Sheyla Smanioto, Jeferson Tenório e Carol Bensimon falam sobre literatura brasileira em tempos sombrios e como é a vida de escritores e escritoras no país
por Alana Della Nina
17 set 2020
02h53
urante boa parte da minha infância, sofri com um pequeno dilema sobre o futuro. Quando me perguntavam o que eu queria fazer quando crescesse (aliás, que pergunta besta para se fazer a uma criança), respondia, solene: “Ainda não decidi, mas quero ser escritora ou astronauta.” Meu interlocutor adulto, invariavelmente, sorria com condescendência e respondia: “Que bonitinha!”. Mas, aos 8 anos, eu já sabia ler em algumas entrelinhas e captava a mensagem cifrada: “Essas crianças e seus sonhos impossíveis.”
Não desisti das letras – tanto que estou aqui –, mas cresci com essa sensação de que ser escritora de ficção seria tão difícil quanto ir para o espaço. Intuição que acabou, de certa forma, sendo endossada por fatores pouco animadores a respeito da profissão. E o pessimismo é essencialmente geográfico: 30% da população brasileira nunca comprou nem um livro sequer na vida, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, publicada em 2016. O levantamento ainda mostrou que 44% dos brasileiros não leram nenhum livro em, pelo menos, três meses, e a média de leitura do país é de menos de 3 livros por ano. Para atrair a atenção dos tantos outros que têm o hábito mais consistente da leitura, é preciso disputar a tapas um lugar ao sol: entre a Bíblia, livros de não-ficção, autoajuda e traduzidos, parece não sobrar muitas vagas para a literatura brasileira em sua própria terra.
O padrão do escritor brasileiro também não ajuda quando falamos de um país tão diverso e com dimensões continentais: um estudo feito entre 2003 e 2018 pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, coordenado pela pesquisadora Regina Dalcastagnè, identificou que, por mais de 40 anos, o perfil do romancista brasileiro publicado pelas grandes editoras foi o do homem branco, de classe média, sudestino, sobretudo do eixo Rio-São Paulo. Seus personagens têm os mesmos traços – são, na maioria, homens brancos, heterossexuais, de classe média e vivem em grandes cidades.
Porém, na contramão desses dados todos, um punhado de evidências mostra que escrever não é paixão pequena: nunca se publicou tanta literatura brasileira, nunca se houve tantas possibilidades para se publicar um livro – de editoras independentes a ferramentas de autopublicação – e nunca se quis tanto escrever: o Brasil viu, de 10 anos para cá, um boom de cursos, oficinas e até mestrados em escrita criativa, como os oferecidos pela PUC-RS e pelo Instituto Vera Cruz, em São Paulo. E, mais importante, há cada vez mais espaço para autores e autoras fora do tal perfil tradicional – mulheres, pessoas negras, pessoas fora do eixo Rio-São Paulo e outras minorias pouco contempladas até então na literatura brasileira –, além do resgate fundamental de grandes autores e autoras historicamente negligenciados, como a mineira Carolina Maria de Jesus, que terá sua obra publicada pela Companhia das Letras.
Para entender melhor como funciona a realidade complexa e cheia de camadas da literatura brasileira e – mais que isso – de seus escritoras e escritores, principalmente em suas subjetividades (sempre mais interessantes que os números), conversei com Sheyla Smanioto, Jeferson Tenório e Carol Bensimon. Com histórias de vida, formação e um fazer literário muito distintos, eles contam como foram suas jornadas, como se assumiram escritoras e escritores, como entendem a literatura no país hoje e suas faltas, e os caminhos possíveis para nos tornarmos uma nação mais leitora e, assim, com um maior desenvolvimento das nossas capacidades críticas e analíticas e com acesso irrestrito à nossa imaginação, além de reconhecermos e valorizarmos a imensa diversidade de autores e autoras nacionais como parte fundamental do nosso repertório cultural, artístico e político. Bati o mesmo papo com Marcelo Maluf, Paula Fábrio e Fabrício Carpinejar – o resultado você confere aqui.
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SHEYLA SMANIOTO
Desde 2011, a escritora nascida em 1990 em Diadema, Grande São Paulo, pesquisa e experimenta a relação entre o corpo e a palavra, com o desejo de trazer a capacidade curativa da literatura para questões políticas contemporâneas, especialmente as feministas. Seu romance Desesterro (Record, 2015) foi reconhecido com o Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional, ficou em terceiro lugar no Prêmio Jabuti e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Agora, entre outras atividades, Sheyla está trabalhando no seu próximo romance: Meu corpo ainda quente.
Descobrir a escrita e se assumir escritora
“Não me lembro de ter anunciado, mas me lembro de ter esquecido. Em algum momento, esqueci que sou escritora, não como profissão necessariamente, mas no sentido de como me enxergo. No fim das contas, quando a gente pensa ‘sou ESCRITORA’, a gente está tentando criar alguma coisa com o resto, com o que sobra, como o que é possível do que é ser escritor. E tem a ver com uma tradição que em geral coloca mulheres num outro papel dentro da criação, num papel de musa, ou mesmo de artista suicida, que não encontrou seu caminho, se perdeu no mundo e acabou não conseguindo erguer uma obra, por exemplo. Existe uma mitologia sutil sobre o que é ser escritor, e é com os restos dessa mitologia que eu e muitas mulheres tentamos erguer o que é ser escritora. É algo bastante novo, se a gente for pensar. Não ser escritora, elas existem desde sempre. Mas, digamos, em larga escala. É um processo constante de criar o que é ser escritora, de aceitar a escrita como profissão sendo mulher, e de lembrar disso. Não esquecer.”
“Eu escrevia muito na adolescência, bastante mesmo, e, ao mesmo tempo em que eu escrevia meu romance, estava tentando descobrir o que eu ia fazer de faculdade. Eu tinha cismado que ia fazer faculdade – fui a primeira da família a entrar numa universidade. E estava lá, tentando decidir o que iria fazer enquanto escrevia, e era uma angústia. E também um prazer de estar ali escrevendo. Essas coisas se juntaram e foi aí que decidi que queria ser escritora. Acabou sendo um caminho avesso: larguei o prazer da relação com a escrita e fui atrás de alguma segurança, por isso fui fazer Estudos Literários na Unicamp. Foi ótimo porque pude ler muito, aprendi muito, tive a oportunidade, no contexto dessa graduação, de fazer uma oficina de escrita criativa com o João Gilberto Noll, que foi fundamental pra mim. Ele me disse algo muito importante: o melhor caminho que eu podia fazer dentro da escrita era a partir do fluxo inconsciente. Fui atrás disso, inclusive partindo de uma série de intuições que eu tinha sobre a relação da escrita com o corpo, entender se era possível transformar sua relação com seu próprio corpo, que era um desespero gigante pra mim na época, a partir da arte e da escrita.”
“Eu tive outras formações, em escrita criativa, dramaturgia, fiz oficina com o Marcelino Freire e, no meio do caminho, fiz dança contemporânea e teatro. Mas também fui formada pelas obsessões que fui pegando pelo caminho – por medicinas não ocidentais, tradicionais; sou terapeuta de cinesiologia aplicada. Para mim, tudo isso está super conectado com a escrita, a partir dela consigo entender um vocabulário do corpo, conexão com o ritmo, uma série de coisas que eu já vivia na escrita, mas que compreender me deu uma segurança, sem me dar um controle. Tenho também outras obsessões, como o tarô, a astrologia, todas essas coisas me formaram e continuam me formando.”
Sobreviver da escrita no Brasil
“Sou uma escritora no começo da carreira e gosto de pensar que ainda vou escrever muito. Não sei se sou muito parâmetro nesse sentido, mas tenho sobrevivido em torno da minha criação. A questão para mim foi conseguir me manter em movimento e fazer com que toda a minha vida se transformasse num processo criativo para a minha escrita, que ela fosse o centro de tudo. Isso envolve ter conquistado alguns prêmios literários, as bolsas de escrita que tive nos últimos quatro anos, também dou mentorias de escrita criativa, atuo como terapeuta corporal voltada para a criatividade, como taróloga, como astróloga, faço mil coisas. Meu único critério basicamente é se essas coisas vão me dar energia, força ou mesmo tempo para escrever. E, no fim das contas, elas acabam sendo muito ricas no processo da escrita criativa, o contato com a experiência do outro, com o corpo do outro. Uma série de coisa que juntas criam uma jornada que é de criatividade. Não sei se sobreviver apenas da escrita, mas sobreviver em torno da escrita tem sido possível e fundamental.”
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Diversidade na literatura
“É uma questão complexa porque não tem apenas uma cena no Brasil. Aliás, nem em São Paulo tem uma única cena, existem diferentes caminhos, e alguns deles não só deram espaço, como se mobilizaram: são editores que publicam e leitores que leem livros escritos por mulheres, pessoas negras e outras minorias. Mas há outros que continuam dentro da mesma lógica, sobreviveram dentro dessa lógica e talvez sejam representantes dela. São diversos movimentos acontecendo ao mesmo tempo, tanto de assumir esse posicionamento da literatura escrita por minorias quanto de resistir e reagir, dizer não, usando toda uma retórica que está sendo construída há muitos séculos para garantir que as mesmas pessoas continuem falando as mesmas coisas. Então tem esse jogo de forças e acho que, dependendo de onde você estiver olhando, pode achar que um ou outro lado está ganhando, por isso seria ingenuidade minha dar um parecer histórico.”
“Falam que tem muita gente escrevendo e pouca gente lendo, mas que muita gente que está escrevendo? O que vejo é muita gente querendo escrever e não conseguindo, não tendo espaço interno para escrever porque existe uma mitologia sobre criatividade que simplesmente não concorda com quem essas pessoas são e como elas se expressam no mundo. Eu mesma tive que fazer toda uma volta e criar uma mitologia própria, um jeito de pensar a criatividade. Estou sempre em busca de algo que sustente e não negue minha criatividade. Isso tem tudo a ver com a questão do que é essa ideia de escritor, de escrita, de qual é o papel da escrita, tudo isso são mitologias que afirmam ou não minha existência como escritora. E, como a maioria dessas mitologias não afirma, tento buscar, inventar outra, mas sei que muita gente não vê isso como possibilidade, acham que escrever não é pra elas e se emudecem, continuam caladas. É um jogo de forças, um jogo histórico.”
“Existem muitos estilos e projetos literários que são erguidos em torno de uma falta, e só consigo pensar na falta como algo que te motiva a criar, então quando apresento um livro, um projeto, estou dizendo: acho que isso aqui era o que estava faltando. Contribuir com determinada cena ou comunidade. A literatura brasileira não é uma instituição, é feita de pessoas.”
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O mercado brasileiro
“Como escritora, não penso em mercado nesse sentido amplo, de tudo que está acontecendo. Porque se eu for pensar, desanimo, largo tudo. Como escritora preciso focar em outras coisas pra continuar criando e colocando minhas obras no mundo. O que tento fazer como artista é me conectar com as pessoas. Pessoas que querem ler, que querem reimaginar o mundo, que estão em busca de algum tipo de proposta. E, no meu caso, minha proposta específica de literatura é de reencantamento do mundo a partir do papel do corpo, do mito. Pode ser uma estratégia de sobrevivência, inclusive no sentido do ânimo, do otimismo, mas não fico pensando nos percentuais de mercado, fico pensando na disputa política que tem em torno disso, no sentido de como nossas histórias vão ser contadas, isso me interessa mais. É uma disputa constante de espaço por essas narrativas, acho que a gente precisa compreender isso. Alguns meios se posicionam como detentores do saber e do conhecimento, mas isso é uma questão de posicionamento, a gente precisa aprender a não acreditar nisso.”
“Enquanto movimento, acho que falta a gente compreender o que é essa literatura brasileira. Não se deixar enganar pela narrativa que foi feita até agora, a narrativa universalista. Seria importante ter o reconhecimento da literatura brasileira já escrita. Inclusive para um reconhecimento do que pode ser a literatura brasileira daqui em diante fora da narrativa que foi contada até agora, das possibilidades de escrita e de criação. Digo isso da ordem do desejo e não da prática, mas gostaria muito de um movimento que pudesse propor a literatura como uma possibilidade radical de narrativa e de reimaginação do mundo. A literatura é um ponto de vista fundamental. O que ela proporciona, que é uma educação da imaginação – educação não no sentido do controle, da formatação, mas da liberdade e da flexibilidade da imaginação – é muito do que está faltando no mundo hoje, no Brasil especialmente, que é onde estamos e, então, de onde podemos falar. Falta imaginação e a palavra é um caminho muito específico para ela. É um caminho que passa por um universo interno de um jeito que nada mais passa. Então acho que a literatura precisa ter esse papel político. Esse seria um plano de longuíssimo prazo, porque é algo que tem que ser construído dentro dos imaginários, dos subconscientes.”
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JEFERSON TENÓRIO
O carioca nascido em 1977 e radicado em Porto Alegre estreou na literatura em 2013, com O Beijo na Parede (Editora Sulina), eleito o livro do ano pela Associação Gaúcha de Escritores. É autor também de Estela sem Deus (Editora Zouk, 2018), e acaba de lançar, pela Companhia das Letras, O avesso da pele.
Descobrir a escrita e se assumir escritor
“Eu me assumi escritor com O Beijo na Parede, meu primeiro romance. Mantive minha escrita em segredo, não fazia questão de dizer que estava escrevendo, aí, com a publicação em 2013, tomei consciência de que eu vivia também junto com a escrita. Foi uma escolha minha viver com a escrita. A partir disso, comecei a me considerar mesmo um escritor, assumir esse papel de escrever. Antes eu era mais um leitor do que alguém que escrevia.”
“Demorei para descobrir que queria ser escritor. Comecei a gostar de literatura na faculdade de Letras, com uns 26, 27 anos. Foi quando comecei a ler de fato e a leitura acabou me levando a querer escrever alguma coisa. Aí, quando eu estava na faculdade, após um ano, escrevi um poema, mandei para um concurso e ganhei. Mas ainda não me considerava um escritor, e isso também tem a ver com a questão racial – no sentido de me reconhecer como alguém capaz de escrever literatura, porque toda minha formação literária vem de uma literatura ocidental, branca e, pra mim, um escritor negro era algo impensável. Fui me dando conta aos poucos dos vários escritores negros importantes, como o Machado de Assis e o Lima Barreto, e entendi que eu também poderia produzir alguma coisa. Minha tomada de consciência da escrita também tem a ver com essa tomada de consciência racial. De me colocar também num lugar de produtor intelectual, antes eu não conseguia me ver dessa forma.”
“A entrada na universidade foi bastante significativa para mim, para eu valorizar a literatura e depois querer começar a escrever. Posso dizer que tenho muita sorte, não posso reclamar de não ter sido lido, não ter sido valorizado. Desde o primeiro livro, passando pelo segundo e agora chegando ao terceiro, sempre senti essa pressão de conseguir ser lido pelas pessoas, que acho que é o que o escritor mais quer: ser lido.”
“Acabei optando por Letras porque gostava muito de ler jornais, então relacionei as duas coisas, mas ainda tive que convencer minha mãe do curso porque ela ia pagar minha matrícula. Um dia, vi na televisão um jornalista entrevistando um neurolinguista e achei aquilo tão pomposo e acadêmico que falei para a minha mãe: quero fazer Letras para ser um neurolinguista. Nem ela e nem eu sabíamos o que era aquilo, mas pareceu muito importante. Ela se convenceu, entrei na faculdade e descobri outro mundo, o da docência, o da leitura e o da escrita. Foi também o momento em que me dei conta do quanto eu tinha perdido em relação ao que não tinha lido. Aí virou quase uma obsessão, deixava de pagar conta pra comprar livro. Foram três anos de uma relação muito intensa com os livros.”
Sobreviver da escrita no Brasil
“Se o escritor começa numa grande editora, vai poder ter uma renda da atividade dele, além de um acesso mais fácil às áreas ligadas à escrita, sendo convidado para feiras, palestras, escrevendo para jornais, fazendo oficinas etc. No meu caso, como publiquei por editoras pequenas, tive sorte de os meus livros terem sido adotados por escolas rapidamente. Não era tão bem remunerado, mas já ajudava. O Beijo na Parede foi comprado pelo MEC – 70 mil exemplares –, ganhei uma grana legal com isso e outras coisas foram aparecendo. Mas viver exclusivamente da escrita acho que em nenhum lugar do mundo. É para muito, muito poucos. É um fetiche, uma fantasia do escritor viver só de direitos autorais. Mas ao levar em consideração tudo o que envolve esse universo, pode ser que um escritor consiga se sustentar de literatura, mas é muito incerto. Quem estava viajando, fazendo feira, por exemplo, acabou parando com a pandemia. Tem sido um momento difícil para os escritores.”
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“Existe uma tentativa de profissionalização do escritor, tanto das relações com a editora quanto com esse universo de feiras, palestras, oficinas. Nos últimos dez anos, a gente tem visto essa vontade de profissionalizar a atividade de escritor, mas ainda estamos num nível muito amador. Não temos nada parecido com a Feira de Frankfurt, por exemplo, que é um lugar de negócios mesmo. As pequenas editoras cresceram muito, a qualidade delas também, e, historicamente, elas sempre fizeram esse papel de reconhecer talentos na escrita, que, mais tarde, migram para as grandes editoras, como aconteceu comigo.”
“Acho que nunca foi tão fácil publicar livro como hoje. Um bom escritor com paciência e esforço consegue publicar um livro. E quando digo publicar é no esquema tradicional, não pagando, que também é um serviço que tem aos montes. Isso acho que tem contribuído para ampliar a visão, mas a gente ainda percebe que, no frigir dos ovos, os espaços de privilégio – jornais, revistas, sites, feiras, bienais, prêmios – ainda são das grandes editoras. E isso tem a ver, claro, com o alcance que elas têm. Mas é importante dizer: ser publicado por uma editoria grande ou pequena não tem a ver com qualidade, mas com a possibilidade de ser mais lido.”
Diversidade na literatura
“Quando essa pesquisa da Regina Dalcastagnè saiu, foi muito criticada. Alegaram: ‘Agora querem cotas para personagens na literatura.’ Ou seja, o pessoal não entendeu nada, né? O estudo é apenas uma constatação do que está acontecendo. Eu li muito esses caras brancos de classe média de São Paulo e do Rio – são bons escritores e bons livros. A questão aqui é contar uma história do Brasil através da literatura apenas com uma visão. Por outro lado, a gente também teve, a partir dos anos 2000, principalmente no governo Lula, a entrada maciça de pessoas negras nas universidades federais e isso fez com que esses estudantes começassem a ter determinadas demandas que não tínhamos hoje. Hoje, você entra numa sala de aula de um curso de Letras e vê que 30, 40% dos alunos são negros. E isso acaba refletindo no que é estudado. E quando a gente começa a estudar a literatura num lugar que é de validação, que é a academia, obviamente isso vai acabar também refletindo, no futuro, no mercado editorial. Então, não é que as editoras pensaram: ‘Ah, vamos agora publicar pessoas negras.’ É que há uma demanda muito forte da sociedade, tanto dentro da academia quanto fora dela, que busca uma visão que possa ampliar a ideia que a gente tem de literatura e de representação literária. Nesse sentido, acho que é um caminho sem volta. As grandes editoras de alguns anos para cá já estão incluindo no seu catálogo autores que fujam do perfil tradicional. Acredito que, em mais alguns anos, a gente já vai ter aí um panteão de escritores e escritoras negras, LGBTQIA+ e de diferentes regiões do país.”
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O mercado brasileiro
“Além de revelar autores, é preciso resgatar autores. Estamos vendo isso acontecer agora, com a Carolina Maria de Jesus e a Maria Firmina dos Reis, que são escritoras que fazem falta à nossa literatura. É importante saber que os negros não estão escrevendo agora só, sempre escreveram. Eu não quero ser tido como o primeiro negro ou o último negro a fazer alguma coisa, quero ser a continuidade disso. Demonstrar uma literatura que esteticamente tem grande qualidade e antes não era reconhecida. Um livro, por exemplo, de uma escritora indígena pode agora ter uma validação tanto acadêmica quanto desses locais que validam a literatura, e essa autora ter o reconhecimento que merece. Seus livros vão ser lidos como literatura, que é como tem que ser, e não como um registro antropológico ou social. Eu tenho essa preocupação de não encerrar meu livro dentro de uma literatura negra ou afrodescendente, mas que, antes disso, ela seja literatura. É isso que eu defendo sempre. Por mais que sua pessoa tenha sua origem marcada no livro, o que tem que aparecer ali primeiro é seu valor estético, literário.”
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CAROL BENSIMON
A escritora e tradutora nascida em Porto Alegre em 1982, que hoje mora na Califórnia, publicou, entre outros, os romances O Clube dos Jardineiros de Fumaça (Companhia das Letras, 2017), laureado com o Prêmio Jabuti em 2018, e Todos nós adorávamos caubóis (Companhia das Letras, 2013). Em 2012, Carol foi selecionada para a lista da revista Granta no volume “Os melhores jovens escritores brasileiros”.
Descobrir a escrita e se assumir escritora
“Sempre me senti atraída por ficção, isso desde pequena. Lia muito e tentava escrever histórias de aventura, de mistério. Em 2000, acabei entrando na faculdade de Comunicação Social – Publicidade na UFRGS. Cursei algumas disciplinas da Letras, que faziam parte do currículo da Comunicação Social naquela época, e foi ali que tive a chance de escrever meus primeiros contos mais ‘adultos’, digamos assim. Também, durante esses tempos, fiz a oficina literária do Luiz Antonio Assis Brasil, muito tradicional de Porto Alegre, que dura um ano inteiro. Produzi muitos contos para a oficina, mas ainda não me sentia preparada para publicar, e certamente não me considerava escritora. Cheguei a trabalhar como redatora publicitária e foi só em 2008, depois de ter entrado no mestrado de Escrita Criativa na PUCRS, que publiquei meu primeiro livro, Pó de Parede. Para mim, minha carreira começou oficialmente nesse ponto, e o livro foi muito bem recebido, de maneira que consegui ver a possibilidade de me dedicar integralmente à literatura.”
Sobreviver da escrita no Brasil
“É possível sobreviver das coisas que giram em torno do livro, mas não propriamente dos direitos autorais. Muitos escritores são também tradutores. Outros tantos dão oficinas, são professores universitários, participam de eventos – o que está mais difícil de acontecer, claro, e já estava mesmo antes da pandemia –, publicam em revistas, jornais, trabalham em editoras etc. Há ainda sempre a possibilidade de se vender os direitos de um livro para uma adaptação audiovisual. Prêmios literários que remuneram bem são pouquíssimos, e o escritor não pode contar com isso para pagar suas contas.”
Diversidade na literatura
“Esse cenário está mudando – já não era sem tempo –, e muito rapidamente. Acredito que, caso seja feito um estudo sobre o perfil de romancistas brasileiros daqui há uns anos, o resultado será bastante diferente.”
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O mercado brasileiro
“Como em qualquer outro mercado, para se estabelecer no mercado brasileiro é preciso ter talento e persistência. Nossa desvantagem, é claro, é que o sistema literário é pequeno, os leitores são poucos, as formações em Escrita Criativa são raras, e a imensa maioria dos escritores não pode se dedicar integralmente à sua carreira literária, tendo que achar outros meios de fazer dinheiro e sobreviver. Diante desse cenário, acredito que nossos autores fazem milagres. O que não falta na literatura brasileira contemporânea são bons autores. Mas claro que isso não é suficiente para um sistema saudável. Faltam leitores, obviamente, e faltam políticas públicas, e tudo começa em um problema muito maior, que é a educação. Obviamente, não estamos em um momento de otimismo, sobretudo porque você tem um governo que não está nem aí para nada disso, e que ainda cria um projeto de taxação do livro, sendo que o livro já é bastante caro no Brasil do jeito que está, se você considerar a média salarial das pessoas. Imagina então subir esse preço em 20%, 30%. Mas acho que, mesmo com todas as dificuldades, é um cenário que está mudando; há um desejo maior de ver o Brasil representado na literatura.”