correr, caminhavam desembestados, braços levemente retorcidos, batendo cabeça e resmungando. Vestiam calças de linho que sobravam na cintura e nos pés. Os sapatos também pareciam ser sobras. Gêmeos idênticos. Olharam três vezes antes de atravessar a rua, e viraram no quarteirão errado.
Não me recordo se alguma vez chegaram a alcançar e pegar de jeito alguém que os provocasse. Éramos muito ligeiros nessa idade, mesmo o Lucas, gordinho, e nos tornávamos mais ainda com nossos kichutes pretos com que rodávamos a cidade. E eles eram velhos na época: uns cinquenta anos. Tinham os cabelos cor de geada, cortados rente à cabeça igual ao de soldados americanos, e as barbas, que não passavam nunca de três dias, lembravam fiapos de algodão. As testas eram pequenas demais para as cabeças e as mandíbulas de cavalo abrigavam muitos dentes abandonados. Eram altos, um tanto corcundas, e as saboneteiras marcavam as camisas quase sempre surradas, mas nunca fora das calças. Quando não estavam mirando o chão, os olhos estrábicos se encontravam muito próximos ao nariz.

Algumas mulheres diziam que tinham o físico dos homens de pau grande; fizeram até um bolão que acabou sem vencedora porque ninguém quis tirar a prova. Quem chegou mais perto foi o filho da empregada da minha vizinha, que, descobri mais tarde, fazia programa, e apesar da proximidade, quase nunca o via nos horários e nos lugares pelos quais perambulava. Era uma comunidade em que pais de família saíam com meninos mais novos e, quando bebiam demais nos churrascos, soltavam na roda dos homens que haviam comido uns viadinhos. Eu ficava imaginando se o menino era um deles, mas logo me distraía com coisas bobas, como me medir no banheiro da escola com essas réguas de trinta centímetros. Depois, era a vez do Lucas. Nos faltavam parâmetros, além de critérios. Mas foi assim a nossa descoberta do que era margem de erro e projeção de crescimento, e elas nunca importaram tanto.
Um dos irmãos vrum vrum jurava que tinha uma namorada, moraria num sítio longe dali, embora o boato fosse que já tinha sido pego traçando éguas e até ovelhas. O outro costumava ser visto com uma tampa de lata de tinta nas mãos, fingindo ser um volante, dirigia apenas na calçada. Ninguém sabia se o apelido vinha daí, mas se alguém gritasse vrum vrum perto deles, passavam a respirar mais forte, balançar a cabeça e emitir grunhidos incompreensíveis. As bocas espumavam. Uns diziam que a última coisa que ouviram do pai ao deixá-los foi o arranque do motor do carro em que se mandou; outros que, por conta das orelhas grandes, conseguiam ouvir mais, como cães, e se assustavam com receio de morrer atropelados. Não sei se fazia sentido. Mas, naquele tempo, as coisas não precisavam fazer sentido. Também não sabia se era verdade que quando chegavam em casa com raiva, um casebre de madeira na última rua de asfalto, batiam na mãe.
Dona Olga. Era uma senhora mirrada, já em idade avançada, vivia com uma pensão do estado e com óculos de lentes grossas. Só saía para varrer as folhas da calçada. Não era vista nem nas concorridas quermesses, onde a cidade toda se reunia, e os irmãos apareciam de tempos em tempos. Quando isso acontecia, eram amparados por membros da pastoral que, ao passar pela mesa de canto em que os dois eram colocados, deixavam no prato pedaços de frango assado já desossados para comerem como crianças. Ao chegar ou ir embora de algum lugar, faziam questão de cumprimentar as pessoas com um aperto de mãos, abaixando a cabeça em reverência. Mas, como as mãos muitas vezes seguiam engorduradas, lhes sobravam quando muito tapinhas nos ombros. E a caminhada para casa transcorria em um silêncio que engrossava conforme a voz do bingo beneficente e o sertanejo das caixas de som se confundiam e perdiam força a cada esquina.
Se havia um momento em que esboçavam um traço de felicidade, era quando alguém na cidade morria. Com chapéus de feltro e suas melhores camisas, desciam a rua sem saída que levava até o cemitério, uma via larga margeada por carvalhos, antes da chegada das primeiras coroas de crisântemos. Conhecessem o defunto ou não. Na sala destinada ao velório, ficavam em pé por horas, com os braços cruzados na altura do umbigo, o chapéu em uma das mãos, a outra livre para os cumprimentos.
— Meur pêsam. Meur pêsam.
Quem vinha de longe para a cerimônia, se perguntava se eram da família; quem era da família, que intimidade era essa que teriam com o morto; e, se de fato tinham alguma admiração, por que pareciam conter um riso torto incitado por uma piada muito boa? E que diabos era aquele volume que sobressaía por debaixo do chapéu? Não pode ser.
Viravam a noite em vigília, se precisasse, feito seguranças de porta dos bailes a que nunca iam. Limitavam-se a lançar olhares por cima dos ombros a quem aproveitava para botar o papo em dia do lado fora, sobretudo às crianças que não demoravam em armar um pega-pega ou um esconde-esconde. No momento do cortejo, escoltavam o caixão de perto, agarrariam uma das alças se deixassem, e gemiam fora do tom os cantos religiosos. Costumavam se emocionar nesse trecho; eu e o Lucas apostávamos que as lágrimas do olho direito escorriam pela bochecha esquerda, e vice-versa.
Em meio aos túmulos e as placas de concreto e mármore, estendiam as mãos em direção aos coveiros, ocupados e desentendidos, e se alvoroçavam com a possibilidade do morto ser maçom. Menos pelo ritual de se colocar um avental branco e ramos de acácia sobre o corpo prestes a ser lacrado que pela roda de homens, vestidos com avental semelhante, respondendo a uma espécie de chamada oral. O nome do falecido era anunciado por último e todos respondiam, com firmeza, presente, presente, presente! Os vrum vrum abafavam a voz com os chapéus: pesenti.
Na caminhada de volta, se topassem com outro velório, o que era raro mas acontecia, retornavam aos seus postos, não sem antes passar pelo banheiro que ficava nos fundos, murmurando para quem cruzasse o caminho:
— Sintu muin, sintu muin.