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Ancestralidade Iorubá inspira projeto de soberania alimentar

A cientista Karina Karim cria um satélite para monitorar a meteorologia e ajudar as hortas urbanas em comunidades tradicionais e periféricas

por Maria Clara Parente 26 ago 2021 01h10
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(Clube Lambada/Ilustração)

rí em Iorubá significa “cabeça, mente e tudo que está presente na essência real do ser”. Foi pensando nesse orixá que a engenheira Karina Karim criou o ORISAT, um nano satélite cujo objetivo principal é ser uma ferramenta de monitoramento meteorológico que auxilie no cultivo de hortas e plantações comunitárias urbanas, em comunidades tradicionais e periféricas.

“Os saberes e experiências cultivados pelo Orí ao longo da nossa existência não se perdem nem quando morremos, pois, por meio do cultivo da terra uma comunidade nutre não só o corpo, mas também a alma com essa essência ancestral.” Conta Karina. O nano satélite faz parte do projeto do qual Karina é co-fundadora, o OIA – Oficina de Inovação e Ancestralidade, visa estimular a inserção, permanência e desenvolvimento jovens mulheres negras nas áreas tecnológicas. Aos 25 anos, a estudante de engenharia da aulas como voluntária numa escola pública de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, e já foi premiada na NASA com o Neil Armstrong Best Design Award por desenvolver projetos e protótipos de baixo custo para melhorar o dia a dia na Terra e no espaço e participou do programa Conexão Maker do Canal Futura.

Você é engenheira e vem trabalhando em projetos na área espacial. Estudar o espaço pode criar possibilidades para a vida na terra mais regenerativas?
Quando a gente desenvolve tecnologias espaciais, passamos por diversos desafios e como resultado surgem muitas tecnologias que podem ser utilizadas para vida na Terra. No período da Guerra Fria surgiram muitas tecnologias que utilizamos hoje em dia, como a caneta esferográfica. Ir a Marte hoje é um desafio porque a gente não pode sair daqui com um foguete cheio de pessoas, chegar e pousar em Marte. Todos os estudos de medicina apontam que a gente não teria como se adaptar de forma tão rápida a um ambiente tão diferente da Terra. Além disso, hoje em dia a gente só consegue ir, porque o foguete teria que perder partes no caminho (deixando na atmosfera para que ele fique mais leve e ganhe velocidade) e ainda não produzimos combustível fora da Terra. Como a gente tem que criar estudos para solucionar esses problemas, incluindo criar tecnologias para sobreviver em um planeta hostil para vida humana como Marte, então a gente pode ter um retorno realmente muito grande em tecnologias que podem ser ecológicas para Terra e esse retorno acaba acontecendo logo de forma imediata devido a velocidade da produção.

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(Karina Karim/Arquivo)
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O filósofo indígena Ailton Krenak, autor de “Ideias para adiar o fim do mundo”, define a pandemia como uma reação à exploração do planeta e considera uma “distopia total” a ideia de renunciar à vida na Terra e colonizar Marte. Krenak questiona muito essa obsessão da ida para Marte. Qual é a sua opinião sobre o assunto?
É uma discussão muito válida. Eu gosto muito do Krenak, é extremamente importante a gente analisar por essa ótica até porque quando a gente fala nessa percepção afrofuturista e afrocentrada a gente também pensa de uma forma social que é muito diferente da nossa cultura do consumismo capitalista, que é para onde acredito que essa crítica dele é direcionada. Então a gente pensa nessa ida para o espaço de uma forma mais sustentável e mais social. Eu percebo dois movimentos: a produção tecnológica que é de extrema importância para o agora e a outra é justamente a disputa por narrativa. Quando a gente fala, por exemplo, em corrida espacial hoje, temos muito claro exatamente um determinado tipo de pessoa, de país que está promovendo isso. E a gente não tem diversidade nesse conglomerado de pessoas, indústrias, poderes que estão pensando nessa ocupação espacial. Quando a gente não tem diversidade, começamos a ter uma série de problemáticas, por exemplo, hoje em dia quando a gente fala na ida para Marte se discute quem vai chegar primeiro e como vão ser as leis por lá. Essa é uma preocupação muito grande do Elon Musk, que defende que quem chegar primeiro em Marte deve fazer leis não necessariamente vinculadas com a Terra… Essa é a ideia da exploração espacial que atualmente é mais seguida porque é o que se encaixa com a nossa forma capitalista de lidar com tudo.

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(Redação/Arte)

Como as narrativas afrocentradas atuam na criação de outros futuros possíveis?
Quando a gente tem um determinado grupo com interesses específicos pautando e liderando essas discussões, grande parte da sociedade é excluída. A gente precisa estar nessas narrativas de alguma forma para tentar tornar mais plural o futuro e principalmente lutar por uma resistência de outros futuros, não só um único futuro. Mas quando a gente está falando nessa disputa de narrativas sobre o espaço, a gente passa a se perguntar: o que a gente precisa? Será que o que a gente precisa é a mesma coisa que essas pessoas que estão pautando hoje em dia essa ida ao espaço falam? Existem muitos projetos para vender parte da Lua para a empresa de cosméticos por conta dos minerais do solo, por exemplo. Será que a gente não poderia criar e desenvolver medicamentos que fossem auxiliar grande parte da população e não ficar centralizado na indústria da beleza? A gente nem entra nesse tipo de discussão, justamente porque a gente aqui no Brasil (e no Sul Global inteiro), fomos levados a a acreditar que essas pesquisas, essas conversas, esses pensamentos sobre a ida ao espaço são muito distantes. Quando a gente olha para essas narrativas a partir de outras óticas, como o afrofuturismo, que a partir de lentes afrocentradas pauta o futuro em diversas áreas, dentre elas a tecnologia, vemos ideias muito diferentes dessa que são frutos do capitalismo e da colonização, daí começamos a ter conversas mais saudáveis.


“Existem muitos projetos para vender parte da Lua para a empresa de cosméticos por conta dos minerais do solo, por exemplo. Será que a gente não poderia criar e desenvolver medicamentos que fossem auxiliar grande parte da população e não ficar centralizado na indústria da beleza?”

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Como você percebe essas conversas no seu dia a dia?
O Clubinho de Engenharia [projeto de educação básica voluntária criado por Karina em 2018] foi criado para a gente debater matemático e ciência, mas ao mesmo tempo a gente começou a desenvolver projetos da área espacial, e eles sabiam que eu fazia engenharia e trabalhava com ciência espacial e eu perguntei se eles gostariam de trabalhar nessa área. Os alunos falaram que para eles não era uma coisa palpável, que era uma história legal que nunca iria virar realidade. Isso me incomodou muito porque da mesma forma, eu sonhei em entrar para engenharia mecânica, mas nunca passou pela minha cabeça que eu iria trabalhar com aeroespacial e que um dia eu iria a NASA, nunca foi uma opção. Então a gente produziu pequenos experimentos voltados para a área aeroespacial e no final do ano a quinta série produziu um foguete daqueles foguetes de garrafa pet. A maior parte desses alunos dessa turma de 2017 eram meninas negras, e ver essas meninas lançando foguetes e fazendo relações entre a temática espacial e o cotidiano da vida delas foi demais. Foi nesse período que eu comecei a entender que não faz sentido eu caminhar produzindo tecnologias que não atendam a minha comunidade.

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(Karina Karim/Arquivo)

Como o OIA cria tecnologias sociais de centramento da comunidade?
A gente entrou em funcionamento com a Oficina de Inovação e Ancestralidade (OIA) no ano seguinte do Clubinho, com o foco no desenvolvimento e estímulo para que meninas negras no ensino médio começassem a considerar mais as áreas tecnológicas. A questão em pauta era garantir que quem concluísse o ensino médio tivesse uma formação com qualidade suficiente para exercer papéis na sociedade que não sejam subempregos. Então o OIA vem com essa ideia de atuar na educação de uma forma antirracista, para que a gente tenha a garantia de que localmente aquilo vai funcionar de outra forma, que a gente vai fazer essa integração da comunidade com a escola. É um trabalho de formiguinha, de escola em escola, de bairro em bairro, de comunidade em comunidade, até o grande dia e a gente consiga ter isso espalhado, essa ideia desse tipo de educação, desse tipo de sala de aula invertida funcionando numa rede, em níveis locais e globais.

Como surgiu a ideia de criar o ORISAT?
Em 2018, eu desenvolvi o Clubinho de Engenharia, depois eu agreguei um outro colega da faculdade e a gente tocou por dois anos dando aula sozinhos, investindo dinheiro do nosso bolso para passagem, levando café da manhã para os alunos na escola, porque essa escola tinha muito problema de verba então não tinha como oferecer todas as refeições em todos os turnos. Às vezes eu levava alguns lanchinhos para eles só que chegou um dia que eu não consegui levar nada e uma menina me abraçou e me perguntou se eu não tinha trazido: “é porque eu só como alguma coisa de manhã quando não tem na escola quando você traz.” Não entra na minha cabeça como essas coisas acontecem. Tudo isso me revolta muito a ponto de muitas coisas que faço serem movidas por essa raiva. A diversidade do Brasil… quando a gente fala de fauna e flora, como a gente tem um agronegócio tão desenvolvido e voltou para o mapa da fome no ano passado?

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E onze novos bilionários…
Isso não entra na minha cabeça. A gente sabe que, para a gente ter uma realidade, necessariamente precisamos da outra, mas não é possível dormir sendo essa pessoa que está vivendo da exploração de tantas outras. Então quando aconteceu isso em sala de aula a gente falou, “não tem como parar por aqui”. Eles já tinham começado na escola um projeto de horta, então a gente começou a investir nesse projeto, pesquisando o que a gente podia fazer para colaborar. Depois, já pensando em como continuar com o projeto, eu encontrei a Thais Silva na UFF, e na engenharia você conta a dedo quantas são as mulheres negras. Então fizemos essa parceria para desenvolver um projeto voltado para meninas do ensino médio, porque sempre que a gente se encontrava a gente falava muito da questão do desconforto dentro do ambiente universitário e como mulher dentro da engenharia. A partir daí surgiu a ideia de criar a OIA, com a premissa de trabalhar com educação de uma forma mais livre, a partir da experimentação e não só estimular a inserção, como dar suporte para a permanência dessas jovens nas áreas tecnológicas.

“A gente sabe que, para a gente ter uma realidade, necessariamente precisamos da outra, mas não é possível dormir sendo essa pessoa que está vivendo da exploração de tantas outras”

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(Karina Karim/Arquivo)

Como que a ancestralidade Iorubá faz parte do OIA?
Iorubá é uma das heranças vindas do continente africano, dentre elas muitas outras que são muito ricas, e a base delas é essa comunhão em sociedade, essa interdependência entre os indivíduos que gera uma sociedade autônoma. Esse conceito de comunidade é aplicado de forma micro e de forma macro, a gente pode entender como você e sua família, você e as pessoas do prédio ou bairro que você mora, mas a ideia é essa interdependência. Como indivíduos, a gente olha a partir dessa ótica afrocentrada, todos nós estamos interconectados, ubuntu, não só entre pessoas mas com tudo que está relacionado à natureza, a terra, então essa ideia de vivência em comunidade que está relacionada tanto as pessoas quanto a natureza em nosso entorno, que é a base pedagógica do projeto.

Como a ideia de comunidade desenvolvida no OIA se relaciona com os quilombos?
Quilombo, em sua etimologia bantu quer dizer acampamento guerreiro na floresta, e foi popularizada no Brasil pela administração colonial, em suas leis, relatórios, atos e decretos, para se referir as unidades de apoio mútuo criadas pelos rebeldes ao sistema escravista e as suas reações, organizações e lutas pelo fim da escravidão no país. Nos anos 1970, o quilombo volta a ser estudado como símbolo de resistência à reafirmação da herança africana e da busca de um modelo brasileiro capaz de reforçar a identificação étnica e cultural. Os conhecimentos nos quilombos são transmitidos através das gerações por meio da oralidade e observação em vivências práticas e é principalmente nesse ponto que converge com a proposta educacional do OIA. Os saberes relacionados à organização coletiva de trabalho, produção agrícola, do o cultivo e colheita, incluem os modos de fazer o transporte, a estocagem dos grãos e demais produtos, de transformá-los em diferentes receitas culinárias e o caminho para a soberania alimentar da região (seja ela micro ou macro) – algo extremamente importante em um país que tem quase 10% da população em situação de insegurança alimentar grave, como o Brasil. Quando nos voltamos para os quilombos remanescentes, observamos práticas de uso e ocupação do espaço e dos recursos naturais que podem ser consideradas como modelos para uma ocupação regional sustentável”. Quando a gente olhava para as escolas, mas especificamente falando do colégio Rodolfo Siqueira, era a questão da alimentação e que nos movia. A gente tem muitas soluções já acontecendo nas periferias da cidade, então o que a gente precisa fazer para fomentar isso, a gente segue essa ideia tanto do afrofuturismo quanto a tecnologia afrocentrada, da vivência em comunidade e dentro dessa raiz cultural do continente africano a gente traz a ideia de observação, experimentação. A gente sente a terra, sente como aquela plantação está se desenvolvendo. Há milhares de anos a gente tem um controle do nosso olhar e dos nossos sentidos em relação a natureza, conseguimos interpretar a natureza com os nossos sentidos. Então a ideia do ORISAT é automatizar essa observação, esses sentidos, coisas que a gente já faz naturalmente, através do cheiro, do tato, do dia a dia. O Orisat vem só como um facilitador. Então a gente tem um conjunto de sensores, sete sensores, que vão mapear solo, ar e dar informações que juntas, analisando esses dados a gente consegue ter uma previsão otimizada da nossa plantação.

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(Redação/Arte)

Como é o funcionamento do ORISAT e como ele coleta esses dados?
Orisat é um nanosatélite do tipo CubeSat (satélite em escala reduzida em formato de um cubo de 10cm) A ideia do projeto surgiu dentro da residência artística que fiz no SACI-E/INPE – uma plataforma de cultura espacial e arte promovida pela CGTE (Coordenação Geral de Engenharia e Tecnologia Espacial) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, sob curadoria de Fabiane Borges. Quando eu estava no ensino médio, eu fiz alguns trabalhos na área de meteorologia, na UFRJ e uma das dificuldade da cidade do Rio é que a gente não tem um mapeamento da cidade como um todo, muitas zonas são invisibilizadas. A execução do ORISAT é simplificada, de modo que possa ser replicado por estudantes do 6° ano do ensino fundamental ao terceiro ano do ensino médio. E o baixo custo o torna mais acessível que uma estação meteorológica simples, facilitando o mapeamento do microclima em todo o território urbano, como consequência, esse monitoramento viabiliza a o desenvolvimento de políticas públicas para as regiões invisibilizadas dentro do espaço urbano.


“Os conhecimentos nos quilombos são transmitidos através das gerações por meio da oralidade e observação em vivências práticas e é principalmente nesse ponto que converge com a proposta educacional do OIA. Os saberes relacionados à organização coletiva de trabalho, produção agrícola, do o cultivo e colheita, incluem os modos de fazer o transporte, a estocagem dos grãos e demais produtos, de transformá-los em diferentes receitas culinárias e o caminho para a soberania alimentar da região”

De onde vem o nome do projeto?
Ori é o orixá que rege sua vida, tudo que você produz, tudo que você é passa por Ori, porque ele é o orixá de cabeça. E porque o nome desse satélite ser Ori? Ori a gente alimenta ao logo de toda a nossa vida, mas ao mesmo tempo ele também é uma herança dos nossos ancestrais. O Ori que eu carrego hoje em dia vem de uma linha de todos os meus ancestrais, como se eu já viesse para a Terra com o conhecimento passado através do Ori de todos os meus ancestrais, com um ferramental que já vem pronto a ser desenvolvido enquanto eu estiver viva. Ele é passado com essa ideia de conhecimento, que é o que a gente absorve e transfere para as pessoas. Ele passou através da oralidade, já que as culturas de matriz africana tem uma base muito forte na oralidade mas também a partir da terra, porque é onde quando a gente morre somos enterrados. Essa ideia de aquilombamento tem a ver com tudo ser gerido ali, tudo que eu consumo é daquela terra que eu também vivo, pensar que aquelas pessoas são enterradas ali naquela terra que é a mesma terra que vai gerar todo o alimento, todos os frutos que vão fazer as próximas gerações se desenvolverem.

Essa entrevista foi originalmente publicada em inglês na plataforma Emerge (whatisemerging.com)

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