Essa reportagem é a segunda parte de uma longa investigação sobre como os psicodélicos podem ajudar no tratamento e na recuperação de pessoas com dependência em álcool, cigarro, cocaína, heroína e crack, entre outras substâncias. Confira aqui a primeira parte.
O antropólogo e psicólogo Paulo César Ribeiro Barbosa, que estuda ayahuasca desde que desenvolveu sua tese de mestrado em psiquiatria pela Unicamp nos anos 1990, a partir de estudos observacionais de indivíduos antes e depois de tomar a bebida pela primeira vez, através do Santo Daime e União do Vegetal (UDV), acredita no potencial da substância no tratamento para dependência química de diversos tipos, além de apontar outras benesses. Importante também dizer que o trabalho de pós-doutorado de Barbosa, em uma colaboração entre a Universidade do Novo México, incentivada com bolsa Cape, foi o primeiro ensaio clínico da era moderna que testou a psilocibina contra dependência do álcool.
“Logo após tomarem ayahuasca, o humor deles melhorava repentinamente, ficavam mais alegres, diminuíram os traços de ansiedade e depressão, curtiam mais a vida”, relata ele, que liderou o estudo “Assessment of Alcohol and Tobacco Use Disorders Among Religious” (financiado pelo CNPq e pela Universidade Estadual de Santa Cruz; publicado em 2018 pela revista Frontiers in Psychiatry), no qual foi comparada a prevalência no uso de álcool e cigarro entre fiéis da UDV e uma amostra representativa da população.
“Logo após tomarem ayahuasca, o humor deles melhorava repentinamente, ficavam mais alegres, diminuíram os traços de ansiedade e depressão, curtiam mais a vida”
Paulo César Ribeiro Barbosa, antropólogo e psicólogo
No artigo, foi observado que a prevalência de uso de tabaco e álcool entre os frequentadores da UDV ficavam muito abaixo das normas brasileiras, e que havia uma correlação negativa entre o uso de ayahuasca e o uso de tabaco e álcool. Ou seja, quanto mais as pessoas tomavam o chá, menos elas fumavam e bebiam álcool. Enquanto o uso passado dessas substâncias era maior no grupo da UDV, o uso recente era maior entre católicos e protestantes. “O que sugere um efeito terapêutico a longo prazo entre quem bebe o chá”, explica Paulo Cesar Barbosa, também professor da área de metodologia científica da Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, na Bahia, que liderou o estudo.
“Tomei ayahuasca pela primeira vez com 17 anos e passei por um processo de limpeza. Depois disso, meu corpo começou a rejeitar quando bebia ou fumava, passei a ter reações diferentes do que eu costumava ter. Eu bebia e ficava imediatamente enjoada, com cigarro também, tudo começou a ficar aversivo”, diz a psicóloga Stefania Neves, 26 anos, que consagrou o chá pela primeira vez no Centro Espiritual Xamânico Fênix, em Caieiras, região metropolitana de São Paulo. “A bebida me fez mudar completamente meus hábitos, até parar de comer carne eu parei”, acrescenta.
O cabeleireiro de 49 anos Henri Guimarães de Oliveira, de Itatiba, interior de São Paulo, passou duas décadas lutando contra o uso abusivo e quase diário de cocaína, crack e álcool. Até que dois anos atrás, quando estava em uma clínica de reabilitação, uma de suas muitas internações no combate ao vício ao longo dos anos, participou de uma cerimônia universalista com ayahuasca no Templo Hateva, na mesma cidade, seguindo a sugestão do dono da instituição. “Na primeira vez, já percebi que poderia abandonar o vício”, relata Henri. “Foram algumas sessões até que eu parasse de negociar comigo mesmo, que eu finalmente entendesse que uma dose e uma substância puxa a outra e que encontrasse força para parar.”
Entre os efeitos dos psicodélicos observados no cérebro está a chamada plasticidade neuronal, que favorece com que se estabeleçam novas redes neuronais. “Esse aumento do número de conexões, de sinapses, leva a um estado de reequilíbrio dos neurotransmissores e, consequentemente, a uma sensação sustentada de bem-estar”, diz Bruno Rasmussen, clínico geral.
Com esse conhecimento, de que os psicodélicos são na verdade neurogênicos, cai por terra a falsa noção de que eles “queimariam neurônios”, ou que deixariam a pessoa “frita”. “Isso não é verdade, né? Algumas substâncias matam neurônios, a cocaína mata neurônios, o crack, o álcool… E é fácil entender, as que não matam neurônios encontram receptores de moléculas análogas fabricadas pelo próprio organismo, como os canabinóides no caso da maconha ou os da serotonina no caso da ayahuasca [5-HT2A, 5HT2C]. Já o álcool, uma substância estranha, que o cérebro não produz nada parecido, em uma quantidade muito intensa, mataneurônios. Não há indícios de que os psicodélicos matem neurônio”, define o médico.
Enquanto algumas doses de psicodélico podem manter alguém bem por anos, um fármaco comum requer uso diário para ter o efeito. “E isso acontece porque o antidepressivo obriga o cérebro a fabricar mais neurotransmissor para você se sentir melhor, é preciso que se mantenha esse estímulo. “Enquanto o psicodélico, como ele vai na raiz e provoca essa reconexão geral, você pode tirar o medicamento que o cérebro continua produzindo neurotransmissores na quantidade certa”, expõe Rasmussen. Também é importante destacar que a classe dos antidepressivos convencionais, como escitalopram, que atua como inibidor seletivo da recaptação da serotonina, não apresenta inovações significativas desde que chegou ao mercado a fluoxetina, também conhecida como Prozac, em 1988. Enquanto isso, a Organização Mundial de Saúde considera a depressão “O Mal do Século 21”.
“Algumas substâncias matam neurônios, a cocaína mata neurônios, o crack, o álcool… E é fácil entender, as que não matam neurônios encontram receptores de moléculas análogas fabricadas pelo próprio organismo. Não há indícios de que os psicodélicos matem neurônio”
Bruno Rasmussen Chaves, clínico geral
Um terceiro efeito neurológico dos psicodélicos ainda é a diminuição de atividade na Rede do Modo Padrão (Default Mode Network), rede cerebral de grande alcance que costuma ser ativada quando não estamos focados em atividades externas, como quando estamos com o pensamento distante em meio a devaneios, ruminações, planejamentos, memórias e quando refletimos sobre nós mesmos e aqueles que nos cercam.
Essa interrupção da experiência psicodélica permite que o cérebro se rearrange, como se fizesse um reboot, e a partir dos relatos é possível entender que o indivíduo passa a conseguir fazer associações e correlacionar fatos, integrar experiências, acessar, elaborar e ressignificar traumas de maneira que não conseguia antes de tomar a medicina. Os psicodélicos parecem agir como descreve Tom Zé na canção “Tô”: “Eu tô te explicando pra te confundir/ Eu tô te confundindo pra te esclarecer”.
“São verdadeiros expansores de consciência, pois facilitam que a pessoa perceba coisas que antes não percebia, que ela tenha insights sobre a vida e os relacionamentos. Por isso são úteis no processo de psicoterapia, a compreensão e o entendimento são facilitados”, explica Bruno Rasmussen.
“A ayahuasca afetou o espiritual, o mental, reverberou na minha família, hoje minha sobrinha consagra também”, conta Henri. “A experiência aguda, entre 20 e 30 minutos após a ingestão, no caso da ayahuasca e da psilocibina, propicia momentos de insight”, diz Dr. Barbosa. O que o “ex- tabagista” Mauricio Takeda descreve como: “Viagens cósmicas, me explicaram muita coisa que eu precisava saber para mudar meu comportamento no dia a dia. Eu consegui ressignificar a importância da vida, enxergar dentro de mim uma força superior do que eu podia imaginar”, diz o baterista pagão, que diz não ter mais sentido vontade de usar remédio nem cigarro depois do primeiro ritual com ayahuasca. “Fui acender um cigarro e senti um gosto horroroso. Até comprei outro maço para ver se o problema não era daquele, mas o gosto nojento continuou. Depois disso, nunca mais fumei”, diz Mauricio, que continuou tomando ayahuasca e consagrando outras medicinas da floresta como kambô, sananga (espécie de colírio natural) e rapé (tabaco em estado puro moído com ervas medicinais).