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O fim da primavera

Movimentos da Primavera Árabe esbarraram em intransigência de regimes e em influências externas; moradores da região relatam uma década de desesperança

por Artur Alvarez, Gustavo Honório e Natalia Molinari Atualizado em 20 set 2021, 13h43 - Publicado em 19 set 2021 22h04
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o final do ano de 2010, a cena do vendedor de frutas tunisiano Mohamed Bouazizi ateando fogo em seu próprio corpo como forma de protesto foi o estopim para uma série de manifestações que aconteceram em países do Norte da África e Oriente Médio e que ficaria conhecida como Primavera Árabe, um movimento coletivo que se espalhou como efeito dominó no Mundo Árabe, se estendendo para o Egito, Líbia, Síria, Iêmen e Bahrein, além de países do Golfo Pérsico como Arábia Saudita e Catar, em questão de semanas.

A Primavera Árabe foi uma consequência do mal-estar da população em relação às condições sociais, econômicas e políticas que afetavam esses países. “[Bouazizi] foi só a gota que transbordou, porque toda região já estava no clima de muita tensão por questões principalmente relacionadas ao desemprego”, pontuou Andrew Patrick Traumann, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Oriente Médio (GEPOM) e especialista em História da região.

As manifestações começaram pacíficas nos países árabes e, na maioria das vezes, tomaram rumos violentos por inaptidão das autoridades locais para lidar com aquilo. “São regimes autoritários e extremamente militarizados, não estão acostumados a esse tipo de reivindicação. Então, começa como manifestação pacífica só que a reação dos governos faz com que a coisa saia do controle”, afirma o professor. Esse despreparo pode ser dimensionado se observarmos, por exemplo, os efeitos imediatos dos protestos iniciais, segundo dados de relatórios da Anistia Internacional: Durante os 18 dias de protestos para pressionar a queda do ditador Hosni Mubarak, ao menos 840 egípcios foram mortos e outros 6 mil feridos pelas forças policiais e “mercenários” contratados para reprimir os manifestantes; entre março de 2011 e maio de 2012, ao menos 12 mil pessoas foram mortas na Síria ao protestar contra o regime Assad; 338 tunisianos morreram com a repressão inicial de Ben Ali, e, um único dia, protestos contra o governo no Iêmen deixaram 50 iemenitas mortos e centenas de feridos em março de 2011.

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Uma década depois do início dos protestos e dos consequentes conflitos, esses países se encontram em instabilidade política. Muitos vivem cenários socioeconômicos piores dos que estavam inseridos antes das manifestações. “A Primavera Árabe afetou o equilíbrio de poder no Oriente Médio. Se antes já era uma região instável, com o desencadeamento da Primavera fica três vezes mais”, disse Ana Karolina Morais, pesquisadora do NEEGI (Núcleo de Estudos Estratégicos, Geopolítica e Integração Regional), associado à Universidade Federal da Integração Latino-Americana.

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As fotos que ilustram essa reportagem foram tiradas em manifestações pacíficas de apoio aos palestinos, em maio de 2021. Após os confrontos recentes do povo palestino com Israel, jovens tunisianos foram às ruas reivindicar direitos dos palestinos e contra a cooperação do governo aos sionistas (Ahmed Ghram/Fotografia)
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Causas e demandas

Os países do Oriente Médio e Norte da África carregam uma herança das divisões que foram feitas em seus territórios ao longo da História. Segundo Traumann, com a Conferência de Berlim em 1885 – em que houve a partilha da África – e, posteriormente, na Primeira Guerra Mundial – com a divisão do Oriente Médio por esferas de influência entre França e Grã-Bretanha – a atuação de agentes externos na região impactaram os modelos políticos vigentes nos países dessas regiões até hoje. A partir da Segunda Guerra Mundial, os países começaram a conquistar a independência. Para manter a influência na região, as nações colonizadoras apoiavam governos que eram alinhados às suas pautas política, econômica e, muitas vezes, ditatorial. “Há ditadores em toda a África que eram ‘testas de ferro’ de colônias e tinham feito acordos multinacionais. É daqui que vem a herança do autoritarismo, tanto na África como no Oriente Médio”, destaca. Foi nesse cenário – favorável à manutenção de governos autocráticos – que as ditaduras longevas dos principais países do Oriente Médio e Norte da África se encontravam no início dos protestos.

As demandas que unem todos os países da Primavera eram movimentos pela democracia e pela liberdade de expressão, que reivindicavam eleições, contra a alta taxa de desemprego e por melhores condições sociais. Issam Rabih Menem, pesquisador libanês do Núcleo de Pesquisa sobre as Relações Internacionais do Mundo Árabe (NUPRIMA), afirma que “o ponto mais importante é a falta de participação das pessoas nos espaços de poder e decisão do país, o que deixava muitas pessoas inquietas”. Para Traumann, não há como não atribuir a crise de 2008 como uma das causas da Primavera Árabe. “Esses países estavam sofrendo muito os efeitos da crise e isso só catapultou o que acabou acontecendo a partir daí”.

A insatisfação popular também tem origem na falência da “democracia do pão”, política de estado de países como Tunísia e Egito desde os anos 1970 e que se extinguiu na década de 1990, quando índices de desigualdade social retomaram um aumento nessas nações. Com a crise econômica mundial de 2008 e com a escassez do trigo, em 2010, essa situação atingiu seu ápice, levando vários jovens a protestarem contra a pobreza e fome. A combinação desses fatores desencadeou insurgências por menos disparidades sociais nos países árabes. Por todo esse contexto, Morais ressalta que “a Primavera não foi formada em 2011. Na verdade, ela é um momento em que todas essas contradições sociais de décadas entram em ebulição”.

“Há ditadores em toda a África que eram ‘testas de ferro’ de colônias e tinham feito acordos multinacionais. É daqui que vem a herança do autoritarismo, tanto na África como no Oriente Médio”

Andrew Patrick Traumann, pesquisador
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(Ahmed Ghram/Fotografia)

Os atores dos protestos foram majoritariamente jovens que questionavam os sistemas políticos vigentes, além dos ordenamentos sociais de seus países. “A maioria das manifestações era protagonizada por jovens universitários, ou seja, uma camada naturalmente heterogênea da sociedade”, relata Morais.

Em alguns países esses jovens tinham maiores conhecimentos sobre as mídias sociais, como Facebook e Twitter, e as utilizavam em seu favor para articular e fortalecer protestos. Ainda segundo a pesquisadora, “muitos movimentos se organizavam por redes sociais, justamente por ser um movimento das classes estudantis”. Ou seja, os movimentos populares no Mundo Árabe não começaram por causa das redes sociais, mas se propagaram com maior intensidade e magnitude por causa delas.

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(Ahmed Ghram/Fotografia)

No xadrez geopolítico da região, os países afetados pela Primavera são peões

A instabilidade política que os estados árabes passam hoje também pode ser atribuída à interferência de agentes externos no conflito. São as potências ocidentais, que rivalizam com a presença de outras forças regionais e recentemente consolidadas. Em escala regional, países como Israel, Turquia e Irã são fundamentais para a geopolítica do Oriente Médio. Esses países estavam atentos aos desdobramentos dos conflitos, pois uma mudança de governo implica em abrir um precedente para mudanças de governos em outros países. Em âmbito internacional, potências como os Estados Unidos, países da União Europeia, Rússia e China mantêm diferentes interesses nos países árabes.

“O Oriente Médio sempre foi uma região conflitiva e com a participação de muitas potências externas. Isso porque [a região] é fundamental para as geopolíticas do petróleo, dos recursos energéticos e do gás, além da relação geográfica, por ser um corredor que liga a Europa à Ásia Central e à África.” afirma Morais.

Na lógica de preservar os seus interesses, essas potências acompanham os desdobramentos das movimentações da Primavera Árabe. Segundo a pesquisadora, “as potências deram tratamento midiático na intenção de vender a narrativa da democracia ocidental e focaram nas mudanças de governo que eram mais vitais para seus interesses. Por exemplo, os casos da Líbia e da Síria. Depois, abandonaram”.

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Para tratar das consequências e dos conflitos gerados nos países afetados pelas manifestações, a ONU tem dificuldades de agir, por depender da cooperação de outros países. “Como todo organismo multilateral, [a ONU] tem pouca autonomia. Ela tenta operar como uma mediadora nos conflitos, mas, em muitos casos, ela fica de mãos atadas”, explica Morais.

“O Oriente Médio sempre foi uma região conflitiva e com a participação de muitas potências externas. Isso porque [a região] é fundamental para as geopolíticas do petróleo, dos recursos energéticos e do gás, além da relação geográfica, por ser um corredor que liga a Europa à Ásia Central e à África”

Ana Karolina Moraes, pesquisadora
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(Ahmed Ghram/Fotografia)

O berço da Primavera teve o melhor desfecho, apesar das contradições

A Tunísia foi o berço da Primavera, com a chamada Revolução de Jasmin. “Era possível perceber que as pessoas nas ruas estavam revoltadas. Quanto mais gente tinha, mais a polícia agia com truculência. Tudo aconteceu muito rapidamente”, relata Ahmed Ghram, de 25 anos, membro da Liga Tunisiana de Direitos Humanos e morador de El Mourouj, região metropolitana de Tunes.

A realidade do país do norte da África, governado pelo autocrata militar Ben Ali por 23 anos, era de instabilidade social causada por casos públicos de corrupção, taxas de desemprego altas, que atingiam principalmente uma massa de jovens universitários, os principais responsáveis por articular manifestações contra o governo.

Os protestos ganharam força rapidamente pelo país. O presidente Ben Ali reagiu reprimindo violentamente as primeiras formas de manifestações, o que aumentou a tensão entre a população e o governo. Em 14 de janeiro de 2011, pouco menos de um mês após o início dos protestos, Ben Ali afastou-se do poder e fugiu para a Arábia Saudita. Foi o primeiro governante árabe a cair por um movimento social espontâneo. Após a queda de Ali, a Tunísia começou um processo de transição de poder. Houve três governos interinos até as primeiras eleições, em 2011, quando Moncef Marzouki foi eleito presidente interino.

Em 2014, o país aprovou a primeira Constituição pós-revolucionária, mais progressista, que abriu espaço para as mulheres ganharem participação política no país. “O movimento feminista é muito forte na Tunísia, comparado a outros países árabes. Há uma luta constante pela equidade de gênero”, considera Ghram.

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No mesmo ano, foram realizadas as primeiras eleições democráticas, que terminou com a vitória do partido de centro-esquerda de Béji Caïd Essebsi. De acordo com o tunisiano, “a política mudou. Ainda não era exatamente como a população queria, mas era um avanço necessário para a época”. O jovem reflete que a estabilização do país era fundamental para expulsar o legado autoritário: “precisávamos de uma base firme para nos equilibrarmos”.

“O movimento feminista é muito forte na Tunísia, comparado a outros países árabes. Há uma luta constante pela equidade de gênero”

Ahmed Ghram, tunisiano
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(Ahmed Ghram/Fotografia)

Hoje, após uma década das manifestações, a Tunísia passa por uma transição democrática frágil, que ainda reflete práticas autoritárias de regimes passados. Em janeiro de 2021, Ghram foi detido por 14 dias após publicações no Facebook de cunho crítico ao governo e contra a brutalidade policial.

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“Fui tirado da minha casa no dia 17 de janeiro. Me levaram para a delegacia, detiveram-me por horas e ficaram me fazendo perguntas arbitrárias. Quando eu pisei na penitenciária, caiu a minha ficha, eu estava aterrorizado, ainda mais porque minha advogada disse que eu poderia pegar até três anos por desobediência”, disse. Ghram afirma que “no final, a experiência fez mais bem do que mal”, porque, apesar da situação em que se encontrava, ele viu seus amigos protestando pela sua soltura e de outros que protestavam contra o governo, por conta do caráter autoritário das prisões. “Isso me deixou muito orgulhoso”, conta.

Para especialistas, a Tunísia se consolida como um dos desfechos relativamente positivos na Primavera Árabe. “Foi um movimento que aconteceu de maneira muito rápida, mas, com certeza, foi o grande destaque da Primavera”, ressalta Menem.

“Objetivamente, vejo que a Tunísia acabou melhor que outros países, pois manteve sua soberania e democracia”, confirma Ghram. “Porém, do meu ponto de vista, não acho que a gente saiu exitoso da Primavera, porque as pessoas que têm poder não mudaram. Hoje em dia, a Tunísia é uma bomba-relógio social. Há muita tensão, com as constantes violações dos direitos”, completa.

O jovem revolucionário diz que as novas gerações de tunisianos já são, em sua maioria, ativistas e participantes de movimentos sociais. “Estou muito orgulhoso e esperançoso quanto ao nosso futuro por conta dessa juventude. Eu sei que é uma luta duradoura e difícil, mas tenho esperança”, afirma Ghram.

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A chama egípcia por revolução acabou em cinzas

Com a queda de Ben Ali na Tunísia, a mensagem que se espalhou pelos países da região era que os ditadores não eram absolutos no poder. Eles poderiam ser derrubados. A luta pela liberdade no Mundo Árabe atingiu seu ponto de maior euforia no Egito. A praça de Tahrir, no centro do Cairo, foi tomada pela juventude egípcia e virou o símbolo de um levante que tomou proporção nacional. “Todos nós nos sentimos livres naquele momento, não estávamos com medo. Depois de 18 dias sentados na praça, Mubarak sentiu aquilo, porque não era apenas Tahrir, era em todo lugar”, contou o cineasta egípcio Ahmed Hassan, de 34 anos, um dos mais efusivos personagens da Revolução Egípcia. Ele também protagonizou e dirigiu a fotografia do documentário The Square, que registrou parte dessa luta e foi premiado com três Emmy’s e uma indicação ao Oscar.

Até aquele momento, a população egípcia não sabia o que era democracia. Desde a fundação da república, em 1953, uma geração após a outra foi privada de escolher um representante. Ao longo desses anos, três homens sentaram na cadeira mais poderosa do Estado e o último deles foi o militar Hosni Mubarak, que, com o apoio das forças armadas, estava no poder por pouco mais de 30 anos no começo de 2011.

Assim como na Tunísia, a repressão do governo aos protestos foi alta. Mubarak chegou a dizer que era “ele ou o caos”. Hassan relata que era um verdadeiro cenário de guerra em Tahrir. “Foi o momento mais difícil da minha vida. Eu via pessoas morrendo ao meu redor”, disse. “A revolução desceu às ruas querendo paz, anunciamos isso o tempo todo, mas eles não queriam saber, só queriam nos calar”, completa.

“Todos nós nos sentimos livres naquele momento, não estávamos com medo. Depois de 18 dias sentados na praça, Mubarak sentiu aquilo, porque não era apenas Tahrir, era em todo lugar”

Ahmed Hassam, cineasta
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(Ahmed Ghram/Fotografia)

Mas, com a pressão que exerceram, os revolucionários no Egito fizeram ruir o governo de Mubarak. “Uma vez que as pessoas foram às ruas, nós sentimos o poder e o quão poderosos nós éramos. Tínhamos os mesmos sentimentos, a mesma esperança, as mesmas demandas, a mesma paixão para o futuro do nosso país”, declarou Hassan.

Mesmo após sua queda, Mubarak ainda exercia muita influência no país. “Ele é um demônio, ainda tinha muito poder. Ele estava em tudo, o país estava em suas mãos“, disse Hassan. O líder autoritário enfrentou diversos julgamentos e acusações com o passar dos anos – inclusive, a de participação nas mortes de mais de 800 pessoas. Entre condenações e absolvições, Mubarak foi preso em 2011 e ficou seis anos preso.

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O movimento no Egito removeu um tirano do poder e promoveu uma eleição histórica. Mohamed Morsi, o representante do grupo fundamentalista Irmandade Muçulmana, foi o primeiro presidente eleito democraticamente pós-ditadura. Apesar do pleito inédito e das diferenças entre Mubarak e o novo presidente, Hassan afirma que “só mudou a figura da opressão”. Seu governo perdeu força rapidamente: “não ouviram as demandas do povo e [a Irmandade e Morsi] começaram a utilizar a religião como principal ferramenta nesse jogo político”, afirma o cineasta. Morsi foi deposto, em 2013, por um golpe militar.

Com o apoio do exército, o militar e ex-ministro da Defesa de Mubarak, Abdel Fattah Al-Sisi, assumiu o controle do país em 2014. Após três anos do sucesso obtido pela revolução ao depor Mubarak, os militares conseguiram voltar ao poder e se mantêm até hoje em um governo tão repressivo quanto o do ditador.

Infelizmente, isso significa que não só as coisas não mudaram no Egito, mas também pioraram, porque a repressão aumentou e, com isso, a resistência foi desarticulada por Al-Sisi. “Até hoje, a revolução não teve sucesso. Mas isso não significa que tenha morrido. A Primavera não mudou nada estruturalmente no país, pelo contrário, o Egito está pior do que nunca no momento. Por tudo isso, cedo ou tarde, as pessoas voltarão às ruas para exigirem seus direitos”, disse Hassan.

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(Ahmed Ghram/Fotografia)

Dez anos depois, Líbia é o símbolo do que deu errado na Primavera

“A Primavera Árabe falhou na Líbia porque houve interferência externa. No fim das contas, não era para os líbios. Foi feita por interesses estrangeiros. Não foi para o povo, mas foi feita pelo povo. Essa é a verdade com que nos deparamos hoje em dia”, diz Wadah al-Keesh, de 32 anos, morador de Trípoli. Ele é funcionário da Autoridade de Busca e Identificação de Pessoas Perdidas, órgão do governo líbio.

Essa é a visão de alguém que, em 20 de fevereiro de 2011, aos 22 anos e cursando uma graduação em Inglês na capital líbia, pegou em armas e se juntou à rebelião contra Muammar Gaddafi, líder do país há mais de quatro décadas. A ideia era derrubá-lo do poder e conquistar maiores direitos.

Com a interferência externa da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) – aliança militar intergovernamental – autorizada pela ONU por conta da repressão sangrenta que Gaddafi promovia contra os rebeldes, o ditador foi morto em outubro de 2011 por combatentes do Conselho Transicional Nacional, uma coalizão de jihadistas apoiada pela OTAN. “Sua queda foi muito rápida e, logo após sua morte, o caos se instaurou no país. Houve muitos movimentos diferentes se autodenominando governo da Líbia”, afirma o especialista em geopolítica Menem.

Wadah testemunhou de perto a piora da situação do país com o início da disputa interna pelo poder. Ele relata que “as tribos de diferentes famílias se concentraram em cidades pelo país”, onde tentavam controlar aquela região.

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Sociedade tribal na Líbia

A Líbia não é um país comum, com modelo de funcionamento similar ao das nações ocidentais. Sua sociedade é dividida em tribos centenárias que têm um papel importante na organização social e política do país. Por isso, podemos dizer que essa sociedade líbia não funciona como uma unidade porque as pessoas se identificam antes como membros de determinado clã do que líbios.

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As eleições de 2014, asseguradas por potências externas que atuavam na região desde 2011, supostamente em nome da pacificação e do processo democrático, apenas escancararam que o país estava “rachado” em diferentes fragmentos de governos. Diferentes facções buscam o poder. Entre elas, a Aliança Nacional e as facções islâmicas.

O morador de Trípoli diz que o povo tinha esperanças de que as coisas poderiam melhorar no país com o pleito de 2014. “Mas isso não aconteceu, as pessoas se decepcionaram. O mesmo grupo que controla as eleições foi quem as venceu. Não era quem o povo queria”, aponta.

Com o vácuo de poder, a Líbia mergulhou em guerras. A população, fragilizada com a realidade, não recebeu nenhum tipo de apoio do governo, disse al-Keesh. “Algumas casas são completamente destruídas pela guerra, e as pessoas são deixadas à mercê de sua própria sorte ou poder aquisitivo”, diz.

“Há um embate político grande, mas também socioeconômico como consequência. Com isso, vemos índices de fome e refúgio muito grandes, algo que não acontecia anteriormente. Em 2012, a Líbia era o país que tinha o segundo maior Índice de Desenvolvimento Humano do continente africano, de 0,789. Havia um estado de bem-estar social daquela população”, diz Menem. A partir daí, o Índice de Desenvolvimento Humano do país caiu e, em 2015 e 2016, chegou a ficar abaixo de 0,700.

“Foi uma invasão externa, mas por tropas líbias, por nós mesmos. Fizemos a parte pesada para eles, nós lutamos. É como se o plano deles fosse que nós nos matássemos e derrubássemos Gaddafi para eles, não para nós. É por isso que digo que fomos enganados”

Wadah al-Keesh, líbio
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Bandeiras antifascistas nas manifestações
Bandeiras antifascistas nas manifestações (Ahmed Ghram/Fotografia)

O líbio também reclama que a interferência externa de agentes internacionais e países estrangeiros nunca foi bem-vinda e ainda traz ônus ao país. “Muitas tribos viram como uma invasão, não uma revolução. Antes da invasão, eram 98% contra Gaddafi; depois, éramos 100% contra a invasão”, conta. “Eles só querem uma coisa: as riquezas da nossa terra”, completa Wadah. Menem lembra que “EUA, França e Itália, coincidentemente forças por trás da OTAN, têm empresas que extraem petróleo no país”.

Wadah al-Keesh atribui o caos atual do seu país a essa interferência e que esses países manipularam os líbios a se colocarem nessa situação por meio de sua influência. “É um conceito antigo, que remete ao neocolonialismo, mas, desta vez, sem posicionar tropas no local”, fala. “Foi uma invasão externa, mas por tropas líbias, por nós mesmos. Fizemos a parte pesada para eles, nós lutamos. É como se o plano deles fosse que nós nos matássemos e derrubássemos Gaddafi para eles, não para nós. É por isso que digo que fomos enganados”.

Hoje em dia, al-Keesh gostaria de ter alguém como Gaddafi de volta no comando do governo, porque ele centralizava o poder e as interferências externas da geopolítica não agrediam o país dessa maneira. A afirmação pode soar estranha a muitos ouvidos, mas, diante da ação de países estrangeiros na Líbia, Wadah afirma, com certeza, que “Gaddafi era melhor”.

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(Ahmed Ghram/Fotografia)

Desfecho em aberto

Os protestos repercutiram pelo Mundo Árabe. Países como a Síria e o Iêmen tiveram como consequência umas das maiores crises humanitárias do mundo, além de uma guerra civil; no Bahrein os protestos foram violentamente reprimidos pelo governo, o que resultou em dezenas de mortos; na Argélia, em Marrocos e na Jordânia, a população demonstrou insatisfação, mas poucas mudanças estruturais aconteceram; monarquias do Kuwait e Arábia Saudita enfrentaram protestos menores. Esses são apenas alguns dos países atingidos pela efervescência social de 2011.

Dez anos após o início dos protestos da Primavera Árabe nos países do Norte da África e do Oriente Médio, Traumann diz que “a herança da Primavera não é muito boa”, já que na grande maioria dos países houve uma piora nas condições em diversas esferas da sociedade, com alguns casos mais extremos de ditaduras mais repressivas que antes, além de guerras civis. “O que nós vemos até hoje são consequências da Primavera Árabe”, pontua.

Para Ana Karolina Morais, os resultados da Primavera nesses dez anos podem ser interpretados em uma perspectiva sociológica, na medida em que a movimentação deixa um legado de que é possível levar demandas políticas aos governantes. Ela explica: “vários desses países viveram anos de silenciamento social e político e puderam se erguer e se sentir ouvidos, mesmo que não tenham atingido grande parte de seus objetivos”.

Do ponto de vista geopolítico, a especialista em relações internacionais afirma que a Primavera desestabilizou mais ainda uma região que já era instável. “Temos uma situação catastrófica no Oriente Médio”, lembra Morais, que completa dizendo que não há expectativas a curto ou médio prazo de uma melhora na região. “A Primavera Árabe abriu uma fratura na região. Temos o aprofundamento da disputa geopolítica das grandes potências nesse contexto. Antes de melhorar, ainda vai piorar muito”.

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