ocê lembra como aprendeu a gostar de ler? Eu me lembro: foi devorando gibis e almanacões da Turma da Mônica, que chegavam semanalmente na minha casa graças a uma assinatura que ganhei de aniversário da minha madrinha. A cada pacote com novas leituras, vários universos se acendiam e se criavam na minha cabeça. O gosto pela leitura virou gosto pela escrita e… bom, estamos aqui hoje, virei jornalista e só percebi recentemente o quanto devo isso aos quadrinhos. Fato é que, durante a adolescência, me distanciei dessa linguagem tão rica que são as HQs. Perdi o interesse e só recentemente, entrando em contato com outras questões como representatividade, gênero e narrativas dentro do mercado em que eu existo enquanto profissional, voltei a olhar para os quadrinhos.
É bem comum que a gente associe esse tipo de produção ao universo fantástico, de super-heróis que usam capas, combatem crimes e, claro, quase sempre são homens – héteros, brancos, musculosos. Isso só significa que vivemos em uma sociedade que é, no mundo todo, machista – de forma alguma isso prova que não existem mulheres produzindo ótimos quadrinhos. “Essa hegemonia masculina é muito grave e impacta, obviamente, nas escolhas que são feitas para o mercado em si. Eu bato muito na tecla de representação – o que a gente vê, o que está representado. Temos mulheres nas histórias em quadrinhos, mas como isso acontece? Como elas aparecem nas HQs? Para falar sobre esse “como”, falamos de representatividade – quem está por trás produzindo, e isso vai dos cargos de liderança e decisão até os cargos de produção. Quando isso muda, passos são dados para que os cargos de produção, execução e tudo mais também mudem. Mais diversidade nos cargos mais altos significa uma preocupação maior com mais diversidade nos mais baixos também. E é assim que a mudança acontece. Políticas afirmativas devem existir, é reparação histórica”, pontua Gabriela Borges, jornalista e criadora da Mina de HQ, projeto que existe desde 2015 e contribui para deixar o universo dos quadrinhos mais igualitário, dando protagonismo para mulheres e pessoas não binárias que produzem quadrinhos.
“Temos mulheres nas histórias em quadrinhos, mas como isso acontece? Como elas aparecem nas HQs? Para falar sobre esse ‘como’, falamos de representatividade – quem está por trás produzindo, e isso vai dos cargos de liderança e decisão até os cargos de produção”
Gabriela Borges
Gabriela, assim como eu, também foi introduzida no mundo dos quadrinhos graças à Mônica, ao Cebolinha e ao Mauricio de Sousa. Mas ela nunca deixou o amor pelas HQs de lado. O gênero, inclusive, foi tema de sua pesquisa de mestrado: a representação da mulher e os discursos de gênero nas histórias em quadrinhos. O curso foi concluído em meados de 2013, na Argentina, e a levou a participar de diversos painéis e eventos sobre o tema – mostrando que, desde sempre, tinha muita mina fazendo HQ –, além de escrever uma coluna na revista Tpm sobre mulheres e o universo dos quadrinhos. Foi só dois anos mais tarde que o Mina de HQ como conhecemos hoje tomou forma e ganhou as redes sociais. Desde então, além de um perfil no Instagram, ele também virou site, com publicações inéditas mensais de quadrinistas mulheres, duas revistas impressas – você ainda pode contribuir com a segunda edição, hein? – newsletter, vídeos… “O maior desafio, sem dúvidas, é fazer de forma independente. O dinheiro vem todo de uma campanha de financiamento coletivo, apoio mensal e de algumas parcerias que faço, mas é totalmente independente. A contribuição de quem gosta desse trabalho é que faz acontecer. O Mina de HQ remunera todo mundo que faz trabalhos para a gente – e isso acontece com o dinheiro do Apoia.se. Eu, Gabriela, não ganho dinheiro, porque priorizei pagar as artistas, mesmo que seja só simbólico”, ela conta.