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A potência da quebrada

Rincon Sapiência analisa a cultura da periferia, reflete sobre o racismo e diz que gosta de entregar beleza em seu trabalho

por Beatriz Lourenço Atualizado em 30 Maio 2022, 17h51 - Publicado em 26 Maio 2022 23h32
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(Carla/Reprodução)

pesar de não querer ser colocado como herói, o rapper Rincon Sapiência entregou uma forma de fazer música que inspira a nova geração. Seu trabalho não depende de grandes gravadoras ou equipamentos caros para atingir os 619 mil seguidores ou lotar shows, já que sua marca registrada são as mensagens antirracistas e a valorização da periferia – mostrando que lá não faltam talentos, e sim, investimento. 

Apesar da modéstia, é possível dizer que suas letras são universais. Tanto que seu último EP, “O Peso das Barra”, lançado em dezembro do ano passado, reverberou em Portugal. Feitas em parceria com o rapper português Timor YSF, as duas músicas “De Onde Cê Vem (Verso Livre)” e “Serenata” falam sobre as maravilhas e os dissabores que é a vida na quebrada. 

“Desde 2017, temos ido para a Europa fazer turnê e o país em que temos mais abertura, talvez por conta da língua, é Portugal. Foi aí que resolvi me aliar a um artista de lá e diminuir essa distância entre nós”, conta. O clipe, por sua vez, foi gravado na Cova da Moura, em Lisboa, e na Cohab 1, em São Paulo, mostrando semelhanças e diferenças entre as duas regiões. “Nunca imaginei que existisse por lá uma região com tijolos sem reboco, pessoas ocupando as ruas e com aquela energia bem parecida com o que acontece aqui. Mas esse foi o lugar onde mais me identifiquei, que comi melhor e conheci mais artistas”, completa.

“A estrutura não é feita para que a gente esteja na vitrine e na parte principal dos lugares, mas tudo o que está no pop e na moda vem das ruas”

Além do posicionamento político e social, Rincon se destaca pelo visual. Filho de uma costureira, que o influenciou no modo de se vestir, o artista sente que essa é não só uma forma de se comunicar, mas de hackear o sistema vigente. “Tenho uma pesquisa sobre a música do continente africano e as africanidades que estão aqui no Brasil. Pensando nisso, geralmente uso cores mais quentes e diversos adereços”, reflete. “A estrutura não é feita para que a gente esteja na vitrine e na parte principal dos lugares, mas tudo o que está no pop e na moda vem das ruas.”

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Por ser um dos maiores expoentes de sua geração, o músico foi escolhido para participar de uma campanha da Sprite que incentiva a valorização dos momentos de pausa. Para isso, uma versão mais low do hit “Ponta de Lança” foi criada – o menor BPM (batida por minuto) produz ondas sonoras que reduzem a frequência cardíaca ao nível das ondas alfa do cérebro. 

“Não só reduzi o BPM da música, mas coloquei mais arranjos, experimentei novos sons e refiz os vocais. É muito importante que pessoas pretas participem mais de campanhas publicitárias. Colocar o rap nesse cenário também é essencial para seu crescimento, desde que a gente mantenha a base dessa cultura. Fiquei orgulhoso, gosto de entregar um resultado artístico bonito”, revela. Abaixo, confira o nosso papo completo com Rincon Sapiência:

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“É muito importante que pessoas pretas participem mais de campanhas publicitárias. Colocar o rap nesse cenário também é essencial para seu crescimento, desde que a gente mantenha a base dessa cultura”

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No último ano, você lançou o EP O Peso das Barra, com as músicas “De Onde Cê Vem (Verso Livre)” e “Serenata”, em parceria com o rapper Timor YSF. Qual é a história dessas músicas? Tem alguma passagem específica da sua vida que te motivou a criar essas composições?
Todo fim de ano eu faço uma música de verso livre, um estilo de produção sem refrão e em que abordo várias temáticas diferentes. Desde 2017 temos ido para a Europa fazer turnê e o país que temos mais abertura, talvez por conta da língua, é Portugal. Foi aí que resolvi me aliar a um artista de lá até e diminuir essa distância entre nós. As reflexões desse EP têm a ver com esse momento de quando começamos a viajar mais e acabamos lembrando da nossa origem e de como as coisas e os acessos eram limitadas antes. Na música “Serenata”, falamos sobre os corres que fazemos diariamente nas quebradas e a dificuldade diária que passamos para poder realizar nossos sonhos. 

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(Rincon Sapiencia/Divulgação)

O clipe tem imagens de Cova da Moura, em Lisboa, e da Cohab 1, aqui em São Paulo. São suas regiões periféricas que têm muita história. O que você sente que elas têm em comum?
Foi muito interessante filmar lá porque quando pensamos no padrão econômico europeu, sabemos que ele é alto. Mas quando comparado com Londres, Alemanha e França, Portugal é um país menos abastado – mesmo participando da União Europeia. Nesse sentido, nunca imaginei que existisse por lá uma quebrada com tijolos sem reboco, pessoas ocupando as ruas e com aquela energia bem parecida com o que acontece aqui. Conhecer a Cova da Moura foi conhecer um lugar de Lisboa que pouco se fala e pouco colocam como cartão postal, mas esse foi o lugar onde mais me identifiquei, que comi melhor e que conheci mais artistas. A Cohab, por sua vez, é muito mais populosa e ainda mais movimentada, mas o acolhimento é semelhante. 

Por que só agora o mercado está prestando mais atenção na potência cultural das periferias? Sabendo que ainda faltam iniciativas culturais e fomento aos jovens artistas periféricos, que conselho ou recomendação você daria para alguém que, como você, começou a correr atrás do seu sonho na Cohab?
Acredito que a internet faz com que a informação chegue em mais lugares. A partir daí, os expoentes da periferia conseguem gritar e, com isso, têm mais alcance. A música feita na periferia e o estilo de se vestir e falar estão ganhando notoriedade – tanto que, em Lisboa, as pessoas falavam gírias comigo. 

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A gente sempre foi potência. Quando vemos alguma característica da moda nas vitrines, por exemplo, com certeza ela saiu das ruas. Na música pop, também há referências que nasceram na quebrada, como a pisadinha, o funk, o rap, às vezes até o jeito de se comportar e de dançar. Essa força ainda não é ideal, mas, comparando com um passado recente, posso dizer que temos democratizado os acessos, os equipamentos, as câmeras, os estúdios, os microfones e isso tem feito com que nosso trabalho reverbere. 

Esse alcance significa, de alguma forma, hackear o sistema?
Acho que sim porque a estrutura não é feita para que a gente esteja na vitrine e na parte principal dos lugares. Ainda assim, a periferia tem conseguido crescer por conta da inteligência de seus moradores. Digo inteligência porque a internet e os recursos estão aí para todos, mas só alguns conseguem criar um bordão interessante ou uma forma legal de se comunicar e usar as ferramentas – isso mostra como existe potencial por aqui e muitas vezes o que falta são as oportunidades. 

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Temos visto muitos cantores e artistas negros ganhando cada vez mais notoriedade por sua estética, como Rihanna, Beyoncé no Black is King e a própria estética da ostentação dos bailes. Você também é uma pessoa que tem uma ligação muito forte com a moda. Que mensagens você deseja passar através dela?
Sim, a moda é o primeiro ponto de comunicação antes de alguém saber de onde viemos, o que gostamos e qual é a nossa energia. Uma pessoa que está com a roupa escura o tempo todo diz muito sobre sua personalidade, por exemplo. Penso que a minha música e imagem estão muito ligados. Tenho essa pesquisa da música do continente africano e as africanidades que estão aqui no Brasil. Pensando nisso, geralmente uso cores mais quentes e diversos adereços. Na minha arte, existe o texto, o posicionamento social e político e, no meio desse pacote, também vem meu visual.

O rap está crescendo no Brasil e está muito diverso com temáticas e estilos de beat. Como a sua geração, que inclui também o Djonga, o Xamã e o Rico Dalasam contribuem para que essa juventude que voltou a ser marginalizada seja ouvida?
Querer nos colocar numa posição de herói ou liderança é muita pretensão. Quando conseguimos fazer música da forma como acreditamos, outros artistas passam a entender que seu sonho pode, sim, se tornar realidade. Durante muito tempo a gente pensava na ascensão através de grandes gravadoras ou equipamentos caríssimos, mas agora artistas têm montado home studios com outra forma de organização e esses trabalhos têm um bom alcance. A nova geração, quando está começando, entende que não precisa seguir um padrão ou modelo. Nessa nossa forma de fazer música, passamos a dar diretrizes aos mais novos da mesma forma que os mais velhos pavimentaram o caminho para que a gente conseguisse crescer.

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Recentemente, o ator Donald Glover comentou que não gosta de discutir racismo com pessoas que não são pretas. Ao mesmo tempo, é preciso fazer uma crítica à sociedade em que vivemos. Como você percebe esse cenário? Há uma maneira de balancear o ativismo para que isso não se torne uma “cama elástica” da representatividade, que acaba não tirando as pessoas pretas do lugar?
O equilíbrio é necessário. Falar sobre questões raciais num país como o Brasil é extremamente importante e pode ser uma pauta de todos. Por outro lado, entregamos um trabalho artístico muito forte se tratando de composição, produção e voz. Existe um estudo por trás de tudo o que fazemos, e aí por sermos da periferia há quem pense que é tudo espontâneo ou nos resumem à pauta racial e social – não mergulham na grandiosidade que existe na parte artística, diferente do que acontece com artistas brancos. Na maioria, são os brancos que são lidos como geniais porque colocam os negros somente nesse lugar de ativismo. Não acho que devemos abrir mão do ativismo por conta disso, mas penso que existe um lugar muito grandioso de arte dentro do trabalho que estamos entregando que também precisa ser abordado. 

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(Rincon Sapiencia/Divulgação)

Queria que você comentasse um pouquinho sobre o selo musical MGoma. Como é agenciar a carreira de novos artistas? Você tenta ser um facilitador para que as pessoas consigam acessar a música?
É um processo que estamos passando e aprendendo junto com ele. Contratamos dois artistas jovens da Cohab 1, o França e o Bre9. Sinto uma energia boa neles e no bairro também. Durante muito tempo eu saí daqui para estar visível e próximo de produtores e hoje já vejo um cenário diferente. Há várias pessoas talentosas, mas muitas delas não têm a noção de como se organizar burocraticamente, como colocar as músicas nas plataformas digitais ou pensar nos lançamentos. Falta também o contato com as pessoas que gravam clipes e que realizam trabalhos necessários para elas. É aí que entro nesse lugar de agenciar e mostrar o caminho – e estou gostando muito e sendo surpreendido a cada dia. Espero que eu consiga cooperar para que eles tenham uma carreira brilhante. 

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Nesse ano, temos um cenário político de dualidade: seguir com Bolsonaro, que precarizou o país, ou escolher Lula, que tem um vice que foi truculento com as quebradas. Como você reage a esse momento?
Acredito muito no voto e na participação política. Precisamos pensar em quem vai escolher para onde vai nosso dinheiro, em quem cria os projetos e pensa nos investimentos. Mas sabemos que o cenário não é abrangente. Conto muito com um país menos racista a partir da próxima eleição, mas em nenhum dos lados temos políticos pretos e pretas no processo eleitoral. Por mais que eu tenha a minha simpatia em quem fará um trabalho melhor do que o que está sendo feito até agora, sei que esse partido poderia ter figuras com pensamentos mais diversos, além de envolver outras gerações e etnias. É preciso pensar numa pluralidade maior na política. 

A música “Ponta de Lança” ganhou um remix que reduz a frequência cardíaca. Em um momento político, social e econômico tão conturbado, qual é a necessidade de parar um pouco?
Essa chamada de relaxamento é muito importante porque nós merecemos descansar. Muitas vezes não nos permitimos isso porque a sociedade passa para nós que precisamos ser fortes o tempo todo – mas muitas vezes não conseguimos. Essa ideia faz parte de uma campanha publicitária e sinto que consegui fazer um trabalho artístico bem pensado e muito forte em cima disso. Eu não só reduzi o BPM da música, mas coloquei mais arranjos, experimentei novos sons e refiz os vocais. 

É muito importante que pessoas pretas participem mais de campanhas publicitárias. Colocar o rap nesse cenário também é essencial para seu crescimento, desde que a gente mantenha a base dessa cultura. Fiquei orgulhoso, gosto de entregar um resultado artístico bonito.

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Para finalizar, gostaria que você indicasse para os nossos leitores 5 artistas que você tem ouvido mais e falasse um pouquinho de cada um.
Estou num momento de ouvir bastante música antiga. Posso falar de Jorge Ben Jor, Milton Nascimento, Major RD e um estilo musical que chama amapiano e é abrangente na África do Sul.

 

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(Rincon Sapiencia/Divulgação)

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