mensagem de que temos que ser a melhor versão de nós mesmos circula por aí há algum tempo. Começou em um movimento tímido, ativista até, de feministas que lutavam para que o amor próprio fosse mais presente na vida de mulheres que sempre foram ensinadas a se odiar. O mote, que se popularizou, saturou e virou propaganda publicitária em tempo recorde, parece ter perdido seu sentido oficial e ganhado muitos outros mais perigosos. Não é novo o papo de que o tempo de tela, as redes sociais, os filtros e a ‘geração selfie’ estão causando danos irreparáveis na auto-estima e na auto-percepção de muita gente. Mas quanto o Instagram está diretamente ligado a esse movimento?
Em 2019, a jornalista Jia Tolentino publicou um artigo chamado The Age of Instagram Face (A era do rosto de Instagram, em tradução livre) na publicação norte-americana The New Yorker, falando um pouco sobre as características desse rosto padrão que vemos cada vez mais na internet. Camila Cintra, ao lado da Professora Lúcia Santaella, decidiu, então, escrever uma tese – que virou livro publicado pela Editora Estação das Letras e Cores – tentando entender onde nasceu, como esse novo padrão assola e assombra milhares de homens e mulheres ao redor do mundo – e mais: aonde vamos parar com essa pasteurização dos rostos em massa. Assim nasceu o livro O Instagram está padronizando os rostos?. Em entrevista à Elástica, a autora e pesquisadora de tendências de comportamento de consumo conta que o interesse pelo tema surgiu em 2017, quando começou a reparar, empiricamente, que os rostos das pessoas estavam ficando cada vez mais parecidos. O que estaria causando isso?
“Quis entender quais comportamentos estão gerando isso e porque é algo buscado por tanta gente. Havia também uma pergunta mais íntima, já que eu sempre entendi que havia uma busca por padrão de beleza no corpo em geral, mas quando isso chegou no rosto, me inquietou demais. Quando a gente abre mão do nosso rosto, do que estamos abrindo mão exatamente?”, questiona Camila. “Esse rosto de Instagram é um boneco do que é ‘melhor’ de várias etnias. A boca é dos negros, mas o nariz precisa ser pequeno e arrebitado como o das européias. O olho é puxado como o das asiáticas, mas não tão pequeno. É um sequestro de imagens que vira uma composição bizarra”, explica Fabiana Gomes, maquiadora, estudante de psicanálise e entusiasta do tema. Se você ao ler essa descrição você pensou na família Kardashian-Jenner, pensou certo: a família que estrelou o reality show Keeping Up With the Kardashians por vinte temporadas tem certa “culpa” nessa padronização. Com seus milhões de seguidores acumulados nas redes sociais, elas se tornaram o novo padrão inatingível de beleza.
“Quis entender quais comportamentos estão gerando isso e porque é algo buscado por tanta gente. Sempre entendi que havia uma busca por padrão de beleza no corpo em geral, mas quando isso chegou no rosto, me inquietou demais. Quando a gente abre mão do nosso rosto, do que estamos abrindo mão exatamente?”
Camila Cintra
Se antes um contorno potente, pares de cílios postiços e até um equipamento que “incha” os lábios – lembram dessa febre que rolou por volta de 2015? – faziam o trabalho, hoje é preciso muito mais para emular essas características. Antes de 2002, cirurgias plásticas eram inacessíveis para a maior parte da população, mas o ano marcou a data em que a Food and Drug Administration, nos Estados Unidos, aprovou o uso do Botox para preenchimento. Anos depois, o ácido hialurônico, como Juvéderm e Restylane, também foram liberados. O que antes era caro, dolorido e com tempo de repouso longo, hoje pode ser feito em uma clínica em uma consulta de uma hora. Isso acabou popularizando o procedimento. E, agora, quase 20 anos depois, eles se tornaram extremamente difundidos mundialmente, criando certa banalização em cima da modificação de características básicas do rosto. Hoje, a moda é a harmonização facial – aplicações que marcam as mandíbulas e deixam o rosto mais quadrado e ‘harmônico’ (pra quem?).
Parece que a melhor versão de nós mesmos, essa da qual falamos no começo do texto, se transformou, ganhou novo significado. A nova “melhor versão de nós mesmos” agora é modificada por filtros que afinam o rosto e aumentam a boca, ou até mesmo editada à exaustão em aplicativos como o FaceTune. Se antes o comum era levar fotos de celebridades para imitar um nariz ou uma boca, hoje pessoas visitam clínicas de estética com suas fotos com filtro. Nos Estados Unidos, já tem nome pra isso: Snapchat Dismorfia. “Estamos falando de um rosto que não passa só por procedimentos físicos, mas que tem filtro, posicionamento de foto. O que eu acho que está acontecendo é uma certa dissonância entre como as pessoas se enxergam com filtro e sem. Parece que elas pensam ‘nossa, sou feio, meu rosto deveria ser assim’ quando se veem com filtro. Isso tem gerado mal estar profundo nas pessoas, gerando um desconforto coletivo”, completa Camila Cintra.
“Esse rosto de Instagram é um boneco do que é ‘melhor’ de várias etnias. A boca é dos negros, mas o nariz precisa ser pequeno e arrebitado como o das européias. O olho é puxado como o das asiáticas, mas não tão pequeno. É um sequestro de imagens que vira uma composição bizarra”
Fabiana Gomes