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É possível encontrar propósito mesmo em meio à tragédia?

Teoria de Viktor Frankl sobre o “otimismo trágico” explica que dar sentido a situações extremas ameniza o sofrimento psíquico

por Maria Elisa Nascimento Atualizado em 5 jul 2021, 17h58 - Publicado em 4 jul 2021 22h39
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(Clube Lambada/Ilustração)

stamos há mais de um ano vivendo em pandemia, exaustos do isolamento, das perdas materiais e simbólicas. O cenário atual é duro, mas mesmo que estejamos cambaleando coletivamente, ainda dá para encontrar uma fagulha de esperança? Segundo a teoria do psicólogo e psiquiatra austríaco Viktor Frankl, criador da Logoterapia e Análise Existencial, sim. Por mais difícil que seja enxergar, existem perspectivas de que podemos ser melhores – ou pelo menos diferentes – diante da catástrofe.

Dentro das possibilidades que cada pessoa tem, a quarentena remexeu sentimentos e angústias, alterando prioridades. Um estudo recente realizado pela Globo, em parceria com o Instituto Datafolha, revela que 86% dos colaboradores tiraram algo de construtivo para si na pandemia. Seria essa a forma de seguir em frente apesar da fatalidade?

De acordo com Frankl, redirecionar o olhar para dar sentido à própria vida é o caminho. Na Logoterapia, também conhecida como a Terceira Escola Vienense de Psicoterapia, o especialista batizou de “otimismo trágico” a escolha de reagir a acontecimentos negativos, fazendo o melhor que se pode, dentro da realidade em que se vive – ainda que o cenário em questão seja o mais privativo e caótico. Após perder toda a família para o nazismo e passar por quatro campos de concentração entre 1942 e 1945, o psiquiatra conseguiu observar e maturar as teorias que foram posteriormente descritas em seu livro Em Busca de Sentido.

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(Alex Plesovskich/Unsplash)

O psicólogo Victor Irving, que faz parte da Associação Brasileira de Logoterapia e Análise Existencial (ABLAE), conta que para a vertente terapêutica, o sentido da vida está na realização de valores subdivididos em três categorias principais: os criativos, vivenciais, e de atitude. “O valor criativo é aquilo que você dá para o mundo, por exemplo o trabalho. Os vivenciais são o que você recebe do mundo, como uma experiência natural, viagens, ou mesmo o amor. Já os valores de atitude falam sobre a sua capacidade de agir diante de um sofrimento.”

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“A caminhada pode ser mais enriquecedora do que o próprio objetivo”

Aplicando a ideia de aceitar a adversidade, a atriz e artesã Jessy Maia, de 28 anos, decidiu adiantar o plano de se mudar com o marido e a filha para o interior. Ela e o companheiro são autônomos, e como ele trabalhava com eventos, o orçamento do casal foi duramente comprometido na pandemia. Assim, uniram a necessidade de reduzir o custo de vida ao desejo de ter mais contato com a natureza. “Além da questão do dinheiro, estávamos trancados em casa com uma criança, o que é bem difícil. Procuramos uma casa no interior, para ter contato com a terra, respirar ar puro, ver mais verde e menos cinza.”

“Me doía a alma ver minha filha trancada, ficamos 7 meses sem colocar o pé na rua. Até o tempo mínimo de sol que é recomendado no dia ela não conseguia tomar”

Jessy Maia, artesã

As restrições do momento tornaram a socialização da filha Elis praticamente inexistente, afinal a família não podia receber visitas de parentes e amigos para criar laços. Quando a OMS declarou estado de calamidade pública, a criança tinha apenas 4 meses, o que preocupou a artesã. “Me doía a alma ver minha filha trancada, ficamos 7 meses sem colocar o pé na rua. Até o tempo mínimo de sol que é recomendado no dia ela não conseguia tomar.”

Eles aguentaram até o fim de 2020, quando a mudança se tornou inadiável. A procura por um espaço que atendesse suas demandas os fez chegar a Embu-Guaçu, no interior de SP, onde residem desde o início de 2021. Na nova casa, Jessy decidiu aprender a plantar, e conta que a horta a está ensinando a ser mais paciente. “A própria natureza nos ensina essa calma nas coisas, você planta e não nasce amanhã, e sim daqui a 60, 90, 120 dias… Um ano!”. A atriz complementa: “Estamos aprendendo a aproveitar o processo das coisas. A caminhada pode ser mais enriquecedora do que o próprio objetivo.”

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(Jacqueline Munguia/Unsplash)

A vontade de se aproximar da terra invadiu mais gente. Em um segundo estudo, realizado pelo grupo Pesquisa Globo, 2.081 brasileiros foram questionados sobre o efeito da pandemia em suas vidas. A busca por contato com o meio ambiente está no topo entre os novos hábitos adotados durante o período, contemplando 32% dos participantes.

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“Você não é livre do mundo concreto, mas para responder a ele”

A escolha do olhar que se dá às situações é justamente o que propões a teoria de Frankl, como pontua a psicóloga Daniela de Oliveira: “O discurso não é você poder fazer o que quiser, mas que, dentro das condições existentes, temos algumas pequenas escolhas”. O que é bem diferente dos falsos discursos motivais que ditam que basta se esforçar para conquistar o que se almeja. “Se você pular da janela, ao invés de voar, você vai cair. Pensar em dinheiro não irá te fazer materializá-lo. Você não está livre da sua genética, ou de estar passando pela quarentena agora, ou de adoecer. Você não é livre do mundo concreto, mas para responder a ele, sim”, complementa Irving, da ABLAE. “Ser protagonista de nossa própria vida é poder fazer escolhas pessoais dentro dos contextos em que estamos integrados.”, observa Oliveira.

“Se você pular da janela, ao invés de voar, você vai cair. Pensar em dinheiro não irá te fazer materializá-lo. Você não está livre da sua genética, ou de estar passando pela quarentena agora, ou de adoecer”

Victor Irving, psicólogo

No caso de Jessy, a pandemia e os problemas subsequentes foram impostos, enquanto o aproveitamento da mudança para se conectar a algumas vontades, uma decisão. Elis, que agora está com 1 ano e 4 meses, tem mais liberdade para explorar e sua mãe preza pelo envolvimento da menina com a natureza. “Eu fico muito feliz com a participação da minha filha. Ela vai, rega as plantinhas comigo, mexe na terra. É quase uma escola, sei que só de estar ali ela aprende e se desenvolve, algo que eu jamais proporcionaria no meu antigo quintal, pequeno e cinza.”

Ainda segundo o levantamento, a percepção de importância da família cresceu em 13% de 2019 para 2020, fora que a noção de desigualdade e consciência do impacto de ações individuais no coletivo, que se mostraram presentes em 97% e 93% dos participantes, respectivamente.

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(Mr Xerty/Unsplash)

Reação percebida pela pedagoga e pesquisadora de Competências Socioemocionais, Rafaela M. da Silva, de 25 anos. Ela participa da associação cultural São Mateus em Movimento desde 2014, e viu a oferta de colaboração no projeto crescer nos primeiros meses da pandemia. A credibilidade da instituição, que atua há 15 anos, impulsionou o engajamento. “Algumas pessoas e empresas entraram em contato para doar cestas básicas a serem distribuídas no território em que nós atuamos.” Fora isso, ela conta que receberam ajuda em dinheiro, mantimentos, inclusive máscara e itens de higiene e auxílio presencial – sendo a própria comunidade bem participativa. “Muitos moradores nos procuraram para levar alimentos, limpar, montar kits. Moradoras e costureiras da região faziam e nos entregavam 100, 150 máscaras. Como a ação das cestas foi mais direta, acho que o pessoal entendeu melhor como ajudar.” Entre abril e agosto de 2020, a associação conseguiu atender cerca de 200 famílias por fim de semana.

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“Encontrando pertencimento, podemos seguir em frente”

A história de Rafaela com o São Mateus em Movimento tem ainda uma segunda camada mais profunda, pois se entrelaça à sua relação com o pai, que morreu por complicações do COVID-19 em abril de 2020. A perda foi repentina e difícil de digerir. “Eu dormia e acordava chorando, pensando: Para que levantar? Para que viver o meu dia se o meu pai não está aqui comigo? Não vale a pena.” Ele conhecia o envolvimento da filha com o projeto, e sempre participou de diversos outros eventos organizados por ela antes da pandemia. A pesquisadora conta que soube do falecimento pouco depois de chegar em casa de uma reunião da associação, no qual trabalhara o dia todo.

Mesmo consciente da dor e das diferentes sensações acentuadas pelo luto, cerca de duas semanas depois da morte do pai, ela já estava de volta ao projeto, motivada justamente pelo desejo de poupar outras pessoas da mesma dor. “É um sentimento que eu não quero para ninguém, por isso eu vou ajudar esses pais e mães, para que os filhos deles não sofram o que eu sofri.”

“Eu dormia e acordava chorando, pensando: Para que levantar? Para que viver o meu dia se o meu pai não está aqui comigo? Não vale a pena”

Rafaela M. da Silva, pedagoga

Isso poderia ser exemplificado por Frankl como uma reação ao que chama de “tríade trágica”, formada pela dor, culpa e morte. “São três situações limite pelas quais todo o ser humano irá passar em algum momento da vida. A dor pode se tornar algo que te fará crescer; a culpa demonstra o poder do potencial de transformação, como quando se assume um erro, enxergando que no futuro é possível fazer diferente. A morte gera a reflexão de se valorizar a própria vida”, explica Irving. “Ao preencher um sentido para a vida, encontramos o próprio sentido. Através de nossas ações no mundo, encontrando pertencimento, podemos seguir em frente.”, a psicóloga Daniela de Oliveira complementa.

Rafaela não conseguiu impedir a morte do pai, mas entendeu que sua participação nas ações do São Mateus em Movimento poderia fazer com que outras pessoas não precisassem viver o mesmo luto, ou pelo menos tivessem seus sofrimentos atenuados. “Eu não posso ajudar duzentas mil pessoas, mas consigo ajudar 100 em um final de semana, e está ótimo. Se eu puder ajudar pelo menos uma, também”, afirma a pesquisadora. Nem por isso, vivenciar as consequências da perda foi fácil, e por isso respeitou seus sentimentos. “Eu prometi que não vou ficar mais triste do que eu já estou, nem fingir que estou feliz quando não estou”, complementa.

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(Yuyeung Lau/Unsplash)

É importante destacar que essa possibilidade não é regra, como pontua a psicanalista Nathalia Paccola. “Cada ser humano é único e reage da sua maneira frente às adversidades.” Além disso, estamos vivendo um momento inédito e duro, o que também repercute negativamente na saúde mental. “Temos os índices de ansiedade, depressão, estresse pós-traumático entre outros transtornos mentais aumentando no momento”, a psicóloga Daniela Oliveira acrescenta.

No entanto, abraçar a liberdade de escolha para reagir às adversidades pode tornar o processo um pouco menos doloroso. “Demonstrar que estados de dor fazem parte da experiência de estar vivo e encarar nossos sentimentos com sobriedade traz a lucidez necessária para perseverar e encontrar o melhor caminho para usufruir da vida, seja em confinamento ou não”, diz Paccola.

Ainda não sabemos quais serão as repercussões emocionais do período atual a longo prazo, no entanto, enquanto aguardamos o fim da pandemia, é possível utilizar a filosofia de Frankl para tornar a caminhada um pouco mais leve. “Utilizar do ‘otimismo trágico’ é aceitar que a realidade é dura, crítica e triste, buscando as melhores formas de nos adaptarmos ao que nos é disposto, sem tanto sofrimento”, afirma Nathalia Paccola.

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“Cada ser humano é único e reage da sua maneira frente às adversidades”

Nathalia Paccola, psicanalista

Durante o período em que viveu nos campos de concentração, Frankl percebeu que dentre seus colegas de confinamento, aqueles que tinham um sonho, objetivo, ou razão de viver, eram mais resistentes à prisão. Os que abraçavam de vez a desesperança, morriam mais rápido. Dentro disso, a psicóloga Daniela Oliveira incentiva tirar momentos do dia para refletir. “Como estou fazendo o que estou fazendo? E para que? Que tipo de adulto quero ser? Quais características de caráter e valores quero construir? Que legado quero deixar para a próxima geração?”, a terapeuta sugere.

Estar vivo no momento atual, diante de tantos entraves, é uma forma de resistência. Olhar conscientemente para a realidade e fazer o que é possível, com carinho e respeito por si e pelo outro, abre caminhos. Vai passar, mas enquanto não acaba, é possível se reinventar. Parafraseando Oliveira: “A vida é movimento e estar atento aos pequenos movimentos da vida (dentro e fora de nós) nos conecta a um sentido de existência.”

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