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Pagode: do auge ao declínio

Criado nas periferias de São Paulo, o gênero atingiu o topo com o Art Popular no Acústico MTV, mas viu seu declínio chegar logo depois

por Henrique Santiago 16 dez 2020 23h52
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(Clube Lambada/Ilustração)

cantor Leandro Lehart subiu ao palco sem plateia do Theatro Municipal de São Paulo e pensou consigo mesmo que estava a minutos de fazer história. Emocionado, reuniu um grupo de músicos em uma roda e disse que iria realizar um sonho. Naquela casa erudita, onde aconteceram a Semana de Arte Moderna e espetáculos de nomes como Villa-Lobos e Maria Callas, começaria uma apresentação musical em instantes. Mas não uma ópera, e sim um pagode

Foi em uma noite de domingo, 7 de maio de 2000, que o Art Popular gravou o Acústico MTV, o primeiro de um artista fora do rock e da MPB no país. Diferentemente de performances intimistas, que eram comuns no programa, mais de três mil pessoas assistiram ao show que foi exibido dois meses depois na TV aberta.  

Na virada para o século 21, o pagode, filho romântico do samba, aproveitava o sucesso de público e venda de anos anteriores, com músicas de amor que saíram das periferias de São Paulo e ganharam a classe média pelo Brasil. A inserção de um grupo que cantava sobretudo para as massas representava um divisor de águas de uma manifestação cultural amada por muitos, odiada por muitos outros, e que marcou uma geração. 

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Principal liderança da banda, Lehart, 48, recorda que a MTV Brasil buscava alcançar novos públicos com a inclusão de rap, axé e pagode na programação. Na época, o Art Popular estava entre os artistas mais bem-sucedidos do gênero, com presença massiva no rádio e na TV, milhões de álbuns vendidos e hits com roupagem pop que grudavam na cabeça, como “Pimpolho”, “Temporal” e “Fricote”. 

O convite para gravar o Acústico surgiu após o grupo dividir o palco com o rapper MV Bill no VMB (Video Music Brasil) de 1999, quando a emissora premiou pela primeira vez os melhores clipes de axé e pagode. Para Lehart, o reconhecimento veio após o pagode ser achincalhado por muito tempo pelas elites culturais.  

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“O Acústico foi a grande conquista dos grupos de pagode dos anos 1990. A gente estava representando um mercado que tinha conquistado e até então era renegado pelas grandes mídias e pelos críticos de música. Resolvemos aceitar o convite da MTV por isso também”, confessa o músico. 

“O Acústico foi a grande conquista dos grupos de pagode dos anos 1990. A gente estava representando um mercado que tinha conquistado e até então era renegado pelas grandes mídias e pelos críticos de música. Resolvemos aceitar o convite da MTV por isso também”

Leandro Lehart

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(Art Popular/Arquivo)

O pagode é o canto da massa 

As palavras que levaram Leandro Lehart às lágrimas momentos antes do show mais aguardado de sua carreira refletiam a conquista de um menino da periferia de São Paulo. Na época com 28 anos, o pagodeiro viu uma fila imensa de fãs na entrada do Theatro Municipal que aguardavam com ingressos na mão para vê-lo cantar. Em um passado não muito distante, a casa de ópera era apenas um cenário de passagem de um jovem que sonhava em ser músico. 

“Eu chamei a banda e disse: ‘Queria dizer que, alguns anos atrás, eu era office boy e andava pelas ruas 24 de maio e Xavier de Toledo, ouvindo música no meu walkman, e nunca imaginei que poderia ser atração no Theatro Municipal junto com vocês e isso está acontecendo hoje’. Depois, teve uma crise de choro coletiva porque a gente estava meio que rompendo barreiras.” 

Pagode: do auge ao declínio

Quem colocou os pés para dentro do Municipal deu de cara com uma produção jamais vista em uma apresentação de pagode. Possivelmente o mais caro da história da emissora brasileira, com investimento próximo a R$ 2 milhões, o Acústico MTV do Art Popular contou com mais de 20 músicos, entre instrumentistas de cordas, sopros e coral, além do próprio sexteto de pagodeiros. Os ensaios semanais, a elegância do cenário e o aluguel do espaço foram assegurados pela bolada. 

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Ao longo de mais de uma hora, o grupo paulistano tocou 18 hits e regravações para um público que permaneceu sentado, como mandam as regras de um teatro. Mas as boas maneiras, digamos, foram deixadas de lado a partir do momento em que Jorge Ben Jor subiu ao palco para cantar a última música, “Agamamou”, um sambalanço que tocava a exaustão nas rádios. 

“Aquilo tudo foi uma glória, imagine só você ouvir Jorge Ben nos bailes e depois dividir o palco com ele. Ele nos recebeu muito bem, entrou no clima. Para mim, foi uma realização”

Márcio Art

Um dos arquitetos da música brasileira contemporânea, Ben é referência máxima para o Art Popular, conta o ex-vocalista Márcio Art, 53. “Aquilo tudo foi uma glória, imagine só você ouvir Jorge Ben nos bailes e depois dividir o palco com ele. Ele nos recebeu muito bem, entrou no clima. Para mim, foi uma realização”, conta à Elástica

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Caetano quase apareceu 

Além do compositor de “País Tropical”, o Acústico MTV contou com a participação do grupo vocal Ebony Vox. Mas um outro convidado especial ficou de fora: Caetano Veloso, que iria cantar “Lua e Estrela”, canção gravada por ele no início dos anos 1980. De acordo com Lehart, um atraso no voo do artista baiano impossibilitou que a parceria acontecesse. 

“Lembro que a Paula Lavigne [empresária e companheira de Caetano] falava que ele ouvia os discos do Art Popular e fazia análises de como a gente tinha um pouco de tropicalismo dentro do samba. Eu não nasci na época da Tropicália, mas tínhamos um pouco de tropicalismo no sentido da ousadia mesmo, de colocar outros elementos dentro do samba. Eu ainda quero fazer uma parceria com o Caetano, ele é muito aberto para música.” 

“Eu não nasci na época da Tropicália, mas tínhamos um pouco de tropicalismo no sentido da ousadia mesmo, de colocar outros elementos dentro do samba. Eu ainda quero fazer uma parceria com o Caetano, ele é muito aberto para música”

Leandro Lehart

Colocado à venda em CD e VHS, o Acústico MTV do Art Popular ficou longe de atingir o sucesso comercial esperado. Não há números oficiais de vendas, mas Lehart estima que cerca de 400 mil cópias foram comercializadas, abaixo do Kid Abelha, por exemplo, que vendeu dois milhões.  

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Os registros oficiais ficaram perdidos por muitos anos, mas reapareceram em 2020 com a publicação na íntegra das músicas no YouTube do Art Popular. Para disponibilizar os vídeos aos fãs, Leandro Lehart comprou a fita cassete do show na internet por cerca de R$ 250 e depois trabalhou na edição de áudio e imagem para divulgar em alta qualidade. 

“Acho que o Acústico foi lançado um pouco tarde, porque já havia uma decadência de mercado em relação a nós, mas foi o grande último suspiro, o grande evento que o pagode fez com aquele mercado gigante que a gente tinha construído. Ali [nos anos 1990] foi o único momento da história em que o samba era tão ou mais comercial que o sertanejo”, reflete o músico. 

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Quando o pagode desceu a ladeira

O lançamento do Acústico MTV levou o Art Popular a uma turnê que cruzou dezenas de cidades do Brasil e chegou aos Estados Unidos, tudo isso ainda em 2000. Mas o mercado fonográfico já não era o mesmo do início da década, muito por conta do avanço da pirataria, segundo especialistas, e o pagode sentiu fortemente o impacto da mudança.  De acordo com declarações de presidentes de gravadoras multinacionais à Folha, em 2001, a venda de CDs piratas já era de quase 50% do total, contra 3% quatro anos antes.

Desde aquele ano, as bandas de sucesso começaram a se dissolver após os vocalistas apostarem em carreira solo. Esse movimento aconteceu com Belo, do Soweto; Alexandre Pires, do Só pra Contrariar; e o próprio Leandro Lehart, que deixou o Art Popular um ano depois para alçar voo livre.  

Além desse êxodo, o mercado queria apostar em um novo som, pois a fórmula do cavaco, pandeiro e teclados já estava saturada depois de uma década de acertos, segundo o sociólogo Tadeu Kaçula. Na leitura dele, os comandantes da indústria cultural, ou seja, a produção cultural de consumo imediato, aproveitou o pagode dos anos 1990 enquanto era novidade para obter lucro. Ao ver o desgaste do modelo, buscou repetir a fórmula com nomes que vieram do funk, pop e sertanejo universitário.  

Os comandantes da indústria cultural, ou seja, a produção cultural de consumo imediato, aproveitou o pagode dos anos 1990 enquanto era novidade para obter lucro. Ao ver o desgaste do modelo, buscou repetir a fórmula com nomes que vieram do funk, pop e sertanejo universitário.  

Tadeu Kaçula, sociólogo
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“Foi a indústria cultural que viu a possibilidade do vocalista [cantar solo] porque ele pode montar uma banda e pagar menos. A indústria diz: ‘você é o vocalista, o nome e o rosto’. Se ela tem um contrato com o Soweto que custa R$ 50 mil, pode muito bem fechar com o Belo por R$ 20 mil”, exemplifica. 

Quem sentiu a mudança de ventos desfavorável para o pagode foi o promotor Pelé Problema. Figurinha carimbada no meio musical, ele era contratante de nove em cada dez shows em São Paulo, sem exageros, de artistas como Raça Negra e Só pra Contrariar. Nos anos 1990, vendia em média 20 apresentações por mês e faturava R$ 25 mil, algo em torno de R$ 200 mil na atualização de valores. Um show do Raça Negra não saía por menos de R$ 30 mil, enquanto Beth Carvalho pedia até R$ 18 mil por uma performance, de acordo com reportagem da Veja SP de 1995.

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Para efeito de comparação, Caetano Veloso cobrava, na mesma época, até R$ 50 mil para cantar ao vivo, mesmo valor do É o Tchan, que dominou as paradas na segunda metade da década. O cachê dos Mamonas Assassinas, raro fenômeno meteórico de vendas, chegava a R$ 80 mil.

Hoje, Problema não contrata mais do que cinco ou seis shows por mês em São Paulo, mas permanece fiel ao samba e à cidade onde vive. À Elástica, o promotor de 60 anos diz nunca ter trabalhado com outro estilo musical. “Eu sou sambista, não trabalho por dinheiro, mas por prazer. Não me sinto frustrado com a realidade, estou fazendo exatamente o que gosto. [O pagode] tem que se reinventar, não pode ficar bitolado naquilo que fazia há 20 anos”, destaca. 

“Eu sou sambista, não trabalho por dinheiro, mas por prazer. Não me sinto frustrado com a realidade, estou fazendo exatamente o que gosto. [O pagode] tem que se reinventar, não pode ficar bitolado naquilo que fazia há 20 anos”

Pelé Problema
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(Arte/Redação)

Revolução da periferia 

Para Kaçula, o pagode incomodava – e ainda incomoda – os setores mais conservadores da sociedade brasileira por ter jovens da periferia, em sua maioria negros, como representantes da ascensão social. Foi através da música, considerada de “baixa qualidade” por críticos, que eles conseguiram deixar a pobreza e compraram casa própria, ternos importados e viagens para o exterior. 

É em um cenário de apartheid cultural e social, aponta o sociólogo, que esses futuros músicos se encontravam desacreditados no período pós-ditadura militar, no fim dos anos 1980. Por essas e outras, a realização do Acústico MTV do Art Popular no Theatro Municipal de São Paulo é um feito importante para essa manifestação cultural da periferia. 

“Esses pretinhos de periferia não eram enxergados pela sociedade. Não tinham perspectiva de ascensão intelectual para ocupar uma universidade ou buscar nichos de mercado de trabalho. É preciso dizer que o que aconteceu na década de 1990 foi uma revolução periférica. Foi a possibilidade de ver jovens negros que sempre foram alvos das políticas de segurança pública desse país ocuparem espaço na mídia hegemônica e virarem referenciais para outros jovens que sempre estiveram na mira do cano [da arma] da Polícia Militar”, opina Kaçula. 

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“É preciso dizer que o que aconteceu na década de 1990 foi uma revolução periférica. Foi a possibilidade de ver jovens negros ocuparem espaço na mídia hegemônica e virarem referenciais para outros jovens que sempre estiveram na mira do cano [da arma] da Polícia Militar”

Tadeu Kaçula

Ele continua: “Não existe nada mais racista do que criticar um jovem negro de periferia que conseguiu ascensão social e econômica de comprar uma BMW. Nada mais racista do que condenar ou estigmatizar um preto de periferia ao dizer que não faz sentido um preto de periferia ter um carro de luxo.” 

Márcio Art recorda que o termo “pagodeiro” ganhou uma conotação negativa na época, pois eram conhecidos como os “caras que faziam filho e não pagavam pensão”. Negro, ele mesmo conta ter perdido a conta das vezes que foi olhado torto ao entrar em um shopping ou por comer em um restaurante grã-fino. A fama não impediu até mesmo de ser atacado por colegas do meio, como quando os integrantes do Art Popular foram chamados de “macacos” por músicos do LS Jack em uma briga no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. 

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Tatty Nascimento
Tatty Nascimento (Instagram/Reprodução)

Expectativa x realidade 

Mesmo sem a força do passado, o pagode segue firme e forte nas periferias. Tatty Nascimento, 40, se divide entre os trabalhos de representante comercial de produtos de higiene pessoal no dia e cantora de bares à noite. Ela tem 25 anos no pagode, chegou a fazer parte de dois grupos desconhecidos, Razão Feminina e Feitiço de Mulher, e gravou um álbum solo de maneira independente. 

Inspirada por Beth Carvalho e Jovelina Pérola Negra, Tatty cresceu na Vila Brasilândia, zona norte de São Paulo, nos anos 1990, rodeada de referências masculinas no pagode. Como membro de uma banda de mulheres, chegou a abrir shows de artistas maiores, porém nunca teve a oportunidade de ser ouvida por uma gravadora. O máximo que chegaram a fazer foi uma fita demo bancada por elas mesmas, assim como os banners de divulgação dos espetáculos que saíam do bolso delas. 

“O cachê era sempre reduzido e continua sendo, seguramente, eu sei disso. Uma casa que oferece R$ 1.000 para um cantor vai me oferecer R$ 600 porque eu sou mulher. É um machismo maquiado, porque ninguém quer falar de machismo no samba, demonstrar que não tem espaço para nós, que para a gente é mais difícil”, destaca. 

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“O cachê era sempre reduzido e continua sendo, seguramente, eu sei disso. Uma casa que oferece R$ 1.000 para um cantor vai me oferecer R$ 600 porque eu sou mulher. É um machismo maquiado, porque ninguém quer falar de machismo no samba”

Tatty Nascimento

A busca pelo estrelato rendeu alguns perrengues que viraram aprendizado. Ela conta que nunca vai esquecer da noite em que dividiu um cachê de R$ 10 com a banda depois que o público foi afugentado por uma forte chuva. Na ocasião, Tatty conta ter voltado para casa “chorando, desesperada”, mas valorizou mais os músicos porque ninguém reclamou da situação. Entretanto, há momentos em que ela questiona seus esforços. 

“Ouvi [de empresários] que meu disco não era comercial, não era samba nem pagode. Eu sempre ouvia que eles iam tentar, mas diziam que as ‘casas não compram [o show], é produto que não vende muito’. Eu meio que desanimei, coloquei em xeque o quanto isso estava sendo psicologicamente bom para mim. Tomei muito ‘não’, me coloquei numa posição de dúvida. Será que eu canto tão bem? Que eu mereço? Que eu devo estar bem com isso?” 

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Para Márcio Art, o pagode dificilmente vai repetir o sucesso comercial dos anos 1990. A diferença é que, para tocar na rádio hoje em dia, é preciso entregar a “mala”, ele diz, em relação ao pagamento em dinheiro para as emissoras de rádio. “Os caras não querem saber da sua história, esquece. O que você fez ali ficou ali mesmo. Eles dizem que vão nos dar uma ajuda, mas fomos nós quem ajudamos muitos donos de rádio”, afirma, aos risos.

Em carreira solo há quase dez anos, o vocalista tem cantado seus sucessos e de gigantes do samba em casas de show por São Paulo. Ele assinou recentemente um contrato para a gravação de um DVD. Já com nova formação, o Art Popular tem investido em uma série de projetos, o mais recente deles é Os Bambas, um musical com releituras de clássicos do samba. Já Tatty Nascimento começa o dia pensando em música para poder cantar à noite.

“Já me disseram que para ser cantora hoje tem que ser gorda e feia. Eu sigo na militância, o que me resta é seguir para achar a fórmula do sucesso. Essa não aceitação da mulher no samba me incomoda muito. O meu maior desejo, do fundo do meu coração, é que a minha música invada os lares em todo o Brasil, que traga acalanto para as pessoas, que seja o sustento da minha família”, finaliza.

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