m uma madrugada de maio de 2020, Anna* sonhou estar em um prédio muito luxuoso e alto. Ela precisou sair depressa e não sabe bem o porquê, mas não podia usar o elevador. A caminho das escadas, percebeu que o prédio havia “se virado em seu eixo”, invertido os lados, e uma enorme fenda se abriu. O acesso à escada ficara contra a parede e o vão impedia Anna de chegar aos degraus que agora não levavam a lugar nenhum.
“Fiquei desesperada por estar encurralada e tive certeza de que não conseguiria me salvar. Meu sentimento era de pânico, muito real e até físico, tanto que acordei assustada e impressionada com os detalhes e a clareza com que eu vi minha morte”, descreve a executiva de 38 anos. O relato de Anna é parte de um inventário onírico da pandemia compilado por psicanalistas e pesquisadores de quatro universidades públicas brasileiras desde que a Organização Mundial da Saúde declarou a emergência sanitária mundial, há um ano. O resultado da primeira parte da pesquisa – mencionada em uma reportagem de CLAUDIA em junho passado – está compilado no livro recém-lançado Sonhos Confinados: O Que Sonham os Brasileiros em Tempos de Pandemia (Autêntica). O grupo coletou, até o momento, mais de 1,5 mil sonhos e pretende chegar a 3 mil (a recepção do material segue aberta, e qualquer um pode mandar o seu relato por escrito pelo perfil do Instagram @sonhosconfinados ou e-mail oniropolitica@gmail.com). “Queremos que esse inventário onírico, que funciona como ‘um sismógrafo da nossa vida psíquica’, fique disponível a pesquisadores que queiram entender os impactos na nossa vida interior deste momento traumático coletivo”, diz o psicanalista Gilson Iannini, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Na primeira etapa, os pesquisadores entraram em contato com 10% dos voluntários para refletir sobre o conteúdo com o sonhador. Anna foi uma delas. Após despertar do pesadelo descrito anteriormente, ela relatou ter associado a imagem do prédio distorcido aos objetos que se desmancham nas obras de Salvador Dalí, o pintor surrealista espanhol. O que era sólido e bem estruturado dissolveu-se como sua carreira, interrompida pela pandemia. A sensação de impotência, que pareceu tão real à executiva, simulava a falta de perspectiva frente às inúmeras incertezas que a Covid-19 trouxe à rotina e expôs, como o surrealismo, “a fragilidade do que chamamos comumente de ‘realidade’”, apontaram os pesquisadores. “O que percebemos, como no relato de Anna, são sonhos muito angustiados em que ocorre um borramento das fronteiras entre o sonho e a realidade”, diz Iannini. “A realidade do que estamos vivendo se tornou tão surrealista como nossos sonhos”, completa.
“Fiquei desesperada por estar encurralada e tive certeza de que não conseguiria me salvar. Meu sentimento era de pânico, muito real e até físico, tanto que acordei assustada e impressionada com os detalhes e a clareza com que eu vi minha morte”
Anna
Não à toa usamos com frequência os termos “surreal”, “inacreditável” e “pesadelo” para nos referir ao que ocorre no Brasil hoje, país com a pior gestão da pandemia do mundo, conforme o Instituto Lowy, com sede na Austrália, que analisou dados de quase 100 países. Somos também o segundo em número de mortos, só atrás dos Estados Unidos, de acordo com o Painel Global da Covid-19, mantido pela norte-americana Universidade John Hopkins. Dar conta dessa situação-limite, minimizada no discurso oficial expresso na frase emblemática “E daí?” e muitas outras vezes depois, exige um esforço extra da cognição. “Como não dispúnhamos de formas simbólicas nem de narrativas padrão ou de um repertório de imagens compartilhadas capazes de apreender tudo que se passava, nosso psiquismo teve que trabalhar mais. Processou dia e noite, sem parar, esse novo real. Os sonhos desempenham, nesse contexto, um papel decisivo em nossa saúde psíquica”, pontuam os autores na introdução de Sonhos Confinados.
Para as mulheres, o isolamento social teve uma sobrecarga de sofrimento psíquico ainda mais intensa. Não à toa, 80% dos sonhos registrados foram delas. Segundo Carla Rodrigues, professora de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que assina a obra com pesquisadores da UFMG, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade de São Paulo, a maciça presença feminina na pesquisa representa pelo menos duas diferenças. “Ocorreu uma substituição: se o espaço público ainda é difícil para as mulheres, o campo onírico, por ser livre, é mais habitável e acolhedor. Abraça as dificuldades de elaboração do trauma da pandemia, que incidiu de forma mais violenta sobre elas e as sobrecarregou mais do que aos homens. No Brasil, famílias que estavam acostumadas a delegar os cuidados domésticos, de idosos e dos filhos a cuidadoras e babás precisaram se reorganizar”, descreve Carla. “Para nós, mulheres, a volta para a casa é um problema, já que ameaça a conquista do direito de habitar o espaço público”, explica. Dados sobre desigualdade de gênero em meio à pandemia da Fawcett Society, uma ONG inglesa especializada em direitos das mulheres, constatou que elas têm mais chances de perder horas de trabalho ou até o emprego em comparação aos homens. Nos Estados Unidos, em dezembro de 2020, as 140 mil vagas de emprego perdidas por causa da pandemia eram ocupadas por mulheres.
Se na vigília elas foram as mais requisitadas para dar conta da exaustiva rotina pandêmica, nos sonhos também foram as protagonistas. Os pesquisadores compilaram, com a ajuda de um software, as palavras que apareceram com mais frequência nos relatos. Para a surpresa deles, não foi “vírus”, “morte” ou “pandemia”, mas “mãe” e “casa”. “Mãe é o paradigma do amparo, que assume na nossa sociedade a função do cuidar. Houve, pela via onírica, uma busca pela mãe para dar conta dessa atual sensação de desamparo e insegurança extremas”, revela o psicanalista Gilson Iannini.